A SEGUNDA EPÍSTOLA A TIMÓTEO
SAUDAÇÃO 1:1-2
l. Como sua antecessora, a segunda das epístolas a Timóteo começa com uma breve fórmula de saudação do padrão costumeiro. Conforme a maneira usual de Paulo, enfatiza-se que ele é apóstolo de Cristo Jesus (ou seja, não meramente o representante de uma igreja local), e que sua nomeação é pela vontade de Deus. Esta última expressão contrasta-se com "pelo mandato de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança" em l Tm l: l e reproduz a forma paulina normal (l Co 1:1; 2 Cor: l; Ef l: l; Cl l: l). Tem sido objetado, como em l Tm l: l, que estas são renovações de confiança rígidas e formais que o cooperador tão íntimo quanto Timóteo dificilmente teria precisado. Mas esta objeção olvida o fato de que, como l Timóteo, esta carta não é simplesmente um item de correspondência particular; Paulo muito bem pode ter desejado deixar a congregação, à qual espera que seja lida, sem dúvida alguma quanto à posição e à autoridade dele.
As palavras de conformidade com a promessa da vida que está em Cristo Jesus (uma tradução literal) são obscuras à primeira vista. Acompanham bem de perto apóstolo de Cristo Jesus, não pela vontade de Deus. A preposição de conformidade com, i.é, "com referência a" (Gr. kata) define o alvo e o propósito do apostolado de Paulo, ao passo que promessa denota a promessa da vida eterna que, segundo a maneira cristã de entender o A.T., Deus desde o início ofereceu para aqueles que têm fé (cf. Tt 1:2). Destarte, o que é declarado é que a missão de Paulo é fazer conhecido que esta promessa recebe seu cumprimento mediante a comunhão com Cristo.
Em Cl 3:4 Cristo é descrito como sendo "nossa vida," ao passo que em Fp 2:16 a mensagem do evangelho é "a palavra da vida." O ensino de Paulo (que antecipa Jo 3:15) é que Cristo outorga novidade de vida, e que qualquer pessoa que, mediante a fé, "se reveste" de Cristo (Gl 3:27) pode participar desta vida. À luz desta exegese temos o direito de dar em Cristo Jesus nesta passagem a força integral que em Cristo regularmente tem nas cartas de Paulo.
Representa a união mística com Cristo que o crente desfruta como o feito da sua fé. Alguns críticos (e.g. B. S. Easton) preferem o sentido enfraquecido "dada por Cristo." Argumentam (ver sobre l Tm l: 14; 3:13) que, onde a frase leva o significado místico, é quase invariavelmente usada de pessoas, e que visto que assim nunca é o caso nas Pastorais, seu significado ali deve ser "dado por Cristo" ou "pelo fato da existência de Cristo" ou, simplesmente, "cristão." A teoria deles não recebe apoio algum de uma passagem como esta, onde o sentido místico "em união com Cristo" está completamente no seu lugar apropriado, ao passo que as alternativas propostas são forçadas e artificiais.
2. Para a descrição de Timóteo como amado filho, e também para a tríade Graça, misericórdia e paz, e a estrutura da saudação como um todo, ver notas sobre l Tm 1:1-2.
AÇÕES DE GRAÇAS 1:3-5
As cartas antigas começavam comumente, imediatamente após a saudação, com uma asseveração cortês de oração, ou alternativamente, uma expressão de gratidão, pela saúde e a prosperidade do endereçado.
Paulo seguia este procedimento, adaptando os sentimentos à sua linguagem cristã, na maioria das suas cartas (e.g. Romanos, l e 2 Coríntios, Filipenses), mas não em Gaiatas, onde não era apropriado para seu estado de ânimo, nem em l Timóteo ou Tito. Volta ao procedimento aqui, e a profunda emoção e afeição espontânea que suas palavras irradiam comprovam que, para ele, não era nenhuma fórmula meramente convencional. A frase é longa e envolvida, mas seu sentido se toma claro se nos lembrarmos que o v. 4 é um parêntese de emoção calorosa.
Seu propósito é estimular Timóteo a permanecer leal à fé e a estar disposto a sofrer por ela. Para reforçá-lo relembra-o, com ações de graças a Deus, da sincera piedade que herdou da sua família.
