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02 maio 2011

LUCAS 24.13-35

2. O encontro do Ressuscitado com os discípulos de Emaús – Lc 24.13-35
[Comentário Esperança, Marcos, p. 463s]
De todas as aparições do Cristo ressuscitado, nenhuma foi mais detalhadamente descrita pelos evangelistas, nem tampouco de forma mais bela e edificante, do que essa que se refere aos discípulos a caminho de Emaús. Nessa rica e minuciosa descrição recupera-se a memória de como Cristo não apenas se une aos peregrinos, mas também dialoga com eles amistosamente durante cerca de 2 a 3 horas a respeito das profecias do AT que prenunciam sua paixão, morte e ressurreição, e de como ele finalmente é reconhecido por aqueles na pousada em Emaús, e como eles apresentam com grande alegria toda a questão aos demais apóstolos.
Assim como João narra com muitos detalhes as duas aparições de Cristo diante de seus discípulos em Jerusalém, assim Lucas delineou um quadro vivo, cálido, claro e profundamente comovente da aparição do Senhor diante dos discípulos a caminho de Emaús. A narrativa do presente evangelista fornece um belo complemento às duas aparições trazidas por João. As demais revelações do Ressuscitado passam para um modesto segundo plano em comparação com essas três aparições. Lucas atribui uma eminente relevância a essa aparição do Senhor ressuscitado. A breve nota em Mc 16.12s constitui um indicativo para essa narrativa de Lucas.
O relato de Lucas acerca da aparição do Ressuscitado diante dos discípulos de Emaús traz o seguinte: a) o encontro de Jesus com os discípulos no caminho para Emaús (Lc 24.13-16); b) o diálogo dos peregrinos com o Ressuscitado (Lc 24.17-24); c) a interpretação de Jesus dos escritos do AT (Lc 24.25-27); d) a entrada do Ressuscitado na pousada em Emaús (Lc 24.28-32); e) a mensagem dos discípulos de Emaús sobre o Ressuscitado aos apóstolos do Senhor (Lc 24.32,33-36).
a) O encontro de Jesus com os discípulos no caminho para Emaús – Lc 24.13-16
13 – Naquele mesmo dia, dois deles estavam de caminho para uma aldeia chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios (cerca de 3 horas a pé).
14 – E iam conversando a respeito de todas as coisas sucedidas.
15 – Aconteceu que, enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e ia com eles.
16 – Os seus olhos, porém, estavam como que impedidos de o reconhecer.
De forma complicada Lucas enceta o relato: “E eis que dois deles estavam no mesmo dia no caminho para uma aldeia, que dista sessenta estádios de Jerusalém.” Todos os comentaristas dedicaram-se intensamente à tentativa de descobrir quem eram esses dois viajantes. É errado pensar em Simão Pedro, em Natanael ou em Tiago, o jovem, porque, quando retornaram, os dois peregrinos encontraram os onze discípulos reunidos.
A definição cronológica mais específica de Lucas “… no mesmo dia” situa esse episódio no primeiro dia da Páscoa, no qual aconteceu a ressurreição. Isso também decorre indubitavelmente de Lc 24.21. A hora exata do dia não é fornecida, mas podemos supor que a história se desenrolou na tarde do dia da Páscoa. Depõe em favor disso o fato de que os dois caminhantes sabiam que mulheres
e homens haviam estado na sepultura e a encontraram vazia. Acima de tudo os dois discípulos chegaram à aldeia ao entardecer, quando o sol se punha (Lc 24.29).
Lucas relata com exatidão que os dois viajantes iam à aldeia de Emaús, que fica a uma distância de sessenta estádios de Jerusalém. Iam caminhando profundamente tristes, mas não com os corações e lábios cerrados. O diálogo dos dois discípulos demonstra que a fé ainda não se apagara completamente em seus corações. Esses dois discípulos muitas vezes são descritos como homens totalmente desesperados. Mas não há garantia para isso. Verdade é que esses dois buscavam consolo e luz. Acreditavam poder se consolar pelo aconselhamento recíproco. A mensagem pascal das mulheres não conseguia alegrá-los. Por um lado a pedra fora tirada da sepultura, mas na opinião deles a única pessoa que poderia consolá-los já não estava entre os viventes. Porque, afinal, não fora vista por ninguém.
Enquanto os dois viajantes conversavam intensamente sobre a morte do Senhor, Jesus literalmente seguiu seus passos. Pelo fato de que os discípulos a caminho se lamentaram muito a respeito do Redentor, sua conversa teve como resultado que o Senhor, conforme prometera, em breve também aparecera de fato no meio deles (cf. Mt 18.20). O Senhor apareceu real e pessoalmente a esses discípulos no dia de sua grande vitória, a fim de lhes trazer luz e consolo. Por que deixou os outros discípulos em Jerusalém esperarem até a noite pelo seu aparecimento? Alguns intérpretes pensam que os discípulos de Emaús eram as ovelhas que estavam mais distantes de seu rebanho. Outro comentarista opina que Jesus lhes apareceu para preparar os apóstolos para a sua ressurreição. Do relato de Lucas, porém, pode-se depreender que Jesus apareceu aos discípulos por causa deles mesmos. Ainda que Cleopas e seu companheiro não nomeado não fossem personalidades destacadas do grupo mais amplo de discípulos do Senhor, o bom e fiel Pastor se importava justamente com os pequenos de seu rebanho.
Os dois caminhantes não reconheceram o Senhor, da mesma forma como Maria Madalena pensou que o Ressuscitado fosse um jardineiro [Jo 20.15]. Os dois discípulos consideraram Jesus um peregrino, assim como eles próprios eram viajantes. Marcos e Lucas relatam que os dois discípulos não reconheceram o Ressuscitado por razões determinadas. Marcos declara que Jesus apareceu com um aspecto diferente; Lucas menciona que os olhos deles estavam impedidos. Caberia esclarecer a pergunta: será que o Ressuscitado apareceu com um corpo novo? ou: será que acontecera uma transformação no Senhor, para que suas feições ficassem alteradas?
Os discípulos de Emaús não reconheceram o Senhor (Lc 24.16) até que ele lhes partiu o pão (Lc 24.30s). Maria Madalena reconheceu o Senhor somente quando ele a chamou pelo nome (Jo 20.14ss). Os discípulos também levaram certo tempo para reconhecer o Senhor ressuscitado quando esteve à margem do lago (Jo 21.4,7,12). Suas idas e vindas, portanto, caracterizavam-se por algo fantasmagórico e súbito. Quando os discípulos de Emaús finalmente reconheceram o Senhor, ele já havia desaparecido diante dos olhos deles (Lc 24.31). O Senhor também chegou subitamente no meio da reunião dos discípulos em Jerusalém (Lc 24.36), de modo que eles pensaram que estavam vendo a manifestação de um espírito (Lc 24.37). Em ambas as visitas relatadas por João o Ressuscitado apareceu da mesma forma repentina entre eles e, além de tudo, quando as portas estavam fechadas (Jo 20.19,26).
A corporeidade do Senhor era, portanto, uma corporeidade diferente. Era uma corporeidade transfigurada.
O fato de os discípulos de Emaús não reconhecerem o Ressuscitado não pode ser explicado a partir de sua incredulidade. Certamente podemos afirmar que foi Deus quem causou essa incompreensão. A força da ressurreição de Cristo na realidade não é constatada por meio de um olhar e sentir físicos, mas pela palavra e pela fé.
b) O diálogo dos viajantes com o Ressuscitado – Lc 24.17-24
17 – Então, lhes perguntou Jesus: Que é isso que vos preocupa e de que ides tratando à medida que caminhais? E eles pararam entristecidos.
