NARRATIVA BABILÔNICA DO DILÚVIO
Baseada na tradição suméria, sua antecessora, porém muito mais ampla, a ver¬são babilônica do Dilúvio constitui o décimo-primeiro livro da famosa Epopéia assírio-babilônica de Gilgamesh. O texto, na forma existente, vem da biblioteca do rei assírio Assurbanípal (669-626 A. C.), mas fora transcrito de originais muito mais antigos. As placas do Dilúvio foram desenterra¬das em Cuiunjique (Nínive) por Hormuzd Rassam em 1853, mas não foram identificadas até 1872, quando George Smith, que então se dedicava em estudar e classificar as descobertas cunei¬formes de Cuiunjique, examinou-as novamente e as identificou.
De todas as tradições antigas que se relacionam com o Velho Testamento, a estó¬ria do Dilúvio Babilônico, incorporada à Epopéia de Gilgamesh, manifesta a mais impressionante e minuciosa semelhança com a Bíblia. O Noé sumério, Ziusudra, aparece na tradição babilônica com o nome de Utnapistim, "Dia da Vida". As emocionantes aventuras de Gilgamesh, e a sua busca final da vida eterna, levam-no, por fim, a Utnapistim, o imortal. Este, ao explicar a Gilgamesh a mmeira pela qual obtivera a imortalidade, faz um relato completo do Dilúvio. É este aspecto da Epopéia de Gilgamesh, ao lado da opinião que ela apresenta a crença antiga em uma vida depois da morte, que a torna de interesse especial para os estudiosos da Bíblia.
Na Epopéia, que é reconhecida como o mais longo e mais belo dentre os poemas babilônicos, embora tenha sido desenterrado na Mesopotâmia, o grande herói Gilgamesh aparece como o lendário e semi-divino rei de Uruque, a Ereque bíblica (Gênesis 10: 10), e moderna Warka, ao sudoeste da Suméria. Gilgamesh tem um amigo chamado Enquidu, que é seu companheiro fiel em numerosas aventuras e dificuldades. Quando Enquidu morre, Gilgamesh cai num estado de desconsolo tão desesperador que empreende uma viagem arriscada através de montanhas jamais transpostas e perigosas águas mortíferas, para encontrar Utnapistim, o imortal, a fim de aprender dele a natureza da vida além da morte, e a possibilidade de obter a imortalidade.
No undécimo livro da epopéia, Utnapistim explica a Gilgamesh a sua imortalidade, fazendo-lhe uma narrativa do Dilúvio. Nesta notável estória, o chamado "Noé Babilônico" rela¬ciona a sua posse da vida eterna com a dádiva de um dos deuses após a catástrofe, quando ele foi conduzido para fora do navio. As circunstâncias deram ocasião à narrativa mais completa e mais impressionante do Dilúvio, que pôde ser encontrada fora da Bíblia.
Utnapistim disse a ele, a Gilgamesh:
"Eu te revelarei, Gilgamesh, um fato oculto E um segredo dos deuses eu te contarei: Churupaque - cidade que conheces, (E) que (às margens do) Eufrates está Aquela cidade era antiga, (bem corno) os deuses dentro dela, Quando o coração deles levou os grandes deuses a produzir o dilúvio".
Depois que os deuses resolveram mandar o Dilúvio sobre a terra, um aviso foi despachado para Utnapistim através de Ea, deus da sabedoria: O herói do dilúvio é avisado, possi-velmente através das paredes da sua casa, que são consideradas como uma barreira entre ele e a voz da divindade:
Choupana de bambu! Choupana de bambu! Parede, Parede! Choupana de bambu, escuta! Parede, reflete!
Homem de Churupaque,filho de Ubar•Tutu,
Derruba (esta) casa, constrói um navio!
Desiste das propriedades, busca a vida,
Despreza as possessões e conserva a alma viva!
A bordo do navio recolhe a semente de todas as cousas vivas, 6
De acordo com as instruções divinas, Utnapistim construiu o enorme barco em forma de uma cuba, que media 120 cúbitos em cada direção, e tinha seis andares, No exterior, ele o dividiu em sete partes, e no interior em nove partes, calafetando-o por dentro e por fora com betu-me. Foi embarcado óleo para a alimentação e para as libações. Ele também levou ouro, prata, a sua faml1ia, artífices e animais do campo.
Observei a aparência do tempo,
O tempo era pavoroso de se ver. Embarquei no navio e preguei a porta.
Para repregar (todo) o navio, a Puzur•Amurri, o barqueiro, Eu entreguei a estrutura com tudo o que continha.
A bravia tormenta se formou "com o primeiro clarão da aurora", ao mesmo tem¬po que uma nuvem negra se levantou no horizonte, Adade, deus da tempestade e da chuva, rugiu, Os deuses Anunaque levantaram os seus archotes, "deixando o mundo em chamas" com relâmpa¬gos,
Os deuses estavam temerosos com o dilúvio, E recuando, ascenderam aos céus de Anu. * Os deuses agacharam-se como cães. 8
lstar, a soberana dos deuses, que tinha voz doce, deplora especialmente a sua cul-pa por ter concordado com a destruição da humanidade pelo Dilúvio:
Os dias antigos, aí, tornaram-se barro,
Porque eu advoguei o mal na Assembléia dos deuses. Como pude eu advogar o mal na Assembléia dos deuses, Ordenando batalha para a destruição do meu povo! Quando sou eu quem dá a luz ao meu povo
Como as ovas dos peixes eles enchem o mar! " 9
Diante da horrível destruição, todas as divindades se lamentam:
Os deuses, todos humilhados, assentam-se e choram, Os seus lábios estão apertados - todos eles. 10
A cessação da breve, mas destruidora tormenta é descrita graficamente:
Seis dias e seis noites
Sopra o vento da inundação, da forma como o vento tempestuoso do sul varre a terra. Quando chegou o sétimo dia,
O vento sul (que carregava) o dilúvio cessou a batalha Que havia travado como um exército.
O mar ficou quieto, a tempestade amainou, a inundação cessou ".
Utnapistim avalia, então, a cena melancólica:
* O mais elevado dos vários céus, na opinião mesopotâmica do mundo. Anu era o deus do céu central.
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Observei o tempo: a bonança começara,
E toda a humanidade havia se transformado em barro.
A paisagem era tão plana como um telhado horizontal. Abri uma escotilha, e a luz caiu sobre a minha face. 12
Utnapistim olha em todas as direções, para ver se acha terra por entre as ilimitadas fronteiras do mar. Por fim, consegue ver uma extensão de terra, ao mesmo tempo que o navio en-calha em uma montanha:
Procurei litorais na expansão do mar:
Em cada uma dentre catorze (regiões) Emergia uma região (montanha).
No monte Nisir o navio por fim parou.I 3
Quando o Monte Nisir segurou o navio, Utnapistim soltou uma pomba no sétimo dia. Esta foi seguida por uma andorinha e um corvo.
Quando chegou o sétimo dia, Mandei e soltei uma pomba. A pomba se foi, mas voltou;
Não havia lugar para pousar, e ela retornou. Então mandei e soltei uma andorinha;
A andorinha se foi, mas voltou;
Não havia lugar para pousar, e ela retornou. Então mandei e soltei um corvo.
O corvo se foi e, vendo que as águas haviam diminuído, Come, voa em círculos, crocita, e não retorna.
Então soltei (todos os animais) para os quatro ventos e ofereci um sacrifício.I 4
Os deuses respondem da maneira mais indigna ao sacrifício de gratidão ofereci¬do por Utnapistim:
Derramei uma libação no cume da montanha. Sete e sete vasos cultuais eu levantei,
Sobre a sua platibanda amontoei junco, cedro e murta. Os deuses aspiraram o odor,
Os deuses aspiraram o doce odor,
Os deuses se aglomeraram como moscas ao redor do que sacrificava. 15
Daí começa uma discussão entre os deuses, a respeito da responsabilidade pelo Dilúvio. Contradizendo, aparentemente, a sua confissão anterior de que ela cooperara com os outros deuses em mandar a catástrofe sobre a humanidade, lstar agora lança a culpa em Enlil, um dos outros grandes deuses.
"Que os de,uses venham ao sacrifício; (Porém) Enlil não venha ao sacrifício, Pois ele, sem razão, ocasionou o dilúvio E meu povo destinou à destruição!" 16
Ea, deus da sabedoria, lança também a culpa em Enlil:
"Tu, o mais sábio dos deuses, tu (que és) herói, Como pudeste, sem razão, causar o dilúvio?
A o pecador atribui o seu pecado,
.• Geralmente identificado com o moderno Pir amar Gudrum, situado ao sul do Rio Zab Inferior, no território ao leste da antiga Asszria, tendo a altitude cerca de 2. 700 metros (E, A. Speiser, no Anual of the American Schools af Oriental Research, VIII (1928), pp. 17,18,31).
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Ao transgressor atribui a sua transgressão! (Porém) sê clemente, para que ele não pereça,
Sê paciente, para que ele não seja desarraigado! "17
"Não fui eu quem desvendou o segredo dos grandes deuses. Fiz com que Atrahasis * tivesse um sonho
E ele perscrutou o segredo dos deuses.
Agora, tomai conselho a respeito dele!"
Impressionadíssimo, segundo as aparências, com a repreensão de Ea, e a sua ex¬plicação da sobrevivência de Utnapistim, Enlil passa por uma mudança de atitude. Ele, que estava enraivecido por ocasião da sua chegada ao sacrifício, ao ver que uns poucos seres humanos haviam escapado do Dilúvio, cuja destruição fora decretada para extinguir a raça, agora, em vez de des¬truir Utnapistim, toma-o e à sua esposa, coloca-os no navio e lhes outorga imortalidade:
- .- -
Assim, Enlil embarcou no navio. Levando-me pela mão, me embarcou.
Embarcou a minha esposa e fez com que (ela) se ajoelhasse ao meu lado. De pé entre nós, ele tocou nossas frontes para abençoar-nos:
"Até agora Utnapistim tem sido apenas humano.
De agora em diante Utnapistim e sua esposa serão como os deuses. Utnapistim habitard muito longe, na boca dos rios! "18
Assim termina a narrativa babilônica do Dilúvio, entrelaçada com a Epopéia
de Gilgamesh.
É evidente, para o estudioso do Velho Testamento que está familiarizado com a Epopéia de Gilgamesh, que a narrativa hebraica do Dilúvio tem muito em comum com a versão babilônica. Numerosos aspectos das minúcias apresentadas são realmente notáveis. Quando as tábuas foram decifradas, a semelhança parecia simplesmente maravilhosa. De fato, mesmo hoje, depois de décadas de estudo das tábuas, e da adição de numerosas outras descobertas arqueoló-gicas do mundo antigo, a um conjunto sempre crescente de material que tem íntima relação com a Bíblia, ainda pode ser dito que das muitas tradições que chegaram até nos através de inscrições cuneiformes, e que se assemelham intimamente com a Bíblia, a mais impressionante é a narra¬tiva babilônica do Dilúvio.
Um registro desse grande acontecimento é feito nas obras de Josefo e Eusébio, mas em matéria de vigor e detalhes, o relato babilônico é superior, depois da Bíblia.
I. AS SEMELHANÇAS
Tradições de acontecimentos tão estupendos, como um dilúvio que inundou o mundo inteiro, seriam naturalmente de se esperar que fossem criadas na raça humana, e que ti-vessem alguma afinidade com o registro inspirado da Bíblia, como acontece com a narrativa ba-bilônica.
1. Ambas as Narrativas Sustentam que o Dilúvio Foi Divinamente Planejado. A versão babilônica declara que o decreto dos "grandes deuses" fora a causa do Dilúvio. Menciona-dos especificamente como tendo participado dessa decisão para destruir a humanidade, são Anu, pai dos deuses, Enlil, conselheiro deles, Ninurta, representante deles, Ennugi, seu mensageiro, e Ea, o sábio benfeitor da humanidade. Contudo, outras divindades, evidentemente, participaram da decisão, pois Istar, deusa da propagação, lamentou especificamente a parte que tomou em mandar o "mal na Assembléia dos deuses" quando viu a destruição que fora causada pelo desastre. Depois da calamidade, Ea e Istar negam ter responsabilidade nela, e culpam Enlil como autor real do que consideravam uma catástrofe injustificada. Da mesma forma, a narrativa suméria representa o Dilú-vio como tendo sido decretado pela assembléia dos deuses, e evidentemente, aprovado por todos, mas apenas formalmente e não sinceramente por alguns dos membros do panteão.