3. Como em l Tm 1:12 (ver a nota ali), Paulo emprega a construção charin echò para Dou graças, ou invés de eucharisto, que normalmente emprega. Estudiosos têm notado outros desvios do seu uso normal: (a) não há nenhuma frase-objeto "por vós (todos)" depois de Dou graças; (b) sem cessar é representado pelo adjetivo adialeiptos 'ao invés do advérbio (Rm 1:9; l Ts 1:2; 2:13); (c) mneian echò é usado para me lembro ("menciono") ao invés de mneian poioumai, e en tais deésesin mou para nas minhas orações ao invés de epi tón proseuchón mou. Estas diferenças podem ser devidas ao desenvolvimento do vocabulário do Apóstolo, ou (mais provavelmente) a uma mudança de amanuense.
Os críticos que são céticos quanto à autoria paulina naturalmente acham nelas apoio para seu argumento. Do outro lado, deve ser notado que a estrutura da passagem assemelha-se de modo notável às ações de graças paulinas normais, incluindo no v. 4 uma cláusula participial seguida por uma cláusula final.
O Apóstolo ressalta que o culto que presta a Deus não somente brota de uma consciência pura ("consciência" - ver a nota sobre l Tm l: 5), como também tem sido tradicional na sua família. Ao frisar o primeiro fato, tem em mente mais do que a pureza de intenção indispensável em toda a adoração que vale a pena. Como na totalidade desta carta, está dolorosamente consciente da sua posição como preso acusado de delitos criminosos, e, por implicação, está protestando sua inocência (cf. At 23:1). A referência aos seus antepassados deliberadamente prepara o caminho para v. 5, onde deliberadamente sublinha a excelente situação familiar que o próprio Timóteo teve. Nada há de incongruente no orgulho que Paulo aqui revela na criação religiosa judaica que recebeu. O mesmo orgulho aparece em Rm 9:3-5 e Fp 3:4-6, e fica claro que, embora, em certo sentido, sua aceitação de Cristo como seu Salvador representasse um rompimento total com sua piedade ancestral, noutro sentido era seu desenvolvimento e florescimento apropriado. Até mesmo a lei, que, conforme sua convicção firme, tinha sido substituída, servira seu propósito em trazê-lo a Cristo.
Paulo menciona Timóteo sem cessar. . . noite e dia, nas suas orações, assim como intercede constantemente pelos romanos (Rm l: 9), pêlos filipenses (Fp 1:3), pêlos colossenses (Cl 1:3), e, sem dúvida, por todas as comunidades que tinha evangelizado. As palavras noite e dia (a ordem judaica normal: ver sobre l Tm 5:5) estão ligadas por muitas autoridades com a cláusula seguinte, de modo que qualificam o particípio traduzido estou ansioso. Embora seja possível, é improvável, pois (a) noite e dia é um chavão que se associa regularmente com a oração, e (b) embora fosse convencional falar da oração ininterrupta, o quadro do Apóstolo ansiando vinte e quatro horas por dia por ver Timóteo parece afetado.
4. A afeição represada de Paulo irrompe no parêntese estou ansioso por ver-te, etc. Expressões semelhantes ocorrem em l Ts 3:6;Fp l: 8; Rm 1:11, mas a intensidade do sentimento é mais urgente e pessoal aqui. Em Lembrado das tuas lágrimas Paulo está se referindo à sua separação final do jovem, que parece ter dado vazão à emoção desinibida no Oriente. Alguns autores pensam que a referência, no caso de ser histórica, deve ser à cena de despedida em Mileto, quando se relata que todos os presentes (At 20:37) se dissolveram em lágrimas, mas aquilo aconteceu vários anos antes, e Paulo deve ter visto Timóteo no intervalo.
Supondo-se que a teoria de uma segunda prisão é correia, é natural inferir que Paulo está pensando na ocasião, decerto ainda recente na sua memória, quando, tendo sido preso mais uma vez, despediu-se pela última vez de Timóteo, presumivelmente em Éfeso, antes de ser levado para Roma. O Apóstolo quer ver Timóteo a fim de que transborde de alegria, e o mesmo desejo ansioso percorre a carta inteira. "Procura vir ter comigo depressa," roga em 4:9, e em 4:21 repete com renovada urgência: "Apressa-te a vir antes do inverno." A hora da sua execução está se aproximando, e sua ansiedade em ver seu jovem assistente, dedicado como nenhum outro, é compreensível. A justaposição da tristeza e da alegria é eficaz, e também é um toque caracteristicamente paulino (cf. 2 Co 7:8-9; Fp 2:17).
