5º Domingo após Pentecostes - 27/06/2010
Sl 16 / 1Rs 19.9b-21 / Gl 5.1,13-25 / Lc 9.51-62
Vilson Scholz – Para Igreja Luterana
1. Contexto litúrgico
A leitura do AT, em contraponto com o texto de Lucas 9.51-62, sugere uma ênfase no versículo final da leitura do Evangelho, a saber, a questão de pôr a mão no arado e ao mesmo tempo lançar os olhos para trás, numa nítida tentativa de querer reter o melhor de dois mundos. O texto da epístola, mais especificamente o v. 16, “deixem que o Espírito de Deus dirija a vida de vocês e não obedeçam aos desejos da natureza humana”, toca nessa mesma tensão/tentação de andar para a frente e para trás ao mesmo tempo. A época do pós-Pentecostes sugere essa ênfase no “andar no Espírito”.
2. Texto
O texto de Gálatas 5 é cheio de paradoxos, capaz de fazer um teólogo luterano se sentir bem à vontade. Basicamente, diz que fomos libertos para ficarmos livres, em serviço. Claro está que Lutero não encontrou as teses que resumem seu “Da Liberdade Cristã” escritas no mural do mosteiro!
Com a justaposição dos vs. 1 e 13, o contraste fica evidente: Liberdade sem serviço em amor acaba em nova escravidão. Desta vez não mais à lei, mas à carne, isto é, ao próprio umbigo. Serviço por meio do amor é o cumprimento da lei. Retaliação e “guerra civil” no contexto eclesiástico não têm nada a ver com isso.
Na sequência, entra em cena a “força secreta” que possibilita o cumprimento da lei: o Espírito. Nele se anda ou vive (v.16). Quem pensava, equivocadamente, que se trata de uma “substância difusa”, é surpreendido ao ver que o Espírito aparece como pessoa que deseja (v.17), conduz (v.18), e liberta da lei (v. 18b). Ele tem o seu fruto e nele vivemos.
Ao Espírito se opõe, não o mundo ou o diabo, mas a carne. E assim se configura outra polaridade, entre carne e Espírito. Paulo não explica o que seria essa “carne”. (Aliás, temos aqui um problema com o qual Lutero já lidava, em seu tempo: como impedir que o ouvinte “viaje” para o açougue, tão logo ouve a palavra carne (“Fleisch”)? “Velha natureza humana” sempre é uma solução alternativa.) Essa “carne” faz da liberdade cristã um trampolim para a sua ação. Ela se manifesta no devorar-se mutuamente. Aparece personificada, pois “deseja” (vs. 16,17). A “carne” equivale mais ou menos a fazer o que se quer (v.17). Ela entende a linguagem da lei: coloca-nos sob lei, na medida em que não somos guiados pelo Espírito (v.18). Manifesta-se em obras ou exteriorizações de várias ordens, que resultam em exclusão da herança do reino. Os de Cristo crucificaram essa carne. Por mais que isso seja visto como uma ação realizada (“crucificaram”), ao mesmo tempo a possibilidade de fazer essas coisas é muito real. Do contrário, não haveria por que alertar para o perigo.
3. Aprofundamento
O intérprete e pregador será atraído, em especial, pela lista de obras da carne e pelo fruto do Espírito. Dificilmente, numa pregação, será possível tratar de todos os elementos das duas listas. Quanto às obras da carne, é possível colocá-las em quatro grupos ou categorias: sensualidade (imoralidade, impureza, ações indecentes), paganismo (adoração de ídolos, feitiçarias), problemas no relacionamento interpessoal (inimizades, brigas, ciumeiras, acessos de raiva, ambição egoísta, desunião, divisões, invejas), excessos à mesa (bebedeiras, farras). Ao acrescentar “outras coisas parecidas com essas”, Paulo deixa claro que não está sendo exaustivo. Ou seja, o pregador poderia muito bem ampliar a lista, ou, por outro lado, selecionar aquilo que for mais evidente no contexto em que vive.
Quanto ao fruto do Espírito, os nove itens da lista podem ser colocados em três grupos: atitude ou postura pessoal (amor, alegria, paz), qualidades no relacionamento interpessoal (paciência, delicadeza, bondade), princípios de conduta pessoal (fidelidade, humildade, domínio próprio). No entanto, o apóstolo não tem necessariamente em vista um esquema lógico, e a sequência dos itens pode até ser aleatória ou determinada por fatores estilísticos (o som das palavras, por exemplo). Também neste caso seria possível argumentar que a lista não é exaustiva.
“Todo jardim tem o seu monturo”, dizia um antigo professor de exegese. Ou seja, a Bíblia tem, também, catálogos de vícios e relatos de coisas vis e condenáveis. Mas ela tem também os “catálogos de virtudes” que, mesmo não sendo tão marcantes quanto os outros (especialmente em contextos mais moralistas), deveriam, talvez, ser alvo de nossa maior atenção.