18 – Um, porém, chamado Cleopas, respondeu, dizendo: És o único, porventura, que, tendo estado em Jerusalém, ignoras as ocorrências destes últimos dias?
19 – Ele lhes perguntou: Quais? E explicaram: O que aconteceu a Jesus, o Nazareno, que era varão profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo.
20 – E como os principais sacerdotes e as nossas autoridades o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram.
21 – Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel; mas, depois de tudo isto, é já este o terceiro dia desde que tais coisas sucederam.
22 – É verdade também que algumas mulheres, das que conosco estavam, nos surpreenderam, tendo ido de madrugada ao túmulo. [v. 1-11]
23 – E, não achando o corpo de Jesus, voltaram dizendo terem tido uma visão de anjos, os quais afirmam que ele vive!
24 – De fato, alguns dos nossos foram ao sepulcro e verificaram a exatidão do que disseram as mulheres; mas não o viram.
O desconhecido pergunta aos dois viajantes pelo objeto de sua discussão. Como conselheiro espiritual Jesus é cuidadoso e compreensivo. Ele sabia de sua aflição, porém deu-lhes oportunidade para aliviarem o coração por meio de um diálogo franco. Jesus colocou-se como desconhecedor, embora soubesse tudo. Os discípulos de Emaús podiam abrir-se franca e livremente com ele, ainda que esse diálogo demandasse um longo tempo.
O olhar sombrio dos dois viajantes era sinal de sua profunda tristeza e de sua dor ingente. A pergunta interessada do desconhecido estimulou-lhes tanto o coração que perceberam sua perda da forma mais intensa. O fardo do lamento pesava tanto sobre o coração que eles ficaram parados,simplesmente incapazes de continuar, tendo de tomar fôlego e suspirar profundamente.
Jesus perguntou como se não soubesse de absolutamente nada. Por isso a plenitude do lamento deles jorrou com todo o ímpeto. Queixaram-se ao amigável companheiro de viagem de sua profunda dor. Demandava coragem confessar-se aberta e livremente como adepto de Jesus, que havia sido crucificado e rejeitado pelo povo. Eles não tiveram receio de ser amigos desse executado. Seu amor ao grande profeta que Deus havia suscitado para o povo era tão grande que não podiam deixar de testemunhar e falar dele diante desse estranho.
Antes de os dois discípulos, portanto, falarem do lastimável desfecho que ocorrera com seu grande amigo nos últimos dias em Jerusalém, eles definem o Crucificado como um profeta. Jesus de Nazaré apresentou-se como profeta. Foi como profeta que ele se destacara cada vez mais. Revelara uma glória cada vez maior, de modo que seu ministério profético obteve cada vez mais reconhecimento. Nesse caso não é dito “que era”, mas “que se tornou um profeta”, visando apontar para a formação e o aumento de sua ação profética. Ele se tornou um profeta, poderoso em palavra e ação. Jesus agiu vigorosamente por meio de sua palavra, de modo que seus ouvintes foram tomados de total admiração (Lc 7.28s). Com as palavras do Senhor também coincidiam seus feitos e obras. Ao que parece, os dois viajantes aludiam aos prodígios do Redentor, a seus milagres e sinais. Ainda que os profetas da antiga aliança tenham feito milagres, os atos milagrosos do Senhor superavam todas as obras dos profetas.
Após uma breve caracterização da pessoa de Jesus os discípulos passam a relatar as coisas terríveis que sucederam a esse grande profeta nesses dias em Jerusalém. Os maiorais da hierarquia e os líderes de todo o povo condenaram esse profeta à maldição da morte na cruz. Crucificaram-no para acumular sobre ele o máximo de infâmia. Os dois caminhantes sabiam que os sumo sacerdotes e príncipes do povo não o crucificaram pessoalmente por intermédio de seus guardas, mas que fora Pilatos quem dera a ordem. No entanto estavam muito bem informados sobre todos os acontecimentos, de que os sumo sacerdotes e líderes deviam ser considerados os verdadeiros causadores de sua crucificação. Em tom lastimoso acusam os líderes de seu povo de ter assassinado terrivelmente esse reconhecido profeta de Deus, de modo que esse profeta tivera de sofrer esse fim por culpa dos sumo sacerdotes.
Ao homem de Nazaré, poderoso em feitos e palavras, que inicialmente é visto como um profeta, eles agora vêem como o profeta prometido por Moisés (Dt 18.18), que seria capaz de realizar a redenção de Israel. O profeta que redimiria Israel deve ser entendido como um homem que torna a erigir o trono real de Davi, que aniquila os inimigos do povo de Deus, que submete a si toda a terra. Com coração partido e cheio de dor eles se defrontavam com o sepulcro vazio do Senhor, que devorara todas as suas esperanças.
[22] As palavras gregas seguintes alla ge kai são muito difíceis de traduzir. Podem ser reproduzidas por “Mas ainda também…” Dessas palavras pode-se depreender que ainda havia algo que talvez pudesse de alguma maneira reerguer as esperanças arrasadas. Apesar de tudo que haviam
experimentado e padecido ainda existia algo que reduzia um pouco o pavor e o espanto diante da paixão e morte do Redentor. Apesar de toda a dor restava-lhes ainda um pequeno vislumbre de esperança. Em suas palavras transparece o que isto era: citam o “terceiro dia”. Eles haviam esperado silenciosamente por esse terceiro dia. Esperavam nesse dia a solução do enigma da morte do Messias na cruz e uma grande guinada de toda a situação. Jesus havia falado com toda a determinação desse terceiro dia após sua morte. Mas eles não compreendiam o conteúdo da promessa de Jesus nessas palavras.
Os dois viajantes relatam ao desconhecido que algumas mulheres do grupo de discípulos do Senhor provocaram neles espanto, pavor, admiração ou surpresa. O que elas haviam contado de manhã apagara neles impiedosamente o último vislumbre de esperança. Depois dessa notícia deram adeus a todas as esperanças e saíram de Jerusalém, porque agora tudo acabara. As mulheres foram à sepultura bem cedo no terceiro dia. O corpo do crucificado, ao qual buscavam, não se encontrava mais ali. Na seqüência elas vieram declarando ter visto uma aparição de anjos que disseram: “Ele vive”. Os dois discípulos não emitem um julgamento sobre essa aparição, mas deixam a questão de lado. A afirmação dos anjos sobre a ressurreição de Jesus, relatada pelas mulheres, não era digna de crédito por parte dos dois discípulos.
Depois da notícia das mulheres, porém, dois apóstolos haviam ido à sepultura, a fim de averiguar ali os fatos. Os viajantes não dizem quem eram esses dois apóstolos. Contudo certamente será correto pensar em Pedro e João. Os dois homens constataram que as mulheres haviam informado fatos verdadeiros: não haviam tido nenhuma visão, mas encontraram a sepultura vazia. Aqueles anjos teriam dito que ele estava vivo – eles foram para lá a fim de procurar aquele que estaria vivo, porém não o encontraram. Os dois discípulos chegam à conclusão de que seria inconcebível que Jesus tivesse ressuscitado dentre os mortos. Se assim fosse, ele teria se revelado a esses homens. Essa conclusão reveste-se de certa razão. Os dois viajantes encontravam-se na mais deprimente disposição de espírito. Haviam esperado que algo acontecesse no terceiro dia. Apesar de receberem notícias muito estranhas a respeito de anjos que haviam se manifestado, a sepultura estava vazia e o Ressuscitado não se fizera visível. Como eles não haviam entendido os pensamentos de Deus, não conseguiam crer na gloriosa ressurreição do Redentor. Conceitos falsos pré-estabelecidos retinham a luz da verdade. Trevas encobriam-lhes a claridade do Senhor.
c) A explicação de Jesus acerca dos escritos do AT – Lc 24.25-27
25 – Então, lhes disse Jesus: Ó néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!
26 – Porventura, não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória?
27 – E, começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras.
No início o Ressuscitado não trouxe aos deprimidos nenhuma palavra de consolo, mas primeiramente uma dura correção. A linguagem enérgica do Senhor provavelmente deveria ajudá-los a animar-se. No começo Jesus chama os dois viajantes de “néscios”. Carecem do entendimento apropriado e de discernimento claro. Se tivessem entendimento, agora não estariam tão tristes, mas rejubilariam e agradeceriam a Deus pela verdadeira redenção do povo dele.
A raiz de sua ignorância é a lerdeza de coração. O coração dos discípulos se embotara. Esperavam que o grande profeta, poderoso em atos e palavras, os faria usufruir a glória e bem-aventurança do povo eleito. Sem dúvida prezavam e valorizavam o que os profetas haviam anunciado acerca da glória do Messias e de seu reino, porque entendiam a linguagem figurada como descrições literais do glorioso reino futuro. As profecias, porém, acerca da paixão e morte do Messias haviam permanecido estranhas e obscuras para eles. Cristo não via outra coisa em sua paixão e morte senão o cumprimento da profecia. Os discípulos néscios e lerdos escandalizaram-se justamente naquilo que fazia de Jesus o Messias. Sua trajetória passou pelo padecimento até a glória. A paixão representou para ele a ponte, a transição da condição de humilhação para o estado de exaltação.
O Ressuscitado havia proposto aos dois discípulos uma pergunta axial, depois de tê-los remetido para as profecias do AT. Se o Senhor desejava obter uma resposta à sua pergunta ele primeiramente precisava dar-lhes um ensinamento profundo. Por essa razão o Senhor começou a explicar-lhes as profecias messiânicas, que se referem à sua paixão e à glória subseqüente. Era uma instrução fundamental. Jesus não se limitou a expor aos discípulos apenas algumas passagens do AT, mas
começou com Moisés e interpretou-lhes todas as passagens dos profetas. Os discípulos eram conduzidos do crepúsculo matinal à luz do dia pela elucidação do que é o próprio Jesus Cristo. Pode-se notar um avanço nas profecias das Escrituras, porque no início Deus ainda fala de maneira encoberta acerca da paixão e morte do Messias, até falar claramente delas no final. No começo são apenas leves alusões, mais tarde, porém, anúncios claros. Se o Ressuscitado tivesse êxito em convencer os discípulos de que todo o AT profetiza acerca da paixão e morte, bem como da ressurreição do Messias, então tudo estaria ganho. O Ressuscitado visava construir a fortaleza da fé sobre o alicerce do AT. Através de uma interpretação exaustiva ele mostrou aos discípulos como as diversas profecias se encaixam em um sólido edifício. Uma interpretação do AT que não trouxer, nesses escritos, profecias que apontam para Cristo, prenúncios de sua paixão e morte e de sua ressurreição não tem lugar na igreja de Jesus.
d) A entrada do Ressuscitado na pousada em Emaús – Lc 24.26-31
28 – Quando se aproximavam da aldeia para onde iam, fez ele menção de passar adiante.
29 – Mas eles o constrangeram, dizendo: Fica conosco, porque é tarde, e o dia já declina. E entrou para ficar com eles.
30 – E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu.
31 – Então, se lhes abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles.
Não é dito quanto tempo durou o ensino. Os dois discípulos finalmente haviam alcançado o alvo de sua viagem. O companheiro de viagem, porém, parecia ainda não ter chegado a seu destino. Provavelmente o Senhor fez ares de prosseguir para que eles se conscientizassem de que ele queria abandoná-los e de que eles não podiam largá-lo.
Os dois discípulos sentiram profundamente o que o desconhecido significara para eles nessas poucas horas. Por isso insistiram com ele, pedindo que permanecesse com eles. São tímidos. Insistem com o desconhecido para que fique com eles não por causa deles, mas por causa de si mesmo. O acompanhante deve ficar ali porque a noite já teria começado. Deve ficar porque está ficando tarde; um peregrino pára de caminhar e descansa quando chega o entardecer e começa a noite.
O Senhor atende seus insistentes pedidos. Ele entra na casa para permanecer com eles. Agora o Senhor não se sente como hóspede dos dois, mas age como Senhor e Mestre, como dono da casa no meio deles. Depois de se terem acomodado à mesa, o Senhor tomou nas mãos o pão, proferiu a fórmula de bênção sobre ele, partiu-o e o distribuiu. Jesus jamais consumiu alimento e bebida sem dar graças ao Doador de todos as boas e perfeitas dádivas. Em outras ocasiões o Senhor também proferia a palavra de bênção sobre o pão, depois do que o partia e distribuía (cf. Mt 14.19; Mc 6.41; Lc 9.16; Jo 6.11). Nesse momento eles reconheceram aquele a quem não haviam identificado durante horas, embora ele estivesse a caminho com eles e falando com eles.
Na realidade o Ressuscitado somente se revelou para de imediato tornar a se ocultar, e não para permanecer junto dos discípulos. Os discípulos se Emaús tiveram de reconhecer que ele lhes concedeu sua presença visível e reconhecível apenas por curto tempo, e que fisicamente logo se afastara outra vez deles. Tão logo o reconheceram, tornou a desaparecer de diante de seus olhos.
e) A mensagem dos discípulos de Emaús sobre o Ressuscitado aos apóstolos do Senhor – Lc 24.32-35
32 – E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha as Escrituras?
33 – E, na mesma hora, levantando-se, voltaram para Jerusalém, onde acharam reunidos os onze e outros com eles,
34 – os quais diziam: O Senhor ressuscitou e já apareceu a Simão!
35 – Então, os dois contaram o que lhes acontecera no caminho e como fora por eles reconhecido no partir do pão.
O Ressuscitado desaparecera. Os dois discípulos estavam novamente a sós. O fato de dizerem que já na estrada seu coração ardia quando ele lhes explicava a Escritura não significa que esse fogo já se apagara. Pelo contrário, o fogo era tão forte que eles se sentiram impelidos a ir para Jerusalém, falar aos outros irmãos, para atiçar e desencadear com o seu fogo as chamas da bendita alegria pascal. O Ressuscitado não havia dado instruções aos dois discípulos para que levassem a seus irmãos a ditosa
notícia da ressurreição. Eles sabiam em que estado se encontrava o grupo dos irmãos quando saíram de Jerusalém. O amor fraterno os impelia a agradecer ao Ressuscitado que os havia ajudado a crer, servindo a ele em seus irmãos e instruindo-os na fé.
Os dois viajantes desejavam contar aos onze discípulos, cheios de alegria, que o Ressuscitado lhes aparecera. Tão logo, porém, entraram no recinto em que os onze estavam reunidos, foram recebidos com o alegre testemunho: “O Senhor de fato ressuscitou e apareceu a Simão”. A aparição experimentada por Simão desencadeou nos demais discípulos a decisão para crer na ressurreição de Jesus.
Após essa vigorosa e alegre saudação de Páscoa por parte dos onze e da igreja reunida os dois viajantes relatam suas experiências. Também eles contam com grande felicidade acerca de uma aparição do Ressuscitado.