5. Paulo agora chega ao objeto das suas ações de graças: a/ë sem fingimento de Timóteo, cuja recordação se repete sempre que pensa no jovem. Porque o particípio traduzido a recordação que tenho está no aoristo ("tendo recebido uma lembrança de"), alguns têm conjeturado que deve ser uma referência alguma lembrança mais específica, tal qual o recebimento de uma carta ou de alguma notícia acerca de Timóteo. Para a expressão fé sem fingimento, cf. l Tm 1:5 (ver a nota). Tem sido argumentado que, como naquela passagem, fé aqui deve ter o significado enfraquecido de sentimento religioso, pois "a questão da sinceridade não pode surgir naquele relacionamento íntimo entre a alma e Deus que Paulo usualmente define como sendo fé" (E. F. Scott). Na teoria, isto pode ser a verdade, mas não pode haver dúvida alguma de que Paulo esteja pensando aqui especificamente da atitude de Timóteo para com Cristo. Pode ser sugerido que a fé no sentido rigorosamente paulino tem um aspecto externo bem como interno, e que a profissão dela pode ser irreal. Ao ressaltar a sinceridade, Paulo está enfatizando que não pode haver questão disto no caso de Timóteo. A passagem talvez possa ser ilustrada por l Ts 3:5 ss., onde achamos o Apóstolo perguntando acerca da qualidade da fé dos seus correspondentes.
Agora somos informados que esta fé primeiramente habitou na avó de Timóteo, Lòide e na sua mãe Eunice. O que Paulo quer dizer é que assim como sua própria vida religiosa tinha poderosas raízes familiares, assim também a de Timóteo estava fundamentada na da sua mãe e da sua avó. Tem sido argumentado que deve estar fazendo referência à criação devota judaica que as duas mulheres deram ao jovem na sua meninice, mas o contexto deixa claro que fé significa fé em Cristo.
Se for assim, a frase sugere ou que Lóide foi convertida ao cristianismo primeira, sendo seguida por Eunice, ou simplesmente (e mais provavelmente) que as duas mulheres eram as primeiras cristãs na família de Timóteo. Conforme At 16:1, sua mãe era "uma judia crente," expressão esta que somente pode significar uma convertida ao cristianismo, ao passo que seu pai era um pagão — fato este que explica a ausência de qualquer menção dele aqui. Uma passagem tal como esta, tão fiel à vida real e com sua nota delicadamente pessoal, cria dificuldades especiais para os que apóiam a teoria da pseudonimidade. Alguns deles estão dispostos a reconhecer que o escritor decerto estava fazendo uso de matéria genuinamente paulina.
Do outro lado, a sugestão de que, ao descrever com pormenores os antecedentes religiosos de Timóteo, seu objetivo real era impressionar sobre seus leitores sua "grande confiança e alegria nos ministros cristãos da terceira geração, e a segurança que sente no caso daqueles que, no lar, têm sido arraigados e fundamentados na forma recebida (paulina) do cristianismo" (F. D. Gealy) é um exemplo das interpretações artificiais às quais às vezes são forçados.
O DESAFIO AO TESTEMUNHO CORAJOSO l: 6-14
Depois das ações de graças breves, Paulo passa a procurar estimular a resolução do seu jovem discípulo, e, em particular, o encoraja a estar disposto a suportar o sofrimento por amor ao evangelho. A nota de ansiedade que permeia a passagem advém parcialmente do reconhecimento da parte do Apóstolo de que a inexperiência e a timidez natural de Timóteo precisam de reforços, e ainda mais porque está consciente das responsabilidades pesadas que logo devem recair sobre este. Mesmo assim, pode indicar a comissão divina dada na ordenação, ao exemplo da sua própria perseverança, e à vida nova outorgada aos homens mediante Cristo, como motivos que impulsionam a um esforço corajoso.
6. A transição da seção anterior é fácil e natural. É Por esta razão, i.é, porque sabe que Timóteo é um homem de fé solidamente estabelecida, que Paulo não hesita em exortá-lo a reavivar o dom de Deus, que há nele e que recebeu na sua ordenação. Há uma referência à ordenação de Timóteo em l Tm 4:14, onde Paulo também diz que ela transmitiu um "dom especial" (a mesma palavra que aqui: Gr. charisma) a ele. Aqui o dom é comparado a um fogo (cf. l Ts 5:19: "Não apagueis q Espírito"), a sugestão reavivar ("reacender") não é para significar que apagou-se, mas, sim, que as brasas sempre precisam ser remexidas constantemente (o verbo está no presente do infinitivo).