Da mesma forma, o livro de Gênesis atribui o Dilúvio a intervenção divina. Po-rem, de acordo com o seu estrito monoteísmo, é em resultado da decisão do único e verdadeiro Deus, agindo de acordo com a Sua infinita santidade, sabedoria e poder. "Porque estou para der-ramar águas em dilúvio sobre a terra para consumir toda a carne em que há fôlego de vida debai¬xo dos céus: tudo o que há na terra perecerá" (Gênesis 6: 17). Embora as narrativas mesopotâmi¬cas concordem com a Bíblia que a causa do dilúvio fora divina, não há, no relato do Gênesis, o menor traço da confusão e da contradição ocasionadas pelas numerosas divindades preocupadas em ocasionar aquele terrível cataclisma .
.• "Excessivamente sábio". epíteto de Utnapistim.
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2. Ambas as Narrativas Concordam que a Catástrofe Iminente Fora Divinamente Revelada ao Herói do Dilúvio. Na Epopéia de Gilgamesh, Ea, deus da sabedoria, avisa Utnapistim do perigo que se aproximava, por meio de um sonho. Por essa forma o deus se dirigiu ao her6i, que dormia em sua cabana de junco, ordenando-lhe que derrubasse a sua casa e construísse um navio. Da mesma forma, na versão suméria, Ziusudra tem um sonho. Em sua preocupação de alma para compreender o seu significado, ele ouve uma voz que, ordenando-lhe que fique em pé diante de uma parede, fala-lhe do cataclisma iminente.
Embora Noé seja, da mesma forma, notificado divinamente acerca do Dilúvio, a maneira pela qual é avisado do desastre ameaçador difere amplamente do que se contém nas ver-sões mesopotâmicas. No relato bíblico conta-se que Noé "andava com Deus" (Gênesis 6: 9) e "achou graça diante do Senhor" (Gênesis 6: 8). Nesse estado de Íntima comunhão com a Divin-dade, ele recebe uma comunicação direta do propósito divino, sem a agência de um sonho ou qual-quer outro intermediário. O próprio Jeová revelou o plano ao Seu servo fiel, informando-o da des-truição vindoura, e ordenou-o que construísse uma arca. "Então disse Deus a No{ Resolvi dar cabo de toda a carne, porque a terra está cheia da violência dos homens: eis que os farei perecer junta-mente com a terra. Faze uma arca de tábuas de cipreste ... " (Gênesis 6: 13-14).
3. Ambas as Narrativas Relacionam o Dilúvio Com a Corrupção da Raça Humana.
Na Epopéia de Gilgamesh, embora um elemento moral não apareça como a causa do Dilúvio, ela é tão obscura que alguém, à primeira vista, poderá concluir que o cataclisma foi ditado por sim¬ples capricho "quando o seu coração levou os grandes deuses a produzir o dilúvio",2 Que esse não é o caso, é plenamente demonstrado por uma circunstância posterior, na estória, que é em si mesma resultado da fraqueza moral. Os deuses, que na primeira parte do poema se diz terem de¬cretado o Dilúvio, depois que a sua tremenda destruição se faz sentir, não apenas negam ter res¬ponsabilidade e tentam lançar a culpa deles em Enlil, conselheiro dos deuses, como entram em com¬pleto desacordo com respeito da necessidade ou justiça do Dilúvio; A mesma confusão é encontra¬da na tentativa de determinar a responsabilidade humana. O pecado do homem é mencionado como a razão para o Dilúvio, mas a natureza ou a extensão da ofensa é deixada completamente obscura. O que é mais sério, a catástrofe era destinada a todos, justos e injustos igualmente, sem exceção alguma. Se Ea não tivesse intervido, e insistido em que "sobre o transgressor caía a sua transgressão, sobre o pecado, o seu pecado",3 Enlil teria liquidado com toda a raça, sem discri-minação.
A resposta à questão referente à natureza da corrupção do homem, dada na cha-mada Epopéia de Atrahasis, que é fragmentária, dificilmente será mais aceitável, moralmente, do que a referência da Epopéia de Gilgamesh, e bem pode ser uma explicação mitológica poste¬rior desta última. [Apenas quatro pequenos fragmentos dessa lenda foram achados. Os dois pri¬meiros datam do reinado de Amizaduga, décimo rei da Primeira Dinastia da Babilônia; os dois últimos pertencem à restauração Assíria, e foram encontrados nas ruínas da biblioteca de Assur¬banípal (século VII A. C.). O nome Atrahasis (que significa "Excessivamente Sábio"), embora seja associado com outros heróis da literatura épica da Mesopotâmia, tais como Etana e Adapa, refere-se, mais especificamente, a Utnapistim (Epopéifl de Gilgamesh, XI, 196), e o "ciclo corres¬pondente ao pecado do homem e a sua conseqüente punição através de pragas e do dilúvio"! 4 De acordo com esta narrativa, Enlil mandou o Dilúvio para exterminar a humanidade, porque o povo se estava multiplicando muito rapidamente, e as suas ruidosas comoções, que perturbavam o descanso dos deuses, não podiam ser extintas com punições mais leves.
Embora a narrativa do Gênesis também relacione o Dilúvio com o pecado do homem, não há a menor evidência, na narrativa, da ambigüidade moral que caracteriza de maneira tão gritante a tradição babilônica. O episódio bíblico possui o mais elevado valor didático e espiri-tual, devido à sua integridade ética. Deus, de acordo com a sua infinita santidade, envia o Dilúvio como justa retribuição ao abusivo pecado dos Ímpios. Apenas os maus são destruídos. O justo Noé, que era "Íntegro entre os seus contemporâneos" e "andava com Deus" (Gênesis 6: 9), é poupado. Por outro lado, embora seja verdade que o herói do dilúvio babilônico seja salvo por uma divindade amiga devido à sua piedade, isso é levado a cabo em decorrência de uma tradição contra os decretos que os deuses haviam baixado em concílio.
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Na apresentação do Dilúvio como um julgamento moral dos ímpios, no qual os justos são poupados, e na opinião séria que tem a respeito da depravação da raça antidiluviana (Gênesis 6: 5 12,13), a narrativa bíblica expõe a sua grandeza ética. Mágoa nenhuma é demonstra¬da pelos que foram destruídos no cataclisma, em contraste com as lágrimas das narrativas cunei-formes. O castigo daqueles, era um castigo justo e merecido. Tão pronunciada é a motivação ética da narrativa bíblica, que longe de ficar triste por causa do cataclisma diluviano, como é o caso de praticamente todas as divindades da narrativa babilônica, Deus é descrito como arrependi¬do até da criação do homem (Gênesis 6: 6).
4. Ambas as Narrativas Falam da Libertação do Herói e Sua Família. Utnapis¬tim, na Epopéia de Gilgamesh, é uma tradução livre do Ziusudra da narrativa suméria anterior, tendo este último o significado aproximado de alguém "que tomou posse da vida em épocas remotas", 5 referindo-se à imortalidade que foi outorgada ao herói depois do Dilúvio. Em Gêne¬sis, o nome do herói do Dilúvio é Noé, que significa "repouso", que, no entanto, não tem conexão etimológica com os nomes babilônicos, nem relação evidente nenhuma com as circunstâncias da narrativa bíblica.
As tradições diluvianas da Mesopotâmia são, em geral, semelhantes à narrativa bíblica quanto a seres humanos, animais, aves e provisões levadas a bordo do navio. Utnapistim, por exemplo, carregou a embarcação com ouro, prata, "todos os seres vivos", "família, parentes, bestas do campo e criaturas selvagens", "todos os artífices" (técnicos)6 e um barqueiro. A principal diferença na história bíblica, é o número muito menor de pessoas salvas - apenas oito pessoas:
Noé, sua esposa, e três filhos com suas esposas (Gênesis 7: 1, 7; I Pedro 3: 20).
5. Ambas as Narrativas Afirmam que o Herói do Dilúvio Fora Instruído Divina-mente para Construir Um Enorme Barco para Preservar a Vida. Os antigos sumérios chamaram o barco magurgur, que significa "um barco gigantesco",8 termo que corresponde ao termo elippu rabitu, "um grande navio", que ocorre no fragmento babilônico do Dilúvio encontrado em Nipur. A versão de Gilgamesh chama-o simplesmente de elippu, "navio" ou "barco", uma vez ecallu, que significa "casa grande" ou "palácio", sendo esta última "uma indicação", como Jas¬trow nota corretamente, "do seu tamanho, com seus muitos andares e compartimentos". 10
Embora a narrativa Hebraica apresente idéia semelhante de um enorme barco não há conexão etimológica entre teba, que significa "arca" ou "baú" (Gênesis 6: 14; 7: 1 etc.) e as designações babilônicas para o mesmo navio. A palavra hebraica pode ser relacionada com a egípcia db’at, que significa "baú", "caixa" ou caixão, aplicada geralmente à arca da aliança (Êxo¬do 15: 10; Números 3: 31, etc.). Evidentemente o escritor hebreu queria enfatizar "o caráter pe¬culiar da construção em que Noé se refugiou e, portanto, deliberadamente evitou o vocábulo na¬vio".11
A comparação entre as narrativas bíblica e babilônica, revela uma controvérsia diametra1mente oposta entre as formas e dimensões da embarcação. A arca era uma construção de fundo chato, retangular; "de trezentos côvados será o comprimento, de cinqüenta a largura, e a altura, de trinta" (Gênesis 6: 15). O cúbito ou côvado mencionado é provavelmente a medi¬da hebraica de cerca de 50 centímetros (a distância aproximada entre a ponta do dedo médio e o co-tovelo). Por esses cálculos, a arca tinha 150 metros de comprimento, 25 de largura, e 15 de altura, deslocando cerca de 43.300 toneladas.
O navio de Utnapistim, por outro lado, era uma construção cúbica, medindo a largura, comprimento e altura, 120 côvados. Visto que a unidade de medida era o côvado babilô-nico, maior (mais de cinqüenta centímetros), o navio deslocava cerca de 228.500 toneladas, cerca de cinco vezes mais do que a arca. Mais do que isso, tinha sete andares e era dividido verticalmente em (nove) partes, contendo assim sessenta e três compartimentos. Tinha também uma porta (portão) e pelo menos uma janela.
A arca, pelo contrário, só tinha três andares, e consistia de um número não espe-cificado de compartimentos (em hebraico, "nests") ou celas (Gênesis 6: 14). Tinha uma porta
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ao lado (Gênesis 6: 16), e uma 'janela" (do hebraico, hallon, Gênesis 8: 6) para iluminação e ven-tilação, o que é evidentemente uma parte da abertura maior mencionada em Gênesis 6: 16, aí chamada sohar. Este último termo dificilmente pode ser uma referência ao "teto" do navio, mas uma abertura para iluminação e ventilação, construída nos lados, rodeando toda a arca.
Tanto no relato babilônico como no hebraico, figura proeminentemente o betume ou piche para calafetar o barco, tornando-o estanque. Utnapistim derramou piche e asfalto na for-nalha ou panela de piche, naturalmente para derretê-lo e assim tapar as emendas das tábuas do na-vio. Da mesma forma, Noé calafetou a arca "com betume por dentro e por fora" (Gênesis 6: 14). É interessante que a palavra usada para piche ou betume nesta passagem, é kofer, que corresponde à palavra babilônica e assíria kupru, ao passo que em todas as outras passagens do Velho Testa-mento, é usada uma palavra diferente (hemar em Gênesis 11: 3; 14: 10; Êxodo 2: 3; zefeth em Êxodo 2: 3; Isaías 34: 9).
A explicação parece ser que a indústria do betume se originou na Babilônia, onde se encontravam os depósitos mais importantes desta substância conhecidos na antiguidade, e espa-lhou-se por outras partes do mundo antigo, espalhando-se o nome da substância com o seu uso. Como diz Heidel:
Se o 'betume fosse citado mais freqüentemente no Velho Testamento (apenas em cinco passagens), ou se tivéssemos mais peças literárias do período do Velho Testamento, tal¬vez pudéssemos encontrar a palavra kofer em numerosas passagens sem ser a história do dilúvio, e absolutamente sem nenhuma relação com ele. Se a narrativa bíblica tivesse sido derivada da Babilônica, e o termo em questão não fosse conhecido pelos hebreus através de nenhuma outra fonte, eles, com toda a certeza, teriam substituído a palavra kupru por uma palavra com a qual estivessem familiarizados, escolhendo para isso, ou hemar ou zefeth)2
6. Ambas as Narrativas Indicam as Causas Físicas do Dilúvio. A Epopéia de Gilga-mesh cita chuvas torrenciais e ventos destruidores acompanhados por relâmpagos e trovões, como causas naturais do Dilúvio. Além disso, o rompimento de diques, canais e reservatórios, como resultado da tromba de água de sete dias, também é citado. A estória suméria, da mesma forma, cita chuvas violentas e ventos, como causas do Dilúvio.
As notas bíblicas que descrevem as causas físicas do Dilúvio, embora breves, são muito mais compreensíveis do que as babi1ônicas, e sugerem um cataclisma mundial, causando não apenas uma transformação completa nas condições climatéricas e atmosféricas que produziram um aguaceiro de quarenta dias de duração, ininterruptamente, mas incluindo também grandes trans-formações geológicas. Gigantescos enrugamentos da superfície da terra (Conforme S. R. Driver, que diz que a expressão hebraica "se racharam" implica em "alguma convulsão terrestre".)13 e movi-mentos da sua crosta evidentemente reduziram o nível das montanhas, levantaram o leito dos oceanos, e fizeram jorrar os grandes reservatórios de águas subterrâneas (O eminente geólogo Eduard Suess incluiu o terremoto como um importante fator do dilúvio) 14 que existiam, de for¬ma que áreas secas foram violentamente inundadas, e toda a estrutura do mundo antidiluviano foi radicalmente alterada. Nada menos do que um desastre cataclísmico assim pode satisfazer os requi-sitos da passagem do Gênesis. "Romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as comportas dos céus se abriram" (Gênesis 7: 11).
A expressão "as fontes do grande abismo", como Dillman observa corretamente, se refere àquela "parte da água primitiva juntada em baixo" (Gênesis 1: 2, 9), de forma que está debaixo da terra, e supre de água, através de fontes secretas, a terra sólida e o mar. "Com o rompi-mento dessas fontes, que outrora haviam estado fechadas, ou fluíam apenas moderadamente, as águas primitivas se derramaram, e aumentaram imoderadamente o volume dos oceanos, rios, etc., como se o caos se tivesse instaurado outra vez". 15
O deslocamento de grandes águas subterrâneas (certamente através de terremoto), resultando automaticamente na submersão dos níveis da terra e na elevação do fundo dos mares, é mencionado em primeiro lugar na passagem do Gênesis, e por isso, sem dúvida, deve ser conside-
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rado como a principal causa do Dilúvio. Violenta precipitação, da mesma forma, foi apenas uma fonte acessória das vastas quantidades de água necessárias, e foi ocasionada pelas radicais mudanças climatéricas. Até então a terra havia sido, ao que parece, regada por essas fontes subterrâneas, e por uma neblina que subia (Gênesis 2: 5, 6), de forma que as condições atmosféricas para produ¬zir chuva ou Arco-íris ainda não existiam (cf. Gênesis 9: 13), como no mundo pós-diluviano, já diferente.
George McCready Price descreve o clima antidiluviano da forma seguinte:
Para as pessoas que estão familiarizadas com os fatos geol6gicos, não há necessidade de apresentar evidências em favor do fato que a terra outrora gozou um clima ideal de polo a polo. Os corais e os depósitos de carvão nas regiões árticas, são evidência objetiva que contam uma hist6ria completa que não pode ser mal-entendida.16
Que a era antidiluviana, descrita por Pedro como "o mundo daquele tempo", era obviamente diferente em matéria de clima, bem como geologicamente, dos "céus" e "a terra ... que agora existem" (II Pedro 3: 7) - está claramente visível na severa advertência do Apóstolo aos céticos naturalistas, que zombam da idéia do Segundo Advento sobrenatural de Cristo, alegando que "todas as cousas permanecem como desde o princípio da criação" (II Pedro 3:4). Contra essa falsa teoria Naturalística de uniformidade, o Apóstolo cita a verdade do catastrofismo sobrenatural, como é evidenciado pelo Dilúvio Noéico:
Porque deliberada mente esquecem que, de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água e através da água pela palavra de Deus, pelas quais veio a perecer o mundo daquele tempo, afogado em água (11 Pedro 3: 5, 6) A conclusão de Price a respei¬to da teoria da uniformidade versus a do catastrofismo em geologia, é assim apresentada:
"Descobertas futuras poderão emendar e clarificar alguns dos detalhes desta hipótese do cata1trofismo. Não é provável que eles requeiram nenhuma mudança material nas suas apresentações essenciais".
7. Ambas as Narrativas Especificam a Duração do Dilúvio. Na Epopéia de Gilga-mesh, a violenta chuva e tempestade de vento duraram apenas seis dias e noites. No sétimo dia, o Dilúvio cessou. Depois de um período não especificado, Utnapistim e seus companheiros deixaram o barco. A versão suméria declara que o Dilúvio assolou durante sete dias e noites.
Embora ambas as narrativas especifiquem a duração do Dilúvio, esta é muito mais longa no relato bíblico do que o indicado na estória babilônica, e é muito mais consoan¬te com o fato da universalidade da catástrofe. A crítica moderna considera a narrativa bíblica complexa e contraditória; particularmente na duração que ela atribui ao Dilúvio. No entanto, se a narrativa for considerada como um todo, as indicações numéricas são suscetíveis de explicação razoável e harmoniosa, e contam como tendo sido de um ano e onze dias (371 dias).a duração total do Dilúvio.
“Os quarenta dias e quarenta noites de Gênesis 7: 11 descrevem o período de agua¬ceiro violento, chamado um mabbul ou dilúvio” (7: 17). Mas em nenhum outro lugar há inferência de que depois desse período de quarenta dias a chuva parou de uma vez. Pelo contrário, sem dú¬vida como resultado das novas condições atmosféricas criadas pela dissolução do envoltório protetor de água que era responsável pelo clima uniforme e ideal de antes do dilúvio, e que aparen¬temente forneceu a grande quantidade de água para o aguaceiro de quarenta dias, a evaporação e a condensação, bem como chuva comum, continuaram até o centésimo qüinquagésimo dia (Gênesis 7: 24). Durante esse tempo as águas do dilúvio continuaram subindo, ou pelo menos conservaram o seu mais elevado nível. Depois disso, começaram a descer. Primeiramente, devido ao fato de um vento ter soprado sobre as águas, aumentando grandemente a evaporação. Então, "fecharam-se as comportas dos céus", o que impediu que as águas evaporadas se precipitassem de novo. Fi¬nalmente, "fecharam-se as fontes do abismo" (Gênesis 8: 1-3), o que "pode significar apenas uma causa: o relevo terrestre foi outra vez sacudido, de forma que o mar voltou para o seu lugar ante¬rior, ou aproximadamente".
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8. Ambas as Narrativas Citam o Lugar Onde o Barco Encalhou. Na Epopéia de Gilgamesh, o navio de Utnapistim encalhou no Monte Nisir, geralmente identificado com o Pir Omar Gudrum, a leste do Tigre e ao sul do Rio Zab Inferior, cerca de seiscentos e quarenta quilô-metros do Golfo Pérsico. O Gênesis menciona algo mais indefinidamente, o fundeadouro "sobre (uma de) as montanhas de Ararate" (Gênesis 8: 4). O nome é idêntico ao Assírio Urartu, e signi¬fica o território geralmente montanhoso da Armênia (cf. II Reis 19: 37; Jeremias 51: 27; Isaías 37: 38), a oeste do Mar Cáspio e a sudeste do Mar Negro.
9. Ambas As Narrativas Incluem Surpreendentes Detalhes Semelhantes. Especial-mente notável é o episódio da soltura das aves, para certificar-se da diminuição das águas. Na narra¬tiva cuneiforme, uma pomba é solta no sétimo dia depois que o navio fundeou no Monte Nisir. Não encontrando lugar para pousar, ela volta. Uma andorinha, da mesma forma, é solta, mas volta. Finalmente um corvo é solto, mas não volta.
No registro bíblico não há andorinha, mas um corvo é solto primeiro, quarenta dias depois que os cumes dos montes se haviam tornado visíveis (Gênesis 8: 6, 7). Depois uma pomba é solta em três ocasiões, perfazendo quatro tentativas, em vez de três, como na tradição babilônica. O fato do corvo voar de volta para a arca, e não ter voltado da segunda vez, foi útil para mostrar que, embora as águas tivessem baixado até certo ponto, e o mundo exterior não era inóspito demais para uma forte ave de rapina, mas ainda era impróprio para os demais ocupantes da arca. Na estória babilônica, o envio de corvos em último lugar, em vez de em primeiro, é sem sentido.
O envio de três pombas em intervalos de sete dias mostrou que as águas estavam minguando rapidamente. A pomba, sendo um pássaro delicado e tímido, que não se alimenta de cadáveres, e que não gosta das montanhas, mas se compraz nos vales (Ezequiel 7: 16), era uma ave ideal para cumprir o objetivo colimado. A volta da primeira mostrou que as planícies estavam ainda submersas. A volta da segunda, com um ramo de oliveira colhido recentemente, mostrou que os vales, onde as oliveiras crescem, estavam quase secos, mas que a pomba ainda preferia a hospi-talidade que a arca propiciava. O fato da terceira pomba não voltar, mostrou que ela encontrou um abrigo confortável para passar a noite nas planícies, e que a hora de desembarque dos ocupantes da arca se aproximava.
10. Ambas as Narrativas Descrevem Atos de Adoração Praticados Pelo Herói Depois do Seu Livramento. Utnapistim ofereceu sacrifício, derramou uma libação, e queimou ". .. cana (de açúcar), cedro e murta" :depois que abandonou o barco. O objetivo aparente era, em parte, aplacar a ira daqueles deuses que haviam decretado o completo extermínio da humani¬dade, e em parte expressar a sua gratidão a Ea, que, apesar de tudo, o havia poupado. Da mesma forma, Noé ofereceu "holocaustos sobre o altar" que havia Construído (Gênesis 8: 20), com o obje¬tivo principal, todavia, não de propiciar uma divindade irada, visto que ele é figura do filho de Deus redimido, mas de adorar agradecidamente ao Amado que o havia salvo e à sua família. Acentando a sua humilde gratidão, Jeová "aspirou o suave cheiro" (Gênesis 8: 21).
11. Ambas As Narrativas Aludem À Outorga de Bênçãos Especiais Ao Herói, Depois do Desastre. Na Epopéia de Gilgamesh, são conferidos a Utnapistim e sua esposa divin¬dade e imortalidade, e eles são levados para habitar "em lugar distante, na boca dos rios”. l8 Segundo a narrativa suméria, Ziusudra, imortalizado, é transportado para uma longínqua habita¬ção, que ali é chamada Dilmum. (Identificada com a praia ocidental do Golfo Pérsico. W. F Al¬bright relaciona-a com as Ilhas Bahrein no Golfo Pérsico).l8
A narrativa bíblica também fala de bênção dada ao herói do dilúvio. Contudo, o benefício feito é de natureza completamente diferente. A capacidade para multiplicar-se e encher a terra, e para exercer domínio sobre os animais, que originalmente fora dada na criação, é confe¬rida de novo a Noé e a sua posteridade, juntamente com a permissão para comer carne sem sangue (Gênesis 9: 1-5). Além disso, a lei de punição capital é formulada para proteger a vida do homem, e o Arco-íris colocado nos céus como um sinal da aliança de Deus de que nunca mais um dilúvio destruiria a terra (Gênesis 9: 5-17).
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II. As Diferenças
A despeito do fato de existirem numerosas semelhanças entre as narrativas babilô-nicas e bíblica a respeito do Dilúvio, em alguns casos, surpreendentes mesmo, as divergências entre ambas são muito significativas e fundamentais. Essas diferenças são mais aparentes, sobretudo porque colocadas. em relevo ousado, devido à sua conexão com as semelhanças. Mesmo onde estas são mais notáveis, as radicais diferenças subjacentes, em matéria de teologia, moralidade, e filo¬sofia da religião, permanecem salientes ao lado das semelhanças que, embora numerosas como vimos, são bem superficiais. Será plenamente suficiente, portanto, à luz das muitas diferenças que já foram notadas na discussão das semelhanças, sumarizar os chocantes contrastes sob três tópicos: teológicos, morais e filosóficos.
1. As Duas narrativas estão em diametral contraste, quanto às Suas Concepções Teológicas. A idéia que apresentam a respeito da divindade é completamente divergente. Esta é a consideração básica que coloca as duas narrativas em pólos opostos. A narrativa hebraica é im-buída de casto Monoteísmo, que refina e enobrece cada aspecto da história do Dilúvio, ao passo que as versões cuneiformes são minadas por grosseiro e descarado Politeísmo que, de maneira contrastante, vicia e degrada a narrativa em todos os pontos, seja na questão da causa do Dilú¬vio, ou na da reação divina ao sacrifício do herói, depois dele.
Por exemplo, em vez de atribuir o Dilúvio ao infinitamente Santo, sábio e to¬do-poderoso Deus, como o faz a história do Gênesis, a narrativa babilônica inclui uma turba de divindades discordantes, briguentas, acusando-as umas às outras, que, acocoradas de medo, "como cães", enquanto o cataclisma se processava, negam infantilmente terem responsabilidade na terrível destruição quando ela termina, e tentam lançar a culpa umas nas outras. A divindade evidentemente mais culpada pela catástrofe, embora zangada porque alguns seres humanos haviam escapado, caprichosamente muda de atitude, para uma disposição de grande amabilidade para com Utnapistim e sua esposa, sem nenhuma razão suficiente, e lhes oferece a vida eterna.
Outro exemplo notável da degradação da estória babilônica, devido ao seu Politeísmo crasso, ocorre na reação das divindades babilônicas aos sacrifícios apresentados pelo herói do Dilúvio, após a catástrofe. Essa reação está contundentemente em contraste com a reação de Deus em relação à oferta de Noé. Embora o correspondente bíblico seja, em verdade, confessa-mente antropomórfico, é, não obstante, elevado, e completamente consoante com o Monoteísmo hebraico. "E o Senhor aspirou o suave cheiro" e determinou-se a tolerar os pecados da huma¬nidade e nunca mais visitar a terra com o dilúvio universal, ou quebrar as leis naturais, enquanto a terra existir (Gênesis 8: 21, 22).
A narrativa babilônica, por outro lado, "está embebida no mais tolo politeísmo", 20 e apresenta uma cena repugnante. Quando "os deuses aspiram o doce odor", "agrupa¬m-se ,em torno do que sacrificava como moscas", 21 famintos pelo resultado de prolongado jejum, visto que devido a destruição da humanidade todos os sacrifícios haviam cessado, com exceção dos feitos pelos ocupantes do barco, eles agora se aglomeravam ao redor da comida sacrificial da maneira mais indecorosa. Diante da perspectiva de se banquetearem uma vez mais, eles depressa esquecem as mágoas que tinham contra a humanidade pecadora, e se alegram bastante porque Utnapistim sobrevivera. Fosse acocorados de medo "como cães" ou enxameando gananciosamente “como moscas”, a baixa concepção das divindades estabelece um abismo intransponível entre as narrativas politeístas cuneiformes e a imponente narrativa monoteísta da Bíblia.
2. As Duas Narrativas Estão Em Diametral Contraste, Quanto às Suas Concepções Morais. É inevitável que uma idéia assim tão vil da divindade produza uma idéia errônea a respeito da moralidade. Esta é a razão para o elemento ético completamente obscuro, nas estórias cuneiformes. Com padrões místicos de conduta, por parte das divindades, e uma opinião duvido¬sa acerca do pecado, a narrativa babilônica confunde mui naturalmente as causas morais do Dilúvio, compromete a justiça dele, e apresenta-o mais como resultado do capricho dos deuses do que uma punição necessária de grandes pecados. Como conseqüência, as estórias do Dilúvio Babilô¬nico são de valor ético e didático muito duvidoso.
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“A narrativa bíblica, por outro lado apresenta o Dilúvio claramente como um julgamento moral enviado pelo único Deus onipotente, que é justo em todas as suas relações para com os filhos dos homens, que pune o pecador impenitente, mesmo que isso signifique” a destruição do mundo, mas salva o justo com sua mão poderosa e de forma divina. 22
O resultado é uma narrativa com objetivos didáticos e espirituais os mais eleva-dos, que é perenemente eficiente para despertar a consciência do mundo, advertindo o ímpio dos malefícios e dando esperança e conforto aos que temem a Deus.
3. As Duas Narrativas Estão Em Diametral Contraste, Quanto às Suas Concep¬ções Filosóficas. O pensamento babilônico era não apenas viciado por uma teologia incorreta, mas também pelo que é intimamente relacionado com uma teologia incorreta - uma filosofia falsa. Não sendo capaz de conceber uma divindade infinita e transcendental, que já existia quando ainda nada mais havia, a especulação babilônica confunde irremediavelmente espírito e matéria, e torna ambos eternos. Falha, assim em diferenciar espírito de matéria, e o espírito finito do Espírito infinito, e mais do que isso, demonstra ignorância dos primeiros princípios causais. Em vez de pressupor um Espírito Eterno que criou e controla toda a matéria, e usa as forças naturais da Sua criação para efetuar os seus objetivos, como no Gênesis, a versão babilônica atribui ingenuamente os vários fenômenos físicos do dilúvio a causas diversas, em forma de divindades. Assim é Adade, deus da tormenta e da chuva, que troveja. É Ninurta, deus dos poços e da, irrigação, que "causa a abertura dos diques". São os Anunaques,juízes do mundo subterrâneo, que erguem as seus archo¬tes iluminando a terra com o seu brilho". 23
No registro bíblico, em vívido contraste, é somente Deus, como Criador e Con-servador de toda a Sua criação, que dirige e orienta o fenômeno natural do Seu universo, para cum-prir o Seu propósito sapientíssimo. Tendo punido o pecado do homem com o uso de forças na-turais da Sua criação, e ao mesmo tempo tendo posto de lado, temporariamente, as leis que Ele mesmo havia ordenado para o mundo que criara, faz um concerto consigo mesmo, dizendo que "não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem... nem tornarei a ferir todo vivente" (Gênesis 8: 21), nem quebrar de novo o ritmo normal de um universo que está em ordem (Gê¬nesis 8: 22).
III. A EXPLICAÇÃO DAS SEMELHANÇAS
É óbvio que há alguma relação de origem entre as versões cuneiformes e a nar-rativa do Gênesis, em vista dos numerosos paralelos. Como no caso das estórias da criação, aqui também há três possibilidades gerais. Ou os babilônicos se apropriaram da narrativa hebraica, ou vice-versa, os hebreus se apropriaram da narrativa babilônica, ou, o que cremos ser a opinião certa, ambas provém de uma fonte comum de fato, que se originou de uma ocorrência verídica.
1. Os Babilônicos Se Apropriaram da Narrativa Hebraica. Esta explicação é extre-mamente improvável, e encontra pequeno apoio nos quartéis eruditos, visto que as placas mais re-motas que se conhecem são consideravelmente mais antigas do que o Livro de Gênesis, em relação à data deste. Os escritos babilônicos mais antigos relatando o Dilúvio datam possivelmente do ter-ceiro milênio a.C. É possível por outro lado, que a versão do dilúvio que agora constitui a narrati¬va hebraica possa ter existido em outra forma, séculos antes de ter assumido a forma presente.
2. Os Hebraicos Se Apropriaram da Narrativa Babilônica. Presentemente, esta é a explicação mais amplamente aceita, mas é pouca atraente para os estudantes conservadores da Bí-blia. Cônscios da sublimidade da narrativa bíblica, comparada com a extrema crueza da versão babi¬lônica, eles se dão conta da completa incongruência de pressupor uma dependência daquela a esta, es¬pecialmente à luz da doutrina bíblica da inspiração (lI Timóteo 3: 16;11 Pedro 1: 20-21). Os estudan¬tes conservadores ficam ainda menos impressionados com essas explicações, quando consideram o fa¬to de que, embora plenamente plausível a teoria não pode ser provada (Cf Driver, que diz que "a nar¬rativa hebraica deve ter sido originada da babilônica". Refutando esta opinião, veja The Gilmagesh Epic and Old Testament Parallels, de Heidel (Chicago, 1946). Cf A. T. Clay, que pressupõe uma origem amorita para as narrativas do Dilúvio).24
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Um dos principais argumentos aventados para alegar que os hebreus se apropria-ram da história do Dilúvio dos babilônicos, é o suposto colorido babilônico da estória do Dilúvio Hebraico. Na sua "essência", diz-se que ela "pressupõe um país sujeito a inundações, como a Babilô¬nia" 2S Contudo essa opinião é destituída de confirmação, no que tange à narrativa bíblica. O Gê¬nesis cita o rompimento de fontes subterrâneas e chuvas torrenciais dos céus, como causas físicas do Dilúvio. Mas é a Palestina e não a Babilônia, que é uma terra de fontes subterrâneas (Deutero¬nômio 8: 7), enquanto que a precipitação pluviométrica média da Palestina é cerca de quatro vezes maior que a da Babilônia. Sobretudo, este argumento derivado do suposto colorido babilônico da narrativa hebréia, ignora a extensão mundial do cataclisma, claramente indicada em várias passa¬gens bíblicas, de acordo com o que a estória não pode, de forma alguma, ser nativa da Babilônia. Pode ser que ela tenha tido uma origem oriental ou amorita, como insiste Clay, e tenha sido trans¬portada do oriente, tanto para a Palestina como para a Babilônia.
A declaração de Gênesis 8: 21."E o Senhor aspirou o suave cheiro" é também geralmente citada como sendo, virtualmente, uma citação "ipsis-verbis" (textual) da narrativa babilônica, e para provar uma dependência da narrativa hebraica à babilônica. Um exame cuida¬doso das passagens em questão, que indubitavelmente constituem um paralelo muito íntimo, mostra, no entanto, que um não pode ser considerado como uma citação palavra-por-palavra do outro, mas "não há uma única correspondência etimológica entre os termos empregados nesta versão, e os usados na outra",26 O que é ainda mais importante, o pensamento e expressão contidos na idéia de Deus aspirando um cheiro suave é comum no Velho Testamento e, de forma alguma, é estranho a ele (Cf. Levítico 26: 31; 1 Samuel 26: 19; Amós S: 21).
Da mesma forma, o argumento baseado numa semelhança surpreendente como a de betumar o barco "com betume por dentro e por fora" (Gênesis 6: 14), onde a palavra cofer, derivada da babilônica cupru, é usada em lugar de hemar ou zefeth, palavras que significam piche ou betume, em outras passagens do Velho Testamento (Gênesis 11: 3; 14: 10; Êxodo 2: 3; Isaias 34: 9), é considerado geralmente como prova decisiva de derivação da narrativa babi¬lônica. Contudo, é bem possível que devido ao fato de a indústria do betume se ter originado na Babilônia, onde essa substância era encontrada e tinha largo uso na antiguidade, e daí se espa¬lhou para outras partes do mundo semítico, o seu nome comercial original, que era babilônico, se tenha espalhado com ela.
3. Tanto a Narrativa Hebraica Como a Babilônica Provém de uma Fonte Comum de Fato, Que Se Originou De Uma Ocorrência Verídica. Esta opinião parece claramente ser a correta explicação das afiliações de origem entre elas. A conclusão de A. T. Clay é significativa:
Os assiriologistas, tanto quanto eu conheço, têm geralmente considerado como impossí¬vel a idéia de que houve uma tradição semítica comum, que se desenvolveu em Israel em um sentido, e na Babilônia em outro. Eles têm declarado sem reservas que as histórias bíblicas foram derivadas da Babilônia, terra em que eram nativas. Para mim sempre tem sido perfeitamente razoável que ambas as narrativas tiveram uma origem comum entre os semitas, alguns dos quais invadiram a Babilônia, enquanto que outros levaram as suas tradições para a Palestina. 27
As escavações arqueológicas não apenas têm revelado que a Mesopotâmia tinha tradições bem populares de um dilúvio universal, mas também evidências descobertas em lugares sírio-palestinos e nas Cartas de Amarna demonstram que, quando os israelitas entraram em Canaã", lá encontraram um povo que tinha Íntima relação com a civilização babilônica, da qual descendia Abraão, seu progenitor, e que usava a escrita e a língua babilônicas como idioma popular. Os he-breus não viviam uma vida isolada, e seria bem estranho se eles não possuíssem tradições semelhan¬tes às de outras nações semíticas.
Estas tradições comuns entre os hebreus são refletidas nos fatos autênticos e verdadeiros a eles entregues por divina revelação em seus escritos sagrados. Ê bem provável que Moisés estivesse familiarizado com essas tradições. Se ele estava, a inspiração o capacitou a registrá¬-las corretamente, purgadas de todas as incrustações do seu politeísmo grosseiro, e a adotá-las à elevada estrutura de verdade e puro monoteísmo. E se ele não estava familiarizado com elas, o
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Espírito de Deus era capaz de lhe dar a revelação desses acontecimentos, sem a necessidade de qualquer fonte oral ou escrita. Em qualquer caso, a inspiração sobrenatural era igualmente necessária fosse para purificar a pervertida tradição politeísta e refiná-Ia para que ela se moldasse ao monoteísmo, ou para dar uma revelação original de fatos autênticos, independentemente de fontes de referências orais ou escritas. (Veja quadro nO 3)
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