1 PEDRO 1.17-25

17 – Ora, se invocais como Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo as obras de cada um, portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação,
18 – sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram,
19 – mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo,
20 – conhecido, com efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim dos tempos, por amor de vós,
21 – que, por meio dele, tendes fé em Deus, o qual o ressuscitou dentre os mortos e lhe deu glória, de sorte que a vossa fé e esperança estejam em Deus (ou: de sorte que vossa fé também seja esperança em Deus).

22 – Tendo purificado a vossa alma, pela vossa obediência à verdade, tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente,
23 – pois fostes regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente.
24 – Pois “toda carne é como a erva, e toda a sua glória, como a flor da erva; seca-se a erva, e cai a sua flor;
25 – a palavra do Senhor, porém, permanece eternamente.” Ora, esta é a palavra que vos foi evangelizada.

17 Na seqüência continua sendo descrita a obrigatoriedade de uma vida santa: E se invocais como Pai aquele que julga sem acepção de pessoas segundo a obra de cada um, andai com temor durante o tempo de vossa condição de forasteiros. O se… não expressa dúvida, mas uma argumentação, da seguinte forma: como pessoas que invocam a Deus como Pai estais particularmente próximos dele; nesse caso, no entanto, é preciso que vos conscientizeis de quem estais próximos (daquele que julga corretamente) e quais são as conseqüências que isso acarreta (andar com temor). A carta não se dirige a pessoas especialmente eleitas, mas a todos os membros das igrejas. Certo é que todos invocam o Pai, a quem eles oram. Afinal, foram designados como aqueles “que invocam o nome do Senhor” (At 9.14,23; 22.16). Agora é dito: “se o invocais como Pai…”. Jesus havia ensinado os discípulos a invocar a Deus como “Pai” (Mt 6.9). Na verdade isso somente é possível “em nome de nosso Senhor Jesus”, somente com base em seu sacrifício, pelo qual “temos o acesso, a adução até o Pai” (Ef 2.18). Por meio dele, o Filho, seus discípulos se tornam filhos de Deus e recebem o Espírito da filiação, por meio do qual podem exclamar: “Abba, Pai!” (Rm 8.14s; Gl 4.6).
Chegaram, pois, tão perto do Deus santo, que têm o privilégio de usar diante dele a mesma interpelação – Abba – usada pelo Filho. No mesmo instante, porém, Pedro acrescenta: que profere
sua sentença sem acepção de pessoas segundo a obra de cada um. Essa afirmação está prefigurada no AT (Sl 89.27; Ml 1.6; Jr 3.19; Sl 62.12; Pv 24.12 – com especial nitidez na LXX). No AT, como também aqui a palavra visa alertar contra a auto-segurança e leviandade com vistas ao pecado. Diversas pessoas podem pensar que estão particularmente próximas de Deus, que sobre elas governa tão somente a bondade do Pai e não mais a severidade do Juiz. Os seus pecados não poderiam mais suscitar a ira de Deus, já que estariam sob a graça. Quem pensa dessa forma infelizmente compreendeu a Deus de maneira equivocada. Deus é aquele que julga sem acepção de pessoas. Deus sem dúvida tem filhos, mas não favoritos. Ele não é condescendente com o pecado nem mesmo em seus filhos, mas os julga. Deus julga segundo a obra de cada um. O cristão tampouco pode argumentar com sua filiação divina quando Deus analisa a vivência. Demanda-se a obra de cada um. Primeiramente isso diz respeito aos não-crentes, que são indesculpáveis, porque “conheciam a Deus e não o honraram como Deus nem lhe agradeceram” (Rm 1.21). Mas igualmente incide sobre os crentes, cuja obra de vida ainda precisa ser manifesta perante a face do Cristo (2Co 5.10): por isso o singular: “a obra de cada um”. O crente na realidade não entra no juízo (Jo 5.24) – afinal, já está salvo pela fé em Jesus (1Co 3.15; Jo 3.18) – não obstante seu trabalho ainda tem de passar pelo fogo examinador (1Co 3.12-15).
Andai com temor durante o tempo de vossa condição de forasteiros. No grego as palavras “com temor” estão enfaticamente posicionadas no início. Pela construção da frase e de acordo com o sentido, a conduta no temor de Deus representa centro e alvo dos v. 17-21. O sentido é a “reverência” na verdadeira acepção da palavra, ou seja, uma atitude que honra e teme a Deus como Pai e Juiz. Não é tanto o temor diante do castigo (1Jo 4.18), mas o temor diante do Pai, o receio absoluto de suscitar sua ira. Andai com temor significa: Sede meticulosos com vossa vida como um viver perante Deus! Da mesma forma fica claro em Paulo que o “temor do Senhor” é premissa básica da vida santa. Por que essa seriedade? Porque a situação é séria: … durante o tempo de vossa condição de forasteiros. Para tempo consta o termo chronos, porque se trata do tempo que transcorre, que passa. Quem se conscientiza de que é forasteiro cuida cautelosamente para alcançar a pátria, vencendo todos os perigos da terra estranha.
18 Sabendo que não fostes redimidos com coisas transitórias, prata ou ouro, de vossa conduta vã, transmitida pelos pais. Vale notar que não se diz: podeis ter esperança de um dia vos tornardes bem-aventurados, mas “sabeis que fostes redimidos”. Da experiência da redenção forma-se a certeza. Contudo, a certeza de redenção, de salvação, não é farisaísmo autoconfiante, mas dádiva alegradora de Deus para aquele que experimentou a libertação real por intermédio de Jesus. E uma conduta correta se torna viável quando há consciência de quanto custou a redenção. Por que não a recaída na vida antiga, por que andar com temor? Porque a redenção da conduta antiga custou um prêmio de resgate infinitamente elevado. É palpável aqui a comparação com o antigo comércio escravista. Um escravo era liberto do domínio de um proprietário por um prêmio elevado, para viver para o novo senhor. Desse modo Jesus nos redimiu na cruz da conduta vã, transmitida pelos pais. Na Bíblia latina, a Vulgata, consta: redimidos… da tradição paterna.
Por natureza todas as pessoas encontram-se na tradição dos pais. Enquanto, pois, a geração mais velha em geral está convicta de que transmite à juventude bons valores básicos, de que com razão se pode esperar uma vida sensata e disciplinada, a Bíblia diz algo bem diferente: os pais de qualquer modo apenas transmitem à juventude o que já receberam, a saber, uma conduta vã. O ser humano separado de Deus em geral não se conscientiza do que significa conduta vã. Sim, ele só consegue suportar a vida presente porque e enquanto não se conscientizar disso até as mais extremas conseqüências. Porque o veredicto vão atinge até mesmo muitas coisas das quais o ser humano acredita que perdurarão “eternamente”. A isso se agrega um segundo ponto: áreas do conhecimento moderno como a doutrina da hereditariedade, a psicologia, a pedagogia e a sociologia nos explicitam que poder possui para o ser humano a conduta legada pelo pai e pela mãe. Características hereditárias e a educação dos primeiros anos de vida determinam o ser humano para toda a sua vida. Quando, pois, o pai ainda vive na incredulidade e no paganismo, sua perdição e seus pecados configuram a vida dos filhos desde o primeiro instante. Um olhar para o paganismo antigo e novo evidencia para onde vão as coisas quando as pessoas vivem sem lei e sem Deus durante várias gerações. Forma-se um estilo de vida, uma conduta transmitida pelos pais, do qual o indivíduo dificilmente se distanciará. Esse estilo de vida e o absurdo dessa conduta se impõem como uma escravidão sobre a
vida dos filhos. O ser humano não consegue salvar-se sozinho dessa conduta marcada pela tradição dos pais. É somente o resgate por outro que traz a ajuda necessária.
Qual foi o preço desse resgate para Deus? Não coisas transitórias, prata ou ouro. São esses os meios usuais de pagamento. Com eles se podia comprar a liberdade de escravos. Porém o resgate de que a humanidade escravizada precisava é incomparavelmente mais pesado! Prata e ouro, os mais importantes meios de pagamento na terra, são insignificantes demais para libertar da velha conduta e possibilitar a nova. Embora de alto valor, não deixam de ser passageiros como a terra.
19 Contudo “o que Deus investiu em nós” é incomparavelmente mais precioso. Por isso consta aqui: redimido… com o precioso sangue de Cristo como um cordeiro sem defeito e sem mácula. Nem prata nem ouro são capazes de libertar uma pessoa do cativeiro da conduta vã. De fato, porém, é o precioso sangue do Cristo que tem o poder de libertar e transformar pessoas de tal maneira que toda a sua vida seja renovada. Aqui como em outros textos o grego christós de forma alguma consta somente como nome, mas com a conotação plena do título de majestade do AT e do elevado predicado para o Ungido de Javé, há muito previsto por Deus e anunciado de forma correspondente pelos profetas. Isso decorre com toda a clareza tanto da metáfora inserida a respeito do “Cordeiro”, que na realidade, como ainda veremos na seqüência, evoca a profecia messiânica de Is 53 e a profecia sobre o Messias contida no serviço sacrifical do AT, como também da frase relativa subseqüente (v. 20). E por isso o sangue dele é tão precioso, por ser o Messias Filho unigênito, a coisa mais preciosa que o Pai no céu possui. Está sendo definido como Cordeiro sem defeito e sem mácula. No NT isso não constitui apenas uma comparação, mas ele realmente “é” o Cordeiro de Deus. Em Jo 1.29 é chamado de Cordeiro de Deus que leva embora o pecado do mundo, acabando com ele, eliminando-o para sempre. Sim, até na eternidade Jesus, nosso Senhor, será exaltado e adorado também no céu como “o Cordeiro”. Pois consta expressamente no louvor de miríades de anjos: “Digno é o Cordeiro que se deixou imolar…” (Ap 5.12). Os intérpretes na realidade não concordam na questão se, além de Is 53.7, Pedro também pensava no cordeiro pascal (Êx 12.3) e nas prescrições sacrificais do AT (p. ex., em Êx 29.1; Lv 22.17-25), mas com certeza é esse o caso. No Crucificado contemplamos o Cordeiro de Deus, no qual não apenas se realizou a profecia messiânica de Is 53, mas também se cumpriu o significado profético do cordeiro pascal, bem como de todos os sacrifícios que foram oferecidos no templo em Jerusalém. O fato de que temos de recordar Is 52s já é evidenciado por Is 52.3: “Sereis resgatados não com prata.” Em contraposição, a formulação do Cordeiro sem defeito e sem mácula vai além de Is 53, apontando sem dúvida para as determinações gerais de oferendas no AT, segundo as quais somente se podiam sacrificar animais sem defeitos. Aliás, a primeira igreja de forma alguma se fixou em passagens bíblicas específicas, mas via o serviço sacrifical de sangue do AT de forma bem genérica como um tipo, como prefiguração de Jesus Cristo. “Sem derramamento de sangue não acontece remissão”, como se pode sintetizar o sentido do serviço sacrifical (Hb 9.22). Por que, no entanto, sacrifícios tão terríveis e esse derramamento de sangue? Porque o ser humano desperdiçou sua vida perante Deus através do pecado. A conseqüência disso foi que ele de fato perdeu sua verdadeira “vida” (Gn 2.17). Porque o ser humano pode ter a verdadeira vida somente na comunhão com seu Criador, a fonte da vida. Separada do Criador, a criatura somente encontrará a morte (Rm 5.12; 6.21b,23a). Nessa situação os sacrifícios de animais no AT tinham a finalidade de ser para o ser humano uma permanente recordação de sua carência maior, do pecado como separação de Deus – e ao mesmo tempo de uma profecia messiânica: indicativo e preparação para o Prometido, que um dia levaria o pecado dos humanos definitivamente embora. Assim Jesus como Cordeiro de Deus é a revelação da santa ira de Deus sobre o pecado e ao mesmo tempo a revelação do maravilhoso amor de Deus, que não consegue suportar a morte do pecador. Essa mensagem constitui o centro da Bíblia. Por isso Paulo declara: “Decidi nada conhecer entre vós senão unicamente a Jesus Cristo, e a ele como Crucificado” (1Co 2.2).
Quem é capaz de produzir redenção de pecados para outros? Que qualidades o cordeiro precisa ter? Pedro complementa a exigência do AT sem defeito (Êx 29.1; Lv 22.17-25; Ez 43.22) com uma segunda: sem mácula. Pois, enquanto no AT era necessária uma perfeição meramente física do animal sacrificado, o Cordeiro da nova aliança tinha de ser livre de todas as manchas. No NT “mancha” (em grego spilos, também mancha de sujeira ou vergonha) tem conotação espiritual e moral, não física, como mostra Ef 5.3s. Cordeiro sem mácula significa, portanto: o Cordeiro de Deus não podia ter nem uma mancha sequer, nenhum pecado, ao pretender colocar-se no lugar das pessoas, sacrificar-se por elas e redimi-las. Unicamente Jesus atende a essa condição. Unicamente ele
podia redimir a humanidade, o único puro e sem pecados. Ele entregou por nós seu precioso sangue. Fez tudo isso para nos resgatar para a nova vida! Isso fundamenta a exortação: levem a sério sua vida, andem com temor! Saibam que foi paga com alto preço. Lidamos com cautela com aquilo que teve um alto custo!
20 Cristo, o Cordeiro de Deus, na verdade foi previsto antes da fundação do mundo, mas revelado na última parte dos tempos por vossa causa. O por vossa causa perpassa todo o trecho. Aconteceu por vossa causa que ele foi revelado na última parte dos tempos. Deus escolheu o Messias previamente, literalmente o “reconheceu antes” da fundação do mundo. Embora previsto antes, foi somente agora revelado – nisso reside a tensão desse versículo. As palavras mostram nitidamente que existe um plano de salvação de Deus. Tudo nesse plano de salvação aponta para a revelação do Cristo. Já antes da criação do mundo Deus olhou para Cristo, que haveria de se tornar o Cordeiro, e somente porque o Filho estava disposto a se tornar o Cordeiro de Deus o mundo continuou a ter sentido e durabilidade após a queda no pecado. Não há nenhuma base bíblica para dizer (e isto até mesmo representa uma blasfêmia) que a morte de Jesus na cruz seria a catástrofe de sua nobre vida. Não, sua vida e morte foram previstas bem antes, são sentido e alvo de toda a história da salvação. Por isso tudo esperava para que essa pessoa prevista finalmente aparecesse, que fosse manifesta. Algo é manifesto quando na realidade está presente, mas ainda oculto. Portanto a afirmação de Cristo foi revelada “na última parte dos tempos por vossa causa” explicita isto: agora é a grande hora para a qual tudo aponta. Agora, em Jesus, Deus saiu da ocultação e cuidou dos humanos, trazendo-lhes a salvação. Por isso essa palavra também consta de outras importantes passagens do NT, que tratam do agir de Deus referente à humanidade. Rm 1.17: no evangelho revela-se a justiça de Deus; Rm 1.18: revela-se a ira de Deus; Rm 3.21: agora, porém, foi revelada a justiça de Deus. A era atual é chamada de última parte dos tempos ou também “o último dos tempos, o fim dos tempos”.
21 Em seguida é detalhado o “por vossa causa”: “… que por meio dele tendes fé em Deus, que o despertou dentre (os) mortos e lhe deu glória, de modo que vossa confiança também é esperança em Deus (ou: de modo que vossa confiança e vossa esperança se dirigem a Deus)”. Com essas palavras são claramente definidos e simultaneamente delimitados os destinatários da salvação. Naquele que tem fé cumpre-se a intenção salvadora de Deus, nos demais não. Assim os apóstolos fizeram distinção entre aqueles que vivem na obediência de fé e aqueles que se recusam. Essa é a diferenciação bíblica e necessária dos seres humanos. Quem dissimula e deixa de lado essa diferença fundamental não age por amor, mas por cegueira ou com a intensão de agradar a pessoas. A fé surge por meio dele. A fé vem de Jesus. Incendeia-se na pessoa dele, em seu sacrifício por nós. Sim, é ele que suscita em nós a fé por meio do Espírito Santo. Uma vez que o Filho e o Pai são um, a fé originada de Jesus e dirigida para ele é ao mesmo tempo fé em Deus. Jo 12.44: “Quem crê em mim não crê em mim, mas naquele que me enviou.” Ainda em sentido mais amplo ter aceitado a fé mediante Jesus é ter fé em Deus: no fato de ressuscitar o Filho pode-se reconhecer que Deus é um com Jesus e, ao mesmo tempo, que possui poder. Por isso, quem abraça a fé por meio de Jesus, crê naquele que o despertou dentre (os) mortos. O ponto em que se decide tudo é a ressurreição de Jesus. De forma alguma ela é apenas um entre vários episódios da salvação, mas o fundamental. Ao ressuscitá-lo, Deus confirma a vitoriosa exclamação do Crucificado: “Está consumado!”. Confirma desse modo a morte do Filho na cruz como sacrifício de expiação pelos pecados dos seres humanos. Sem o acontecimento da Páscoa não haveria perdão: nesse caso ainda continuaríamos em nossos pecados (1Co 15.17), e não existiria uma esperança viva para nós (1Co 15.3). Ressuscitado dentre os mortos significa: da multidão dos mortos o “Pastor das ovelhas, que é grande pelo sangue de uma eterna aliança” – como primícias (1Co 15.23) e conseqüentemente como “desbravador para a vida” (At 3.15) – foi conduzido para fora (Hb 13.20).
Deus despertou o Crucificado e lhe concedeu glória. A palavra glória (em grego doxa) ocorre com especial freqüência em 1Pe (9 vezes). Isso se explica pelo fato de que a carta se dirige a igrejas sofredoras, cuja esperança precisa ser fortalecida. Doxa significa a princípio: “esplendor de luz”, assumindo depois o sentido de “honra, majestade”. É expressão da plenitude de luz e potência que cercam a Deus, e simultaneamente do poder vitorioso que ele exerce. Deus concedeu glória ao Filho. Com isso Jesus obteve participação na glória de Deus. Assim como a ressurreição de Jesus constitui a razão para que os que lhe pertencem também sejam ressuscitados, assim a glorificação de Jesus é a razão para que os seus também recebam glória. Isso quer dizer que confiança em Cristo também significa ao mesmo tempo esperança em Deus. Nossa tradução é preferida por um considerável
número de comentaristas (cf. Kühl, p. 127, também Weizsäcker, Menge, Hauck). Cabe levar em conta que o intuito do apóstolo é fortalecer a esperança das igrejas atribuladas da Ásia Menor. No entanto muitos, sobretudo os exegetas mais recentes, também traduzem no sentido da versão alemã de Lutero: “De modo que vossa fé e vossa esperança estejam (dirigidas) para Deus”, i. é, possam se dirigir a Deus. Não há como decidir a questão somente a partir da gramática. Também essa última tradução faz sentido. Não é preciso entendê-la como duplicação desnecessária do “tendo fé em Deus” no início do versículo. Pode significar o seguinte: pela ressurreição de Jesus e pela glória que lhe foi dada vossa fé e vossa esperança não são sensação subjetiva e oca, mas têm um fundamento objetivo em Deus. A glorificação de Jesus garante também a nossa glorificação e faz com que nosso crer e esperar pelo agir salvador de Deus tenha fundamento.

22 O mais importante está na frase principal. Ela diz: Amai-vos persistentemente uns aos outros de coração. O trecho trata do amor aos irmãos. Antes de falar dele, Pedro explicita a premissa: depois que purificastes vossas almas na obediência à verdade. A estrutura frasal deixa claro isto: o amor aos irmãos é precedido pela purificação da alma, mais precisamente de tal forma que ela não acontece de uma vez por todas, mas que precisa acontecer constantemente, para viabilizar sempre o amor aos irmãos. Essa seqüência indicada no texto possui também grande relevância prática: onde faltar o amor aos irmãos na igreja é preciso iniciar pela purificação. A purificação acontece na alma. O termo “alma” ocorre com relativa freqüência em 1Pe (5 vezes). A alma é a sede da vida, mas também abarca todo o ser natural com o pensar, sentir e querer. A alma facilmente se torna “impura” porque não é influenciada apenas pelo espírito, mas igualmente pelo corpo, e até mesmo pela “carne”. Ira, discórdia, inveja, egoísmo e desconfiança são impurezas que contaminam a alma e bloqueiam o amor fraternal. Essas impurezas não devem ser toleradas por ninguém no coração. Isso não somente significa que nos “controlamos”. Não, as impurezas têm de ser expelidas! Por essa razão trata-se da obediência à verdade. A verdade é palavra que me atinge, é aquilo que percebi a partir da palavra de Deus como verdade sobre mim. Desmascara meu ódio e minha inveja, meu descontrole, egoísmo e coisas semelhantes. Porém somente me purifica quando lhe obedeço. Não existe purificação nem santificação sem obediência coerente. Portanto a obediência à verdade constitui o caminho para a purificação da alma. Somente quando as almas estão purificadas nessa obediência o caminho estará livre para o amor fraternal sem hipocrisia. Aqui resplandece uma verdade bíblica fundamental. Foi o que Jesus concretizou para seus discípulos quando humildemente lhes lavou os pés (Jo 13.14). Somente uma alma purificada de arrogância e toda impureza é capaz de amar aos irmãos (cf. 1Jo 3.11s). O adjetivo adicional não-fingido (cf. Rm 12.9; 2Co 6.6) aponta para o risco que o amor fraternal corre. Quando falta amor aos irmãos podemos nos esquivar para dentro de formas cristãs de relacionamento que têm aparência de amor, mas a vida se transforma em devota auto-ilusão. Trato amistoso, cortesia solícita – assim muitas vezes o amor é apenas simulado na igreja. Então será amor hipócrita. Hipocrisia, porém, é tão perigosa porque encobre a ausência de amor fraternal e envenena nosso relacionamento com Deus e com o irmão. Se não fôssemos capazes de fingir, ficaríamos muito mais assustados com nossa falta de amor e falaríamos abertamente com o irmão. Quantas igrejas estão paralisadas pela falta de amor não-fingido! Com quanta gravidade Jesus advertiu contra o fingimento devoto (Mt 6.5,16; 7.5; Lc 12.1)! Pedro o fará mais uma vez em 1Pe 2.1.
Agora segue a sentença principal: Amai persistentemente um ao outro de coração. É somente por meio do amor fraternal que se caracteriza claramente o relacionamento básico dos discípulos
entre si. Isso se torna evidente em palavras bíblicas como Jo 13.34s; 15.12; 17.26; 1Ts 3.12; 4.9s. Amai-vos uns aos outros precisa ser compreendido como supratemporal. Por um lado os ouvintes na Ásia Menor já se encontram no amor fraternal, mas por outro ele precisa ser diariamente renovado. Não o possuímos de uma vez por todas. Daí a reiterada exortação: amai um ao outro de coração. As duas expressões de coração e persistentemente evidenciam a seriedade e ênfase da exortação. Quando o amor aos irmãos flui do coração ele descontrai o relacionamento e liberta. Então o comportamento não é diferente do que pensamos no coração. Persistentemente (a rigor: “tensamente”) indica que o amor aos irmãos nem sempre é fácil. Egoísmo, situações complicadas ou também índole não-simpática do irmão podem dificultar o amor. Importa, então, amar persistentemente, i. é, preservar o amor aos irmãos contra toda a oposição.
23 No v. 23 é evidenciada uma segunda premissa – a fundamental – para o amor aos irmãos: … como renascidos. Novamente, como no v. 13, o imperativo (amai-vos uns aos outros) decorre do indicativo (sois renascidos). É da natureza das exortações apostólicas que não contenham instruções legalistas, morais, para uma vivência em conformidade com Deus. O ser humano na realidade não é capaz de produzir uma postura espiritual a partir da sua natureza. Em função disso as exortações se alicerçam sobre fatos que Deus criou na vida dos seus. Aqui, portanto: são renascidos (nascidos de novo ou novos nascidos). Renascidos é não apenas uma metáfora, mas refere-se a uma realidade. Deus concedeu uma vida nova, divina. Não existe nada maior, e algo menor não seria útil para o ser humano. Para ter comunhão eterna com Deus, o ser humano carece de vida a partir de Deus. Essa vida é obtida no renascimento. Jesus sublinha: se alguém não é nascido de novo, não pode ver o reinado de Deus (Jo 3.3). O evangelho de João traz uma formulação diferente, mas que se refere à mesma realidade: “Quem crê no Filho, tem a vida eterna (a vida nova)” (Jo 3.36). Em 1Jo 5.11 a mesma coisa foi dita com a mesma certeza: “Esse é o testemunho, que Deus nos concedeu a vida eterna, e essa vida está em seu Filho.” Paulo declara em 2Co 5.17: “Se alguém está em Cristo – isso significa nova criação (da personalidade).” Na formulação … como pessoas que são renascidas chama atenção o seguinte: o renascimento evidentemente não é algo incerto, mas um fato impossível de ser negado. Além disso, chama atenção que o renascimento apareça como um acontecimento no passado. É um pretérito, não um futuro. E finalmente é digno de nota que Pedro atesta seu próprio renascimento e o de todos os cristãos na Ásia Menor. Não conhece cristãos que “apenas crêem”, mas ainda não são renascidos. Também o restante do NT não tem conhecimento dessa diferenciação. Ou somos cristãos, e nesse caso também somos renascidos, ou ainda não somos renascidos, e nesse caso também ainda não somos de fato cristãos. A referência ao renascimento constitui a justificativa mais profunda do amor fraternal. Com o renascimento os cristãos se tornaram irmãos e irmãs, independentemente de sentirem simpatia recíproca ou não. O mesmo acontecimento básico, e também a mesma força de vida divina liga os cristãos: como renascidos não são de semente passageira, mas de incorruptível por meio da palavra viva e duradoura de Deus. No texto original o termo para semente é sporá. Ele inclui – como nossa palavra “semeadura” – ao mesmo tempo o processo de semear. Por isso a tradução também pode ser: “… renascidos não de um semear passageiro, mas do não-transitório por meio da palavra de Deus.” Nessa tradução se destacam melhor as preposições de e por: renascidos do processo de semear pela força vital da palavra de Deus. Conseqüentemente, o v. 23 não apenas mostra a relevância fundamental da palavra de Deus, mas ao mesmo tempo a de sua proclamação. Assim como a semente precisa ser semeada, assim também a mensagem de Deus precisa ser passada adiante para ser eficaz. Ao contrário da semeadura na agricultura, porém, a palavra de Deus é semeada para uma eficácia não-transitória: produz renascimento e vida eterna.
No entanto, igualmente cumpre afirmar um segundo ponto: importa a semente, a palavra do próprio Deus. Uma proclamação geradora de vida eterna só pode acontecer por meio da palavra viva e duradoura de Deus. “A semente é a palavra de Deus”, diz Jesus na parábola dos quatro tipos de solo (Lc 8.11). Por ser viva e duradoura, essa semente também produz frutos vivos e duradouros. É necessário que cada pregador tenha clareza de que não alcançará frutos de sua semeadura por nenhum outro meio senão através da palavra viva e duradoura de Deus. A frase grega também pode ser traduzida de outra forma: “pela palavra do Deus vivo e duradouro”. Ou seja, um grego podia depreender as duas idéias da formulação: a natureza de Deus, vivo e eterno, determina a qualidade dessa palavra – e: a qualidade da palavra de Deus por seu turno determina a da semeadura e do renascimento.
24 Temos de perceber a magnitude e glória da palavra para compreender a grandiosidade de termos sido alcançados por essa palavra como palavra “viva”, i. é, quando a interpelação pessoal do Deus presente nos atingiu e gerou em nós uma vida duradoura, divina. Esse é o sentido dos v. 24s. Neles se cita Is 40.6ss: Toda carne é como capim, e toda a sua glória é como a flor do capim. Com a expressão toda carne faz-se referência a todas as pessoas. “Carne” designa o ser humano natural. Como o ser humano parece ser grande com seu poder e sua sabedoria, com sua cultura e ciência! Não obstante, tudo isso não passa de “carne”, também em suas mais belas e nobres flores. E seu destino é caracterizado pelas palavras: secou-se o capim e caiu a flor. A forma verbal do pretérito expressa: isso não é apenas prenúncio do futuro, mas experiência aos milhões. Ao mesmo tempo, porém, é também “pretérito perfeito profético”, um oráculo profético que paira com tanta certeza sobre cada pessoa ainda viva como se fosse algo já acontecido.
25 Disso ressalta agora o maravilhoso fato de que existe algo que permanece eternamente, a saber, a palavra do Senhor. Para palavra consta aqui no grego não logos, mas rhéma = o que foi diretamente proferido, o discurso. No NT trata-se da palavra proferida pelo Deus vivo e, assim, simultaneamente atuante. Por isso é a palavra do Senhor presente, que é viva e que me atinge. Rhéma corresponde à frase que ocorre com freqüência na Escritura: aconteceu a palavra do Senhor. É um acontecimento de Deus quando essa palavra é proclamada como boa notícia. No grego consta euangelizesthai = evangelizar, entregar uma notícia de alegria. Essa, porém, é a palavra que foi dirigida a vós. Naquele tempo o Deus vivo os alcançou através de sua palavra, gerando neles renascimento e vida eterna. Quem experimentou isso pode amar os irmãos. Vida a partir de Deus se concretiza no amor, porque Deus é amor (1Jo 4.8).

ATOS 2.14; 36-41

 

14 – Então, se levantou Pedro, com os onze; e, erguendo a voz, advertiu-os nestes termos: Varões judeus e todos os habitantes de Jerusalém, tomai conhecimento disto e atentai nas minhas palavras.

14 Mesmo nas pessoas receptivas todos os fenômenos maravilhosos do dia de Pentecostes causam nada mais que consternação e a pergunta perplexa: “Que quer isso dizer?” Por essa razão não queremos ansiar de maneira falsa por milagres, como se eles já tr ouxessem decisões. A decisão é obtida somente pela palavra clara da proclamação autorizada. Novamente Pedro – agora também perante o grande público – assume sua tarefa. Coloca-se de pé e ergue sua voz. Ele o faz “com os onze”. Justamente perante Israel é importante o testemunho dos Doze, ainda que apenas Pedro faça uso da palavra entre eles e em nome deles.

36 – Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.

36 Foram somente a promessa da Escritura e o testemunho dos fatos que Pedro expôs diante de sua grande e consternada platéia. Agora ele chega à conseqüência suprema de tudo: “Com certeza, portanto, reconheça toda a casa de Israel, que Deus o fez Senhor e Ungido – a esse Jesus que vós crucificastes.” Nessa frase final cada palavra é cheia de impacto e importância. Trata-se de uma certeza plena, não de suposições ou opiniões, ou até de uma fantasia de almas agitadas. Ninguém pode afastar de si essa nítida certeza. Ela tampouco diz respeito apenas a pessoas isoladas, como os sacerdotes e escribas, ou a pessoas com dons religiosos especiais. Toda a casa de Israel é convocada para ter essa certeza. Deus criou um fato definitivo de significado máximo, transformando um homem em “Senhor e Ungido”,. A espera de séculos pelo Messias chegou ao fim, Deus cumpriu hoje e aqui sua promessa. O Messias chegou. O tempo escatológico irrompeu pelo derramamento do Espírito. Apesar de tudo Deus fez Senhor e Messias “esse Jesus que vós crucificastes”. Com essa constatação Pedro encerra seu sermão. Pronuncia com ela algo terrível, colocando seus ouvintes diante de um abismo de culpa imensurável. Acabou agora a zombaria barata. Também acabou, porém, a pergunta perplexa: “Que quer isso dizer”? Deus cumpriu sua promessa com fidelidade e glória, o Messias foi enviado e confirmado com os sinais e milagres de sua atuação terrena, com a exaltação à direita de Deus e com a efusão do Espírito. Nós, porém, rejeitamos e assassinamos o Messias, nós esbofeteamos a face de Deus e anulamos toda a nossa longa história como povo da aliança. O que acontecerá agora?

O CHAMADO À CONVERSÃO E SALVAÇÃO - Atos 2.37-41

37 – Ouvindo eles estas coisas, compungiu-se-lhes o coração e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, irmãos?

38 – Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo.

39 – Pois para vós é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar.

40 – Com muitas outras palavras deu testemunho e exortava-os, dizendo: Salvai-vos desta geração perversa.

41 – Então, os que lhe aceitaram a palavra foram batizados, havendo um acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas.

37 Foi observado que os discursos de Pedro em Atos dos Apóstolos são estruturados todos da mesma maneira. Isso se deve à causa defendida. E apesar disso, num ponto essencial o sermão de Pentecostes se destaca dos discursos posteriores: ele não contém nenhuma oferta de graça, nenhum convite à ação dirigido aos ouvintes, nenhum apelo ao coração e aos sentimentos. Apesar disso, pelo impacto de seus fatos, atinge certeiramente o “coração” dos ouvintes. “Ouvindo eles estas coisas, seu coração foi perfurado.” Diante desse sermão os ouvintes não estão nem “entusiasmados” nem

“edificados”. Todas as categorias com que costumamos descrever os efeitos de uma pregação fracassam aqui. O tiro foi certeiro, e o projétil parou no meio do coração.

É óbvio que com isso o desfecho da questão ainda não estava decidido. Sempre que a palavra nos atinge, revelando nossa culpa, acontece algo que divide as águas. Será que agora nos curvaremos sob nossa culpa e nos quebrantaremos intimamente, ou será que nos insurgiremos e justamente, como “golpeados”, golpearemos o mensageiro que nos vulnerou assim com a palavra? Também a respeito dos ouvintes do discurso de Estêvão se diz “Ouvindo eles isto, seu coração foi serrado” (At 7.54). Mas então rilharam com os dentes e taparam os ouvidos, avançaram sobre Estêvão e o arrastaram para fora da cidade para apedrejá-lo. Constitui um mistério maravilhoso quando a proclamação clara da palavra atinge corações de modo que capitulem diante da ardente pergunta: “Que faremos?”

No dia de Pentecostes é isso que acontece. Pedro não demandou nenhuma ação de seus ouvintes. Havia falado somente de “ações”, da ação de Deus e do agir de pessoas. “Deus fez…, vós fizestes; vós fizestes… Deus fez”: seu sermão estava repleto disso. Agora, diante dessas ações acontecidas, a pergunta pelo “fazer” obrigatoriamente rompeu. “Perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, irmãos?” Essa pergunta tem uma conotação de desespero. Será que, afinal, ainda existe uma saída da corrente de episódios em que eles se tornaram traidores e assassinos? Será que agora ainda podem “fazer” alguma coisa? “O que, enfim, podemos fazer agora?” É assim que precisamos ouvir a pergunta.

Apesar de tudo, em meio à implacável seriedade da sua proclamação, Pedro colheu confiança por parte de seus ouvintes. Pedro e seus companheiros são interpelados como “irmãos”, como irmãos junto aos quais se busca conselho e auxílio apesar de tudo. O próprio fato da proclamação não devia involuntariamente despertar a esperança? Será que esse emissário do Messias Jesus se dirigiria assim a eles, falaria com eles dessa maneira, se tudo tivesse acabado e somente restasse esperar pelo juízo? Por isso a pergunta dos ouvintes possui também uma conotação de expectativa e anseio. Será que no final, após tanta maldade, existe uma ação completamente nova, de salvação? A ressurreição por Deus do Messias eliminado por eles poderia – algo quase inimaginável – ter o significado de um incompreensível indulto?

Com a magistral sabedoria do Espírito Santo, Pedro não havia sugerido a seus ouvintes nenhuma espécie de “ação”. Justamente por isso a pergunta: “Que faremos?” irrompe com impacto elementar.

Nesse momento evidencia-se que Pedro tem uma resposta clara e determinada para essa pergunta. Toda vez que pessoas chegam ao reconhecimento de sua culpa diante da proclamação da verdade e indagam com coração assustado, há uma resposta inequívoca e bendita que pode ser dada. Pedro de fato conhece um caminho que seus ouvintes podem e precisam seguir agora com passos determinados. Esses passos se chamam: conversão – batismo para o perdão dos pecados – obtenção do Espírito.

38 O estilo narrativo de Lucas é genial; a vivacidade rápida da resposta é delineada por Lucas através da supressão de todos os verbos: “Pedro, porém, a eles: Convertei-vos!” A maioria das traduções conservam neste versículo o conhecido “Arrependei-vos”. É verdade: todos os movimentos gerados e dirigidos pelo Espírito de Deus são movimentos de arrependimento. Qualquer “avivamento” começa com “arrependimento”. Contudo, a expressão “arrepender-se” já está demasiadamente marcada entre nós pela idéia de sentimentos sombrios. Pedro acolheu o antigo chamado profético que havia soado tantas vezes na história de Israel: “Shubu!” = “Dai meia-volta!” (Cf. Is 30.15; 31.6; 55.7; Jr 3.7; 25.5; 26.3; Ez 18.23; 33.11; Ml 3.7.) “Arrependimento” em nosso sentido, ou seja, reconhecer a culpa e lamentar o que se praticou, é somente uma parte da questão. Decisivo é que, a partir desse reconhecimento, aconteça nesse momento uma inversão de rumo e uma meia-volta de toda a vida.

Como, porém, uma “meia-volta” pode ajudar? Não é a meia-volta como tal que traz a ajuda. Verdadeira “conversão” sempre é afastar-se da vida vivida até então e ao mesmo tempo voltar-se para um novo alvo. E, para Pedro, esse alvo da conversão está inequivocamente definido. Aos que perguntam, ele os chama para junto do Messias Jesus. Pedro não está desenvolvendo uma doutrina da redenção nem uma teologia da cruz. Não detalha como uma salvação ainda é “possível” apesar de tudo. Afinal, o verdadeiro “perdido” nem sequer pergunta por isso. Quando ainda exigimos que a redenção nos seja primeiramente “demonstrada” e “explicada” antes que a possamos aceitar, tão somente estamos evidenciando que ainda não reconhecemos nossa condição de perdidos. Por isso Pedro pronuncia somente esse único e decisivo fato: em Jesus há perdão dos pecados! Esse Jesus que nós esquecemos, ignoramos, desprezamos, combatemos e odiamos, inexplicavelmente nos aceita e

apaga toda a culpa de nossa vida, inclusive toda a nossa culpa contra Si mesmo. Cristo perdoa aos assassinos de Cristo. O Filho de Deus indulta os inimigos de Deus.

Isso era concebível? Será que aqui bastam palavras e asseverações? Pedro e seus irmãos apreenderam esse ato de Jesus numa ação que de imediato também se tornou um “ato” dos culpados. Jesus purifica as pessoas. Somente Ele é capaz disso, lavando-as por meio de seu sangue. Mas Ele o faz agora por meio do sinal da imersão na água. Ali é “sepultada” a vida antiga e tragada a culpa. Quem agora se deixava batizar não suspeitava e questionava eventuais pecados seus, não apenas desejava e pensava a respeito de uma possível redenção, mas de fato se dava por perdido. Entrava no banho purificador como alguém completamente imundo, submetia-se à sentença de morte e aceitava o perdão como um presente que acontecia naquele ato. Tudo isso, no entanto, era decisão pessoal de cada ouvinte. Por isso Pedro também não declara: “Deixai-vos todos batizar”, mas destaca expressamente: “Cada um de vós seja batizado.” O texto grego não usa para “cada um” a palavra “pas”, forma singular da palavra “todos”, mas o termo “hékastos”, que ressalta cada um individualmente.

Logo esse batismo não era uma prática misteriosa, que efetuava algo automaticamente, sem o envolvimento interior das pessoas, mas uma clara decisão de conversão radical. A esse passo dado no batismo, porém, que de antemão era viável e sensato somente pela graça, a graça de Jesus responde com o presente do perdão dos pecados. Assim já fora com João: João “pregava batismo de arrependimento para remissão de pecados” (Lc 3.3). Mas provavelmente ele apenas comunicou esse perdão, sem realizá-lo diretamente. Do contrário, em vista do grande número de seus batismos, teria sido alvo, de forma bem mais intensa, da acusação de blasfêmia, que foi levantada imediatamente contra Jesus quando este anunciou diretamente o perdão a apenas uma única pessoa (Lc 5.20s). Agora, porém, o perdão foi adquirido de modo plenamente válido por Jesus, que entregou sua vida à morte e que como Ressuscitado e Exaltado passou a ter em mãos o direito divino do perdão eficaz. Quando os que se convertem chegam a Jesus, todo o seu passado de culpa é enterrado em seu batismo, e são presenteados com a nova posição reconciliada perante Deus.

Nesse ato Pedro pode assegurar-lhes firmemente: “E recebereis o dom do Espírito Santo.” Eles, os inimigos e assassinos do Messias, recebem o Espírito Santo da mesma maneira como os discípulos que haviam caminhado com Jesus! Isso é clemência, isso é verdadeiro perdão. Não há espaço para um “talvez” e “tomara”. Não há tampouco a solicitação de orar pelo Espírito Santo. Sem uma clara conversão a Jesus, nenhuma súplica pelo Espírito de Deus adiantaria alguma coisa. Ao convertido e purificado, no entanto, o presente do Espírito Santo, que não precisa mais vir, mas já chegou, é concedido imediatamente.

39 “Pois para vós é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar.” Nessas palavras Pedro não está olhando para a missão entre gentios! Os fiéis entre os judeus tiveram praticamente um choque quando mais tarde “também sobre os gentios foi derramado o dom do Espírito Santo” (At 10.45). E Pedro teria partilhado o mesmo choque se não tivesse sido preparado de forma muito singular por Deus para esse acontecimento. De qualquer forma, no dia de Pentecostes seu olhar está voltado única e exclusivamente para Israel. Em Jerusalém estava reunido apenas uma pequena parcela de todo o povo. Muitos ainda estavam “longe” – acaso não teriam participação naquilo que acontecia agora em Jerusalém? Sim, Pedro sabe a partir da mesma passagem de Joel que citara no começo de seu sermão de Pentecostes: “Pois, conforme prometeu o Senhor, no monte Sião e em Jerusalém haverá livramento, [também] para os sobreviventes, para aqueles a quem o Senhor chamar” (Jl 2.32 NVI).

40 Como numa evangelização genuína, a proclamação que atinge os corações é seguida dos diálogos decisivos. Obviamente não foram aconselhamentos individuais atrás de portas fechadas. Isso tampouco era necessário quando se tratava do mesmo pecado, igual e público, da rejeição de Jesus. Mas em torno dos apóstolos, que, ao rodearem Pedro, se destacaram como especialmente responsáveis, formaram-se grupos de pessoas que perguntavam e que precisavam ser afiançadas de maneira bem pessoal, pois uma conversão autêntica não é uma bagatela. Mesmo quando uma consciência foi profundamente atingida e quando a graça de Deus se descortinou magnificamente diante de um ser humano, é preciso passar por uma luta até que o passo decisivo de fato seja dado. O coração humano realmente é uma “coisa teimosa e desanimada”. No meio do límpido reconhecimento da culpa ainda surgem ressalvas e objeções interiores: será que uma ruptura tão radical é de fato necessária? Será que preciso dar imediatamente um passo tão cheio de

conseqüências? Isso pode vir a ser uma luta especialmente difícil quando viemos de uma vida “devota”. Por isso muitos naquele tempo terão hesitado: “Mas, afinal, somos israelitas! Vivemos piamente e observamos os mandamentos. Não somos gentios que vivem sem Deus. Será mesmo que temos de nos converter?”

Pedro luta com seriedade e empenho pelos corações: “E com muitas outras palavras deu testemunho e exortava-os, dizendo: Salvai-vos desta geração perversa!” Nessa hora tudo está em jogo. Mesmo uma pregação de impacto não isenta os ouvintes da decisão. Ainda é possível que aconteça o insucesso. “Deixem-se salvar” – está em jogo a salvação! Não se trata de aprofundar a percepção religiosa, nem de melhorar moralmente a vida, nem de ampliar a participação na vida eclesiástica, trata-se de salvação. Ressalvas, perguntas, hesitações custarão minha vida se eu não me deixar salvar imediatamente da casa em chamas.

Isso se torna singularmente claro pelo fato de que esse chamado insistente é dirigido justamente a israelitas, a pessoas de alto padrão moral e de devoção religiosa, designando exatamente esse povo mais devoto do mundo como “essa geração perversa”. Nunca a inimizade oculta contra Deus, o egocentrismo fatal da vida são mais perigosos do que quando se escondem por trás da freqüência regular aos cultos, de numerosas orações e sacrifícios e infalibilidade moral da vida. Em torno desse ponto também já girava a luta incansável dos profetas. P. ex., Moisés já havia chamado Israel de “geração perversa e deformada” (Dt 32.5). Agora, porém, isso havia sido manifesto com clareza máxima na posição de Israel diante de Jesus. O fato de que Jesus, o Filho santo de Deus, que vivia para Deus e a honra de Deus, tornara-se insuportável para Israel, o fato de que Israel o expulsara e o levara ao madeiro maldito pela mão dos ímpios, isso não era nenhum equívoco lamentável, nenhuma coincidência infeliz. Era expressão da hostilidade oculta contra Deus no meio do povo de Deus. Por isso é necessário que justamente agora seja dado esse passo radical de uma completa meia-volta, do contrário esses devotos de Israel estão perdidos.

A exortação insistente é dada numa forma verbal curiosa: no imperativo da voz passiva, que é característica para a proclamação missionária do NT: “Deixai-vos salvar”, literalmente: “Sede salvos!” A redenção de pecadores perdidos somente pode acontecer por meio do próprio Deus; é uma ação milagrosa exclusivamente dele, é graça pura e livre (cf. Ef 2.1-9). E, apesar disso, ela não acontece sem a vontade pessoal e a clara concordância do ser humano. Deixar-se salvar é um ato sumamente responsável e decisivo do pecador. A indissociável concomitância de ambos os aspectos foi expressa nessa peculiar forma verbal de um “passivo ativo”.

Não nos surpreende que na seqüência aconteçam decisões – e de imediato também cisões. Uma “multidão”, que se reúne em Jerusalém (At 2.6), abrange muito mais de três mil pessoas. Mas nem todos “lhe aceitaram a palavra”. Também a proclamação de alguém como Pedro no dia de Pentecostes, sob a presença e o poder do Espírito Santo, não possui a garantia de converter a todos. Os três mil são ao mesmo tempo uma multidão “pequena” e “grande”. Com vistas à população de Jerusalém, aumentada num dia de festa por numerosos visitantes, que pequena seleção! Mas, por outro lado, que acontecimento inaudito: uma única “prédica” leva três mil corações à conversão!

Hoje não podemos avaliar se em Jerusalém era possível batizar ainda no mesmo dia três mil pessoas. Se Pedro começou seu discurso às 9 horas da manhã, ainda restavam, mesmo depois de diálogos em grupos, muitas horas para esses batismos. Seja como for, a decisão da conversão e do batismo foi efetuada nos três mil nesse um dia; por isso houve basicamente um “acréscimo”, ainda que os atos de batismo se estendessem pelos dias subseqüentes. Uma coisa, porém, chama nossa atenção: nem aqui nem mais tarde, nos casos do etíope ou de Cornélio ou do carcereiro, fala-se de uma “instrução de batismo”. O batismo é realizado imediatamente após a conversão. A conversão é o processo decisivo, ao qual sucedem logo o perdão dos pecados no batismo e a obtenção do Espírito. A instrução exaustiva na “doutrina dos apóstolos” acontece com a igreja já batizada, plena do Espírito de Deus e congregada na irmandade.