Seguindo nesta linha, pode-se notar que o texto fala sobre o fruto do Espírito, e não diretamente sobre o fruto da fé. (Em Efésios 5.9, Paulo fala sobre o “fruto da luz”.) Claro, há toda uma “teologia do Espírito” em Gálatas, por mais que a fé seja, também, um tema de destaque. No entanto, “fruto da fé” poderia, ao menos em nosso contexto, sugerir aquilo que nós somos capazes de produzir. Por isso, é bom que seja mesmo o fruto do Espírito. Só assim sabemos que não se trata de simples obras da natureza humana, que é o que realmente conseguimos, por nós mesmos, produzir. Por outro, o fruto do Espírito contrasta com as obras da Lei.
No começo da lista aparece o amor. Isto condiz com a ênfase paulina em 1Coríntios 13, por exemplo. O amor é auto-doação em benefício do(s) outro(s), e não necessariamente uma emoção. É característica de Deus e tem sua maior manifestação no sacrifício de Cristo (Gl 2.20; Ef 5.25).
A alegria é tema na carta aos Filipenses (3.1; 4.4), e é mencionada apenas aqui, na carta aos Gálatas. Aparece como fruto do Espírito também em Rm 14.17.
A paz resulta da justificação (Rm 5.1) e tem, também, uma dimensão comunitária (Cl 3.15).
No segundo grupo aparecem a paciência, a delicadeza e a bondade. A paciência ou longanimidade é característica divina (Sl 103.8), e se manifesta também na vida cristã (1Co 13.4; Ef 4.2; Cl 1.11; 3.12). A delicadeza ou benignidade é, também, acima de tudo uma característica divina (Rm 2.4; Ef 2.7; Tt 3.4), que se manifesta na vida cristã (Ef 4.32). E a bondade se aproxima bastante do amor.
A fidelidade é, também, antes de tudo, característica de Deus (Rm 3.3). A humildade (praytes) é uma combinação de força e mansidão, ou seja, é força sob controle. (“Mansidão” tende a sugerir falta de vigor e coragem, o que faz com que “humildade” seja um termo mais expressivo.) Trata-se da humilde disposição de viver a vontade de Deus. Quanto a domínio próprio, é o que a palavra diz: domínio de si mesmo. Tratava-se de um importante conceito ético no mundo grego. Como diz D. S. Dockery (Dictionary of Paul and His Letters, p. 318), sua colocação no final da lista parece indicar que, assim como o amor, no início, é o cumprimento da Lei, o domínio próprio cristão cumpre o que se poderia esperar do ponto de vista da ética grega.
4. Atualização
Uma das questões que, talvez, inquiete o pregador é se ele deve apresentar esse “fruto do Espírito”, falando dele, ou esperar que ele se manifeste por si só, levando-o a silenciar a respeito. Em outras palavras, trata-se da já consagrada discussão quanto ao papel da Lei na vida do cristão. Na verdade, quem lê o início da carta aos Gálatas se espanta, até certo ponto, diante do que encontra no final. Parece que Paulo, tendo expulso a Lei pela porta da frente, permite que ela retorne pela janela dos fundos. O exegeta britânico John M. G. Barclay escreveu todo um livro sobre essa questão (Obeying the Truth: Paul´s Ethics in Galatians; Fortress Press, 1991). Vale à pena compartilhar algumas de suas conclusões:
“Paulo argumenta que a justificação pela fé em Cristo tem importantes implicações morais, as quais Pedro, erroneamente, ignorou em Antioquia, e os gálatas corriam o risco de esquecer” (p. 223). Em outras palavras, a justificação pela fé não é uma doutrina moralmente estéril.
“Embora Paulo nitidamente espere que os cristãos da Galácia sejam guiados pelo Espírito, isto não impede que ele explicite o que significa andar no Espírito e que dê instruções bem específicas neste particular. Isto mostra que, na mente de Paulo, não existe uma dicotomia fundamental entre o impulso ‘interno’ do Espírito e a instrução moral ‘externa’.” (229)
“Ao resumir a moralidade cristã numa lista de ‘virtudes’ (o fruto do Espírito), Paulo dá considerável ênfase ao caráter do agente moral, ao invés de, por exemplo, enfatizar a enumeração de seus deveres. (....) ele se preocupa com a demonstração de caráter ético, e não apenas com a observância de um conjunto de deveres”. (231)
Em outros termos, nesta palavra de Deus, Paulo mostra que a liberdade da Lei (na área da justificação) não significa de maneira nenhuma que se está livre de responsabilidades morais. No entanto, essas responsabilidades são moldadas, não pela imposição da Lei, e sim pela ação e suficiente capacitação do Espírito Santo.
Dr. Vilson Scholz - São Leopoldo, RS
Nenhum comentário:
Postar um comentário