Notamos que, se a ordenação já é considerada como transmitindo uma graça positiva, a idéia de que esta graça opera automaticamente é excluída. O ministro cristão deve estar continuamente alerta para revitalizá-la.
Paulo relembra que o dom fora transmitido pela imposição das minhas mãos. Para o significado disto, ver a nota sobe l Tm 4:14, onde a questão importante de se a ordenação foi realizada pelo próprio Paulo, ou por uma mesa de presbíteros presidida por ele, também é discutida.
A linguagem aqui tem alguma possibilidade de estar consistente com este último ponto de vista, mas, interpretada de modo simples e direto, favorece o primeiro.
7. A graça que Timóteo então recebeu, Paulo passa a indicar, tem uma relevância direta com sua presente situação, pois "o espírito que Deus nos deu" forneceu exatamente o equipamento que Timóteo precisa para ela. Não está fazendo referência, como alguns deduziram do plural "nos", ao dom divino do Espírito Santo para os cristãos em geral, seja no Pentecoste, seja no batismo. O aoristo "deu" (que reflete o sentido do original melhor do que "tem dado") relembra o culto de ordenação que mencionou, e com nos quer dizer Timóteo e ele mesmo.
Poderia igualmente bem, e, com efeito, mais deliberado, ter escrito "a ti", mas um tato bondoso o impediu de fazer assim. De modo oblíquo, está repreendendo Timóteo por sua timidez, mas amacia o golpe por meio de classificar-se juntamente com ele. O espírito que ambos receberam no seu comissionamento não era espírito de covardia (para a expressão, cf. Rm 8:15), que poderia deixá-los hesitar ao serem confrontados com responsabilidades desafiantes, perigos, etc. Pelo contrário, era de poder (cf. l Co 2:4), capacitando-os a dominar qualquer situação com autoridade moral; de amor, i.é, de serviço afetuoso e com abnegação, prestado aos irmãos; e de moderação ("autodisciplina") que se requer de cada líder cristão.
A última destas três qualidades (Gr. sõphronismos) é mencionada somente aqui no N.T., mas cf. l Tm 2:9, 15 para o subs. Relacionado sóphrosuné; l Tm 3:2; Tt 1:8; 2:2, 5 para o adjetivo sõphrón; Tt 2:12 para o advérbio sôphronós; Tt 2:4 para o verbo sõphronizó; e Tt 2:6 para o verbo sophronein. Todas estas palavras expressam a idéia de "temperança," "autocontrole." Nas suas cartas reconhecidas, Paulo emprega sophronein duas vezes (Rm 12:3; 2 Co 5:13), mas a predileção das Pastorais pelo grupo inteiro é outro sinal da sua linguagem idiomática helenizada.
Mesmo assim, deve ser notado que a moderação não é considerada aqui, como também o poder e o amor, como ou uma dotação natural, ou o fruto de esforços diligentes. Todos os três são aspectos de um charisma divinamente outorgado, pois embora espírito neste contexto só denota diretamente o Espírito Santo, define graças específicas das quais Ele é o mediador.
8. Paulo desenvolve seu rogo. Fortalecido desta maneira, Timóteo não precisa envergonhar-se, portanto, do testemunho de nosso Senhor. Para a idéia de ter vergonha do evangelho, cf. Rm 1:16. O Grego (lit. testemunho de nosso Senhor) pode significar ou "testemunho dado por Cristo," ou "testemunho acerca de Cristo." Se for aceito o primeiro, o sentido será o de l Tm 6:13, sendo que a referência diz respeito ao testemunho que Cristo selou pela Sua morte sacrificial. O último, no entanto, é preferível de modo geral, pois concorda com a frase paralela (Gr. to marturion tou Christou) em l Co 1:6. Também é mais apropriado para o contexto, cuja razão de ser é estimular Timóteo a ser um evangelista destemido. Sabemos, com base em l Co 1:23, que o evangelho de um Salvador crucificado impressionava os judeus como sendo blasfemo, e os pagãos como sendo puro contra-senso, e é compreensível que uma pessoa tímida como Timóteo (para este traço do seu caráter, cf. l Co 16: 10) se recuasse a incorrer no inevitável desprezo e ódio.
Igualmente, não deve envergonhar-se, conforme muito bem poderia ser tentado a fazer, de associar-se com o próprio Paulo, a despeito de este estar acorrentado (a palavra traduzida encarcerado. Gr. desmios subentende isto) como um criminoso comum. Como noutros lugares (Ef 3:1; Fm l), o Apóstolo trata o que os de fora poderiam julgar uma situação vergonhosa como uma fonte de humilde satisfação. Embora talvez pareça ser o encarcerado do imperador, realmente é o Seu, i.é, de Cristo. O pensamento subjacente é, nSo apenas que os homens o prenderam por ser seguidor de Cristo, mas, sim, que Cristo o fez prisioneiro para Seus propósitos.
Longe de ter vergonha das humilhações e dos sofrimentos de Paulo, Timóteo deve criar coragem e participar deles, Se assim fizer, redundará em lucro para o evangelho - a favor do evangelho (um dativo de interesse). O verbo traduzido participa... dos sofrimentos (Gr. sunkakopathein) foi cunhado por Paulo, que tem uma predileção por compostos com sun ("com"). Se significado é, aqui, participa comigo dos sofrimentos a favor do evangelho, ao invés de "sofre com o evangelho" (Vulgata) ou "participa das aflições do evangelho" (AV, ARC). Paulo reforça seu apelo ao assegurar-lhe que, se robustecer para sofrer, será segundo o poder de Deus, i.é, o poder de Deus (cf. "espírito de poder" no v. 7) o sustentará.
Os dois versículos demonstram, em termos comoventes, as razões porque Timóteo, e, na realidade, qualquer cristão em qualquer era, pode depender do poder de Deus para o avanço triunfante através do sofrimento e da desgraça. Vem dAquele cujo propósito salvífico, baseado totalmente na graça e não nas realizações dos homens, tem estado operante desde antes da fundação do mundo e fez aquilo que eles nunca poderiam ter realizado por si mesmos, redimindo-os e, na missão histórica de Cristo, rompendo os laços da .morte e outorgando a vida eterna. No conceito de muitos estudiosos, estes versículos, que parecem ter o ar de um parêntese, são um extraio dalgum hino ou trecho litúrgico primitivo, e indicam suas antíteses cuidadosas, sua redação compacta, e seu tom elevado. É possível que tenham razão, mas contra a sugestão deles devemos notar: (a) a passagem não subsiste, como as demais citações nas Pastorais, por si mesma, mas, sim, é sintaticamente subordinada à cláusula anterior; (b) as idéias e a linguagem são paulinas, e também são características das Pastorais. Uma explicação mais provável seria, provavelmente, que Paulo, embora esteja fazendo uso de matéria catequética semi-estereotipada, molda-a livremente para seus propósitos e imprime sobre ela seu próprio selo.
9. A primeira lição de Paulo é que Timóteo, ao enfrentar o sofrimento, pode confiar na assistência divina porque Deus nos salvou. O título "Salvador" é aplicado a Deus seis vezes nas Pastorais (ver a nota sobre l Tm 1:1); para o uso do verbo como aqui, cf. l Co 1:21. Esta salvação, que envolve a libertação do pecado e da morte, é algo que os cristãos desfrutam aqui e agora. Seu outro lado é expresso na declaração de que Deus nos chamou com santa vocação. Na linguagem paulina o verbo "chamar" denota a primeira etapa no processo da salvação (Rm 8:30; l Tm 6:12), e o sentido da cláusula é que Deus, que é santo Ele mesmo, chamou os cristãos para fora do mundo para uma nova vida de consagração. São "chamados para ser santos" (l Co 1:2), ou "chamados em santificação" (l Ts 4:7). A sugestão, proposta nos interesses do ponto de vista de que a passagem é pós-paulina, e provavelmente do século II, que vocação tem aqui o sentido técnico do ministério cristão é extremamente forçada. Não somente a palavra (Gr. klèsis) nunca tem este significado estreito no N.T. (l Co 7:20 não é um paralelo, pois ali significa a posição que um homem tem na vida de modo geral), como também o contexto requer que a referência seja à chamada de Deus à santidade.
A segunda lição de Paulo é enfatizar (é o coração do seu evangelho) que a chamada divina não vem a nós segundo as nossas obras ("em virtude de qualquer coisa que tenhamos feito"), mas, sim, somente conforme a sua própria determinação e graça. Se dependesse dos nossos méritos, nossa posição seria na melhor hipóteses precária, e, mediante uma estimativa realista, desesperadora; mas visto que depende inteiramente de Deus, nossa confiança pode ser inabalada. Para a mesma rejeição de "obras," cf.Tt 3:5.
Para a determinação salvífica de Deus, cf. Rm 8:28; 9:11; Ef l: 11; 3:11. Naturalmente existiu desde toda a eternidade, mas aqui o Apóstolo (ou o refrão catequético que está citando) afirma que esta graça nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos. O pensamento tem relacionamento com aquele de Ef 1:4, onde está declarado que ". . . nos escolheu nele (i.é, em Cristo), antes da fundação do mundo." As duas passagens pressupõem a idéia da preexistência de Cristo, e também dão a entender que Ele é o único Mediador que transmite a graça de Deus aos homens, mediante a união deles com Ele.
10. O propósito gracioso de Deus, determinado antes da criação do mundo, foi manifestado agora, i.é, tomado visível, até mesmo concretizado, no processo histórico (cf. Rm 3:21; Cl 1:26), pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Jesus. Para manifestação (Gr. epiphaneia), ver a nota sobre l Tm 6:14. Noutros lugares, o termo denota a volta de Cristo em glória, mas aqui (para o uso do verbo cognato com o mesmo sentido, cf. Tt 2:11; 3:4) Seu aparecimento na terra na encarnação, não subentende necessariamente Sua preexistência, mas, tendo em vista o ensino do versículo anterior, é provável este sentido. Cristo foi revelado como nosso Salvador porque incorpora, e assim torna visível e eficaz, o propósito salvífico de Deus.
Em l Tm 1:1 (veraneia); 2:3; 4:10; Tt 1:4; 2:10; 3:4 a descrição Salvador (Gr. sótér) é aplicada a Deus, mas aqui e em Tt 2:13; 3:6, a Cristo. Era geralmente corrente na religião helenística, pois era usado como título para os muitos deuses redentores do paganismo, e também para o imperador no culto estatal. É digno de nota que Jesus nunca o reivindicou para Ele, e que o Messias nunca é chamado "Salvador" no A.T. Estes fatos, combinados com suas associações helenísticas, provavelmente explicam por que o título nunca é usado para Cristo nas partes mais primitivas do N.T., que brotaram em solo palestiniano. Fora das Pastorais, vemos o uso começando em Fp 3:20 e Ef 5:23; depois disto, estabeleceu-se rapidamente e tomou-se normal. Pode haver pouca dúvida de que um dos motivos principais por detrás desta disposição crescente e sempre mais confiante de saudar Cristo como Salvador era a reação consciente contra as pretensões dos numerosos "salvadores" e do culto imperial, com sua aclamação Kaisar Sõtèr, em particular.
A obra salvífica de Cristo agora é resumida de forma breve: não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o evangelho. Paulo emprega o mesmo verbo "destruir" em l Co 15: 26, falando da morte como "o último inimigo a ser destruído." O texto não subentende que os cristãos estão isentos da morte, mas, sim, que para eles perdeu seu aguilhão (l Co 15:55). O verbo traduzido trouxe à vida (Gr. phótizein) originalmente significa "iluminar," "inundar com luz." Aqui é usado metaforicamente (cf. l Co 4:5; Ef 3:9) para sugerir que, mediante Sua ressurreição, Cristo revelou aos homens a natureza da vida, ressurreta que agora pode ser deles. É uma vida caracterizada pela imortalidade (Gr. aphtharsia, i.é, "incorruptibilidade"). A palavra é regularmente empregada por Paulo para o corpo da ressurreição (l Co 15: 42, 50, 53, 54); denota para ele alguma coisa que somente Deus pode outorgar (Rm 2:7).
Para alguns, o conceito da salvação esboçado nesta passagem tem parecido semelhante ao dos gnósticos, por ressaltar o conhecimento; outros acharam a linguagem (cf. "vida," "imortalidade," e especialmente "luz") remanescente dos mistérios. No que diz respeito a esta última sugestão, deve ficar claro que o vocabulário e as idéias são totalmente paulinos. A primeira sugestão é refutada pela cláusula final, em que Paulo afirma que esta revelação foi feita mediante o evangelho, com o que indica não apenas a mensagem crista, como também a revelação inteira de Deus em Cristo que forma seu conteúdo.
11. Ao mencionar o evangelho, uma nota quase de exaltação entra nas palavras que Paulo escreve. É para o qual (o evangelho) que ele, até mesmo ele (o eu é muito enfático no Grego), cujo encarceramento acaba de ser relembrado, foi designado pregador, apóstolo e mestre. A linguagem assemelha-se estreitamente àquela de l Tm 2:7, onde o verbo designado (Gr. etethén: cf. l Co 12:28) é também usado para sublinhar sua comissão divina. Alguns têm questionado se, sendo o escritor o próprio Paulo, teria precisado convencer Timóteo do seu direito de pregar o evangelho. Assim, no entanto, perde-se a moral da alusão. Paulo não está tanto procurando impressionar Timóteo quanto maravilhando-se que Deus o tenha selecionado para tais responsabilidades. Se as palavras são dirigidas a Timóteo, até certa medida, visam indicar que ele também descobrirá, quando o manto do Apóstolo descer sobre ele, que o privilégio de testificar de Cristo acarreta o sofrimento.
Se distinções delicadas devem ser tiradas entre pregador, apóstolo e mestre, a primeira palavra ressalta a audácia e a publicidade com as quais o evangelista deve proclamar sua mensagem, a segunda ressalta sua comissão especial, ao passo que a terceira chama atenção às suas obrigações pastorais.
12. Por isso, i.é., porque foi nomeado um pregador do evangelho, Paulo está sofrendo estas coisas. Alguns argumentaram que esta é uma expressão deliberadamente vaga que pretende capacitar todo "Timóteo" a relacionar seus próprios sofrimentos com seu papel de ministro do evangelho. É mais natural interpretá-la como sendo uma referência exata à miserável situação em que Paulo se acha no momento de escrever. A despeito dela, exclama: não me envergonho; pelo contrário, é uma honra sofrer por Cristo. O verbo é aquele que usou no seu apelo a Timóteo no v. 8; sua repetição contém um indício que, se Paulo não acha motivo de vergonha no seu sofrimento, não pode haver razão para outros se envergonharem no deles.
O Apóstolo passa a dar a razão para sua confiança: Sei em quem tenho crido. É difícil determinar se tem em mente Deus ou Cristo; há as duas possibilidades, mas tendo em vista que o poder de Deus foi ressaltado no v. 8, a primeira parece mais provável. O significado do que está dizendo é que o cristão sabe, com base na experiência pessoal, bem como nos fatos do evangelho, que Deus nunca o decepcionará. Caracteristicamente, a fé à qual apela aqui não é a f é num credo, mas, sim, numa Pessoa.
Como resultado, pode estar certo de que ele, i.é, Deus, é poderoso para guardar o meu depósito (i.é, a pessoa de Paulo) até aquele dia. A palavra-chave aqui (Gr. parathéké) ocorre também em 14 abaixo e l Tm 6:20 (ver a nota ali); é um termo jurídico que conota alguma coisa que uma pessoa coloca em confiança na salvaguarda doutra pessoa. É ambígua na presente passagem, e pode ser traduzida "o que confiei a Ele." Se esta tradução for preferida, Paulo estaria asseverando que colocou-se a si mesmo (talvez também sua obra, até mesmo seus convertidos) nas mãos de Deus, e que está confiante de que, sejam quais forem os desastres que ocorram, Ele vigiará por ele.
A objeção principal a esta interpretação é que entra em conflito com l Tm 6:20 e, acima de tudo, com o v. 14 imediatamente abaixo, onde parathéké claramente denota alguma coisa que Deus confiou à salvaguarda de Timóteo. Uma objeção menos importante é que a preocupação com seu próprio bem-estar parece fora de harmonia com o tom geral do Apóstolo. Parece melhor, portanto, entender esta palavra, como em l Tm 6:20, como a mensagem do evangelho considerada como um tesouro confiado à igreja; assim, tem-se a vantagem adicional de harmonizar bem com as instruções dadas em 2:2 abaixo.
Com aquele dia obviamente há referência ao grande dia quando "compareceremos perante o tribunal de Deus" (Rm 14:10). A expressão (cf. 1:18; 4:8) é freqüente na LXX; Paulo a emprega numa citação do A.T. em 2 Ts 1:10, mas normalmente prefere alguma outra forma (e .g. "o dia do Senhor"). A passagem como um todo expressa assim sua certeza suprema de que, sejam quais forem os infortúnios que possam sobrevir aos Seus ministros, o próprio Deus conservará a fé a eles confiada, isenta de corrupção, de modo que os capacitará, por assim dizer, a devolver sua custódia a Ele intata no julgamento final.
13. Em 9-12 Paulo ficou arrebatado por sua exposição do poder redentor de Deus. Agora retoma os conselhos que estava dando para Timóteo nos w. 6-8, conclamando-o a basear seus ensinos nos do próprio Paulo. Embora a construção do Grego não esteja livre de dificuldade, este é o significado claro da frase: Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste, uma tradução alternativa poderia ser: "Como modelo de ensino sadio, mantém diante de ti o que de mim ouviste." Paulo não está dizendo que Timóteo deve reproduzir seu ensino palavra por palavra, muito menos tem em mente alguma fórmula fixa de credo que deseja que recite sem alteração alguma. A palavra traduzida padrão (Gr. hupotupòsis: cf. l Tm 1:16) denota um esboço geral ou planta usado por um artista, ou, na literatura, um rascunho que forma a base de uma exposição mais plena. A sugestão contida na palavra, portanto, é que, embora Timóteo devesse ser leal à mensagem de Paulo, sem desvios, considerando-a seu padrão, deve estar livre para interpretá-la ou expô-la da sua própria maneira. Quanto às sãs palavras (ou "ensino"), uma expressão predileta nas Pastorais, ver a nota sobre l Tm 1:10.
Além disto, ao modelar seu ensino no do seu mestre, Timóteo deve fazê-lo com fé e com o amor que está em Cristo Jesus. Embora estejam próximas do verbo ouvistes, estas palavras dão um sentido intoleravelmente fraco se forem ligadas com ele. É muito mais satisfatório, e sintaticamente possível, ligá-las com Mantém o padrão e entendê-las tomo uma definição do espírito que deve caracterizar a ortodoxia de Timóteo. Ao expô-la aos outros, deve revelar, ele mesmo, "a fé e o amor que são nossos em Cristo Jesus" (NEB). Conforme mostra esta paráfrase, a fórmula em Cristo Jesus é muito mais rica no seu sentido do que "cristãos" (B. S. Easton: ver a nota sobre 1:1). Expressa a verdade de que a fé e o amor do cristão são os frutos da sua união com Cristo (ver nota sobre l Tm l: 14).
14. É precisamente este ensino de Paulo que agora é identificado como o bom depósito (Gr. parathéké) que foi confiado a Timóteo, e que ele é exortado a Guardar, i.é, conservar contra distorção e corrupção às mãos dos sectários. A implicação clara é que o Apóstolo o considera seu sucessor e herdeiro.
Ao levar a efeito este dever Timóteo deve confiar, não em recursos dele mesmo, mas, sim, mediante o Espírito Santo que habita em nós. Esta cláusula relembra Rm 8:9, onde Paulo fala do Espírito Santo habitando em cristãos e dirigindo suas vidas. Muitos consideram que este é o significado aqui, mas tendo em vista o destaque dado ao equipamento espiritual dos ministros em 6-7, parece que o pensamento primário de Paulo diz respeito a ele. Ao empregar o pronome nós, portanto, realmente significa, não cristãos de modo geral, mas, sim, "tu e eu." Era seu conceito, é claro (cf. l Co 12: 4 ss.), que cada função ministerial na comunidade tinha seu apropriado revestimento do Espírito, e era natural que, assim como a necessidade de impedir os hereges de manipular erroneamente com o evangelho ficava mais premente e óbvia, devia estender isto para as responsabilidades especiais de homens tais como Timóteo e ele mesmo, neste assunto. Dentro de muito breve (já a achamos claramente delineada em l Ciem. xlii. 2-4;xliv 2) haveria de ser elaborada a doutrina de que a hierarquia da igreja forma uma sucessão ordeira de mestres encarregados com a preservação da tradição apostólica e especialmente sustentada nisto pelo Espírito Santo. Alguns estudiosos acham esta doutrina nesta passagem, e, visto que sustentam que a igreja apostólica era "criativa" e "profética" mais do que "transmissional" e "sacerdotal", concluem que é um sintoma da data pós-paulina, provavelmente no século II. Dois comentários podem ser feitos para criticar este argumento, (a) Embora o germe do qual a doutrina posterior desenvolveu-se (de modo legítimo ou ilegítimo) possa ser indubitavelmente detectado aqui, é apenas o germe. Não há nenhum sinal de teoria, nenhuma teologia consciente, no texto sob discussão; sugere uma situação muito mais elementar, e presumivelmente mais primitiva, de que é pressuposta pela doutrina esmerada e bem articulada proposta até mesmo por um escritor tão antigo quanto Clemente, (b) A distinção entre as etapa "criativa" e "transmissional" na igreja do século I é inteiramente enganadora, pois a ênfase na tradição era destacada desde o próprio início.
Qualquer análise das cartas reconhecidas de Paulo revelará como estão repletas de matéria tradicional, e é compreensível que, nos seus derradeiros anos, sua preocupação com a preservação da tradição se tomasse cada vez mais evidente.
(Autor não citado no texto)
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