A ESCOLHA DOS SETE - Atos 6.1-7
1 – Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária.
2 – Então, os doze convocaram a comunidade dos discípulos e disseram: Não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas.
3 – Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço;
4 – e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da palavra.
5 – O parecer agradou a toda a comunidade; e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia.
6 – Apresentaram-nos perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos.
8 – Estêvão, cheio de graça e poder, fazia prodígios e grandes sinais entre o povo.
9 – Levantaram-se, porém, alguns dos que eram da sinagoga chamada dos Libertos, dos cireneus, dos alexandrinos e dos da Cilícia e Ásia, e discutiam com Estêvão;
7 – Crescia a palavra de Deus, e, em Jerusalém, se multiplicava o número dos discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé.
1 Lucas foi criticado porque estaria traçando uma imagem ideal demais do primeiro cristianismo. Nesse trecho, no entanto, ele relata tranqüilamente as consideráveis mazelas que levaram a uma tensão na jovem igreja e à murmuração explícita. A igreja era perpassada por uma diferença natural: havia “helenistas”, i. é, judeus dos países ocidentais, que falavam grego, e “hebreus”, os judeus de língua aramaica da Palestina (e do Oriente propriamente dito). Diferenças assim nunca deixam de ser significativas. A unidade da igreja de Jesus não se estabelece pelo fato de que as diferenças são simplesmente ignoradas. Os grupos de língua grega passavam por dificuldades nos encontros cristãos, nos quais se falava – inclusive por parte dos apóstolos – o aramaico. Deve ter surgido rapidamente uma tendência para realizar reuniões próprias no idioma familiar grego. Por outro lado, a beneficência da igreja, que de acordo com At 4.35 não podia mais ser um empreendimento meramente pessoal em vista do crescente número de cristãos, mas acontecia pela mediação dos apóstolos, não alcançou de maneira plena esses grupos “helenistas”. As viúvas “estavam sendo esquecidas na distribuição diária”. Mais uma vez notamos como toda a narrativa de Lucas é sucinta. “E se distribuía a cada um segundo a necessidade da pessoa” (At 4.35). Assim ele escrevera, sintetizando brevemente o essencial. Para ele deve ter sido evidente que entre os “necessitados” estavam em primeiro lugar as “viúvas”. De 1Tm 5.3-16 depreendemos que a previdência para as viúvas continuou sendo uma área central do serviço da igreja. Na Antigüidade simplesmente não havia uma possibilidade de ganho próprio para mulheres. Se uma viúva não tinha filhos que providenciassem seu sustento, ela se encontrava em grande aflição. Nessa situação, porém, estavam sobretudo as viúvas dos “helenistas”. Depois de velhos, casais haviam se mudado do exterior para a Terra Santa, sobretudo para Jerusalém. Estando morto o marido, e vivendo os filhos numa terra longínqua, o que seria da esposa agora? Começou o serviço beneficente da igreja, inicialmente da judaica, e agora também da cristã. Conseqüentemente, as diferenças lingüísticas e a grande extensão da igreja transformaram-se em empecilhos. Naquele tempo as viúvas viviam uma vida sossegada e recatada. Provavelmente os apóstolos conheciam melhor as viúvas do grupo aramaico e viam-nas com mais freqüência. As viúvas helenistas eram “esquecidas”. Tampouco Lucas relatou que essa “distribuição para cada um de acordo com sua necessidade” já levara a uma forma de ajuda regular. Uma atividade dessas se consolida inesperadamente numa instituição. Ao que parece, portanto, desenvolveu-se a prática de alimentar regularmente os necessitados, de realizar refeições diárias para as quais as viúvas helenistas não eram convidadas. Porém, a circunstância de que determinadas pessoas não apenas se viam excluídas de uma doação livre e eventual, mas de uma assistência regular, que parecia conceder também a elas um “direito” a determinados benefícios, gera especial tristeza e amargura. Todos sabemos com que rapidez nos sentimos magoados, com que facilidade suspeitamos de “intenções” por trás de esquecimentos que na realidade se explicam por razões bem inofensivas. Rapidamente generalizamos casos isolados, e o egoísmo coletivo acaba exacerbando tudo. “Houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária.”
2 Que bom que essa murmuração chega até os apóstolos! Representava uma acusação também contra eles, em cujas mãos estavam a aplicação e a distribuição das dádivas. Mas os apóstolos não reagem melindrados, e sim objetivamente. Não tomam simplesmente uma decisão por conta própria, mas envolvem a igreja toda na dificuldade que emergiu (como já fizeram em At 1.15ss e tornarão a fazer em At 15.4,22). “Convocam a multidão dos discípulos”, e os “Doze” dão a declaração unânime: “Não é agradável a Deus que nós negligenciemos a palavra de Deus para servir às mesas.” Que palavra cheia de clareza do Espírito Santo! Os apóstolos não estão primeiramente comovidos com a murmuração e as acusações. Não se desculpam nem prometem trazer uma solução imediata. Tampouco olham primeiro para a carência existente, por mais “cristã” que essa atitude poderia parecer. Imediatamente levantam os olhos para o Senhor e perguntam pela vontade dele. Isso é viver “com fé”! Esse olhar torna a pessoa livre e objetiva! Pois é evidente que “negligenciar a palavra” não pode ser a vontade e incumbência de Deus. Os apóstolos realmente honram a Deus como Deus, e confirmam que o ser humano não vive somente do pão, mas de toda palavra que procede da boca de Deus, e que a mensagem que lhes foi confiada compõe-se literalmente de “palavras desta vida” (At 5.20), das quais depende a vida eterna das pessoas. Essa mensagem precisa, pois, ser comunicada de qualquer maneira. A esse ministério precisam ser devotados todo o tempo e toda a energia dos mensageiros.
3 No entanto, os Doze não estavam menosprezando a assistência material. Não se pode simplesmente tolerar que viúvas padeçam fome. É preciso providenciar uma solução cabal. Porém – aí está a igreja! “Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos dessa tarefa”. Hoje escolheríamos mulheres da igreja para uma tarefa assim. A princípio, naquele tempo isso era impossível, ainda que a ruptura com os costumes da época tenha acontecido de maneira relativamente rápida justamente nesse ponto (Febe!). Para esse momento, portanto, é preciso escolher homens capazes. As pessoas a quem se confia dinheiro precisam ter “boa reputação”. Os apóstolos não dizem por que devem ser justamente “sete”. Contudo, nas comunidades judaicas a diretoria local geralmente era formada por sete homens, os quais eram chamados “os sete da cidade”. Por isso os apóstolos podem ter pensado involuntariamente nesse número. Seja como for, esses homens depois são denominados “os Sete” (At 21.8), mas não “diáconos”, como muitas vezes dizemos sem conferir as fontes. Agora é mencionado o pré-requisito interior: “cheios do Espírito e de sabedoria.” Também esse “serviço à mesa” é, numa igreja de Jesus, um “ministério espiritual”, e não mera “questão administrativa” que pudesse ser enfrentada simplesmente com forças e dons mundanos. Nessa circunstância fica singularmente claro como a frase dos apóstolos sobre seu próprio trabalho era de fato “objetiva”. Ela não significava, p. ex., que: pessoas mais insignificantes também podem cuidar de coisas tão simples, nós apóstolos somos grandes demais para isso. Não, a beneficência na igreja demandava homens primorosos, “cheios do Espírito e de sabedoria”. Na narrativa de Lucas ainda não existe qualquer escalonamento dos “cargos”, com o qual a igreja em breve se adequou ao “esquema” deste mundo, dando assim vazão a todas as pulsões da natureza humana que contradizem profundamente a palavra e essência de Jesus, a saber, a ambição, a ânsia por direitos e privilégios, a insistência em posições exteriores. Lucas não está descrevendo como um cargo “inferior”, o da “diaconia”, é criado ao lado do cargo mais alