Conjeturas sobre a identidade de Cristo, V. 14) Chegou isto aos ouvidos do rei Herodes, porque o nome de Jesus já se tornara notório, e alguns diziam: João Batista ressuscitou dentre os mortos e, por isso, nele operam forças miraculosas. 15) Outros diziam: É Elias; ainda outros: É profeta como um dos profetas. 16) Herodes, porém, ouvindo isto, disse: É João, a quem eu mandei decapitar, que ressurgiu. Onde não há temor de Deus, lá reina soberana a superstição. A consciência de Herodes o atormentava por causa dum crime que fora cometido algum tempo atrás.
Ouvindo dos grandes feitos de Jesus, e como seu nome e fama se expandiam por todo o país, Herodes desenvolveu a teoria de que João Batista havia ressuscitado da morte e que, por causa disso, se manifestavam em Jesus poderes sobrenaturais; açulava o medo de espíritos e fantasmas. Outros acreditavam que Elias, que sempre estivera revestido de poderes especiais, e por cujo retorno definitivo os judeus esperavam ansiosamente, num mal-entendido de Ml.4.5, estava representado na pessoa de Jesus. Mais outros pensavam que o Senhor fosse um profeta semelhante aos antigos profetas, que estivesse andando pela terra dos judeus, pregando e operando milagres. Mas, ainda que Herodes tenha ouvido por seus cortesãos as opiniões de outros, fixou-se em sua própria idéia: É João, aquele que decapitei; ele ressuscitou. O tormento duma má consciência, dum coração culpado, é pior do que qualquer tortura que possa ser inventada pelo homem. Leva as pessoas a suspeitar lá onde não há motivo para suspeição, e coloca espíritos diante dos olhos lá onde não há razão para temor. Herodes tinha razões para tremer.
Herodes repreendido por João, V. 17) Porque o mesmo Herodes, por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe, porquanto Herodes se casara com ela, mandara prender a João e atálo no cárcere. 18) Pois João lhe dizia: Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão. 19) E Herodias o odiava, querendo matá-lo, e não podia. 20) Porque Herodes temia a João, sabendo que era homem justo e santo, e o tinha em segurança. E quando o ouvia ficava perplexo, escutando-o de boa mente. Aqui são contados alguns fatos pessoais sobre Herodes e sua família. Nesta passagem o nome rei lhe é aplicado, só por cortesia. Pois Herodes era meramente o tetrarca da Galiléia e da Peréia. Residira, por algum tempo, em Maquero, uma fortaleza segura dos judeus a oeste do Mar Morto. Construiu, porém, Tiberíades, junto ao Mar da Galiléia, como sua capital, embelezando-a com todo luxo que podia imaginar. Havia casado com a filha do rei Aretas, da Arábia, mas a rejeitara por causa de Herodias, então a mulher de Filipe, o meio-irmão de Herodes, mas não o etnarca. Sua filosofia de vida poder ser resumida na sentença: Comamos, bebamos e alegremo-nos, pois, amanhã estaremos mortos. O incidente mais triste de sua vida é aquele ao qual o evangelista, aqui, se refere. João Batista, com o destemor que devia caracterizar a cada pregador do arrependimento, repreendera-o severamente por causa de sua união adúltera com Herodias, dizendo-lhe que não foi certo, que não foi justo e que era proibido pela lei de Deus, que ele continuasse neste união anti-escriturística. “Aconteceu que o rei Herodes estava vivendo em ofensa pública e bem conhecida. Pois tinha consigo, como se fosse sua mulher legítima, a mulher de seu irmão Filipe que ainda vivia. Para João isto foi um caso obsceno, visto que por sua pregação devia repreender qualquer ofensa e advertir ao povo contra ela. Este era o seu chamado. Por isso, fez o que um pregador fiel deve fazer, e não está preocupado com o fato, que Herodes é um rei ilustre, mas, Assim como repreendeu outras pessoas por causa de seus pecados e as admoestou a evitá-los, assim, ele também repreende e admoesta a Herodes e diz que não lhe é correto ter a mulher de seu irmão. Isto desagradou muito a Herodes, mas à prostituta, ainda mais. Por isso, preocupou-se para que o sermão sobre ela não trouxesse fruto. Isto a levou a armar ciladas a João, porque seu desejo foi, ainda que sem sucesso, que ele morresse. Também Herodes com satisfação o teria feito, mas tinha medo, visto enxergar que o testemunho e o louvor do povo a respeito de João era muito grande. Por isso, porque João não queria deixar das suas repreensões e admoestações, mandou prendê-lo e lançá-lo na cadeia, para que não mais pudesse pregar tão publicamente”25). Circunstancialmente, Herodes, como acontece com tantos de caráter fraco, sentiu a influência deste caráter mais poderoso e moralmente mais nobre. Herodias não tinha quaisquer escrúpulos. Estava determinada e francamente buscava matar a João. Mas o fraco e vacilante Herodes se cia entre dois fogos: Dum lado o povo que estimava a João como profeta, e doutro lado Herodias exigindo sua morte. Enquanto isto, Herodes, mais do que uma vez, atentava para João, sendo que muitas palavras que ouvia da boca deste conselheiro o levavam a hesitar e a pensar duas vezes, antes de cometer mais alguma iniqüidade. Assim as coisas chegaram a um impasse, enquanto João estava preso em Maquero.
25 ) Lutero, 13a. 1162.
A festa de aniversário, V. 21) E, chegando um dia favorável em que Herodes no seu aniversário natalício dera um banquete aos seus dignitários, aos oficiais militares e aos principais da Galiléia, 22) entrou a filha de Herodias, e, dançando, agradou a Herodes e aos seus convivas. Então disse o rei à jovem: Pede-me o que quiseres e eu to darei. 23) E jurou-lhe: Se pedires mesmo que seja a metade do meu reino, eu ta darei. 24) Saindo ela, perguntou a sua mãe: Que pedirei? Esta respondeu: A cabeça de João Batista. 25) No mesmo instante, voltando apressadamente para junto do rei, disse: Quero que, sem demora, me dês num prato a cabeça de João Batista. Esta festa de aniversário foi propícia, vindo exatamente no tempo apropriado, para cooperar com os planos vingativos de Herodias, pois, ainda acalentava seu rancor contra João Batista. Herodes precisa celebrar seu aniversário num estilo tal, que seja digno de quem espera, brevemente, ter o título de rei, por permissão do imperador e do senado romanos. Foram convidados os poderosos e os governadores de milhares e as famílias ilustres da Galiléia, isto é, os oficiais do estado, civis e militares, e as pessoas importantes da sociedade da Galiléia. Formavam uma reunião imponente para um evento tão importante. A alegria do banquete festivo estava no auge, tendo os hóspedes bebido descomedidamente, estando já quase ébrios quando razão e sentidos já se foram, ainda que persista a articulação da fala. Provavelmente também havia as formas usuais de danças orientais, para o entretenimento dos hóspedes, quando pela ardilosa
Herodias foi introduzido um número que não estava no programa. Ela própria havia treinado sua própria filha nas danças sensuais das dançarinas. E a moça entrou na sala do banquete e dançou com irresponsável espontaneidade e despudor. A dança agradou a Herodes e aos que reclinavam ao
redor das mesas. Já haviam chegado à situação, quando tais exibições apelam com mais força. Herodes, imediatamente, fez uma promessa extravagante para a moça, encorajando-a a que mencionasse o prêmio que lhe cabia por esta dança. E, quando ela, seja por exaustão após o cansativo exercício ou por hesitação natural sobre a oferta, permaneceu indecisa, ele adicionou um juramento, dizendo-lhe que ela teria cumprido seu desejo, mesmo que a pretensão fosse a metade de seu reino; Um verdadeiro exemplo de generosidade emotiva e amadora, como certo comentarista diz. Pode ser que sua mãe a tivesse instruído anteriormente sobre o que devia pedir, como o relato de Mateus sugere mas não diz expressamente. Por isso, ele precisou de mais um incentivo. De qualquer modo, ela correu para a mãe que, prontamente, incute nela a necessidade de pedir e insistir numa só coisa. Havendo ou não qualquer outro motivo determinante, a dançarina Salome estava pronta a cumprir o pedido de sua mãe. Sem demora e em passo rápido, como se o assunto em questão fosse o mais importante e jovial do mundo, voltou à sala do banquete. Suas palavras indicam exatamente para a condição de seu coração: Eu quero que tu, sem demora, me dês numa bandeja a cabeça de João Batista. Palavras horríveis dos lábios duma jovem, “um pedido feito com um impudência fria e insolente que quase ultrapassa a mãe”.
A execução, V. 26) Entristeceu-se profundamente o rei; mas, por causa do juramento e dos que estavam com ele à mesa, não lha quis negar. 27) E, enviando logo o executor, mandou que lhe trouxessem a cabeça de João. Ele foi e o decapitou no cárcere, 28) e, trazendo a cabeça num prato, a entregou à jovem e esta, por sua vez, a sua mãe. 29) Os discípulos de João, logo que souberam disto, vieram, levaram-lhe o corpo e o depositaram no túmulo. O fato, que o desejo de Salomé foi cumprido imediatamente, torna muito provável o fato que o banquete foi realizado em Maquero. Quando a moça fez o pedido horrível, pode ter havido alguns dos que estavam ao redor da mesa, que tenham ficado boquiabertos. O próprio Herodes ficou, talvez, sério com o rumo inesperado dos fatos. Mas, era tarde demais, para mudar de opinião. Pois, provavelmente, também houve nele um certo sentimento de alívio. E, mesmo estando muito sentido, julgou que devia cumprir suas palavras e juramentos, como convinha a um fidalgo. Pois esta é a desculpa e a explicação que, via de regra, se dá. Não queria quebrar sua lealdade com a jovem, desconsiderando-a ou tratando o assunto como se fosse uma brincadeira. E, assim, o horripilante espetáculo foi encenado até seu fim amargo. Na corte do rei havia algum oficial, que em sua pessoa combinava a tarefa de estafeta, policial e carrasco. Foi a este que foi dirigida a ordem do rei para providenciar a cabeça de João Batista. E, tendo a execução sido cumprida na prisão, a cabeça de João foi trazida numa bandeja, como fora o pedido da dançarina, e ela, tendo-a recebido formalmente, a levou a sua mãe. Para os discípulos não restou nada mais a fazer, do que vir e depositar seu corpo numa sepultura, lamentando amargamente o fim precoce de um dos maiores profetas que já anunciaram a Palavra de Deus.
“O que aqui é contado da côrte e da vida na côrte do rei Herodes, é um quadro fiel do mundo, do modo de vida do mundo e da lascívia do mundo. Os filhos afáveis e flexíveis do mundo são, na maioria das vezes, mesmo quando pretendem ser ilustres, o que foram Herodes e herodias, meretrizes e adúlteros, e, caso não forem assassinos, são ladrões, enganadores, perjuros, etc. Mas o pecado maior do mundo é este, que não quer ouvir a admoestação de que rejeita a Palavra de Deus, e que está irado contra aqueles que o advertem contra a ruína e a perdição. Onde quer que o mundo, até mesmo o mundo aparentemente decente, culto e elegante, celebra suas festas, lá são saciados os deleites do banquetear, da folia e da embriagues. Lá se encontra o jurar, o blasfemar, o amaldiçoar. Lá jogos de azar, danças e orgias são a ordem do dia. E vinho e paixão inflamam coração e mente. Lá está em evidência uma conduta dissoluta e ímpia, a concupiscência dos olhos, a concupiscência da carne e a soberba da vida. E o fim do selvagem prazer e alegria é, muitas vezes, o assassinato, o derramamento de sangue e outras grandes vergonhas e vícios”26). Doutro lado, há nesta história uma lição para os cristãos fiéis. “Por isso, que ninguém sinta terror com respeito a sofrimento e cruz. Que ninguém inveje os perseguidores do evangelho, por estarem gozando glórias, e por serem grandes e poderosos. Pois, cruz e sofrimento é o único caminho pelo qual virás a possuir a herança e o reino de Cristo. E todos os santos, e o próprio Cristo, andaram por este caminho. Quem, pois, se sentiria atemorizado e queixoso por causa dele? Pois, será visto, quão rápido, a mudança sobrevirá aos tiranos, assim que o sofrimento deles lhes sobrevirá no tempo apropriado, e, finalmente, durará eternamente. Disso Deus nos guarde misericordiosamente, mas, antes, permita que soframos com São João Batista, toda forma de ignomínia e desonra, mas que alcancemos o reino de Deus. É, como nosso Senhor Jesus Cristo diz, que nos está posto cruz e sofrimento iguais aos dele”27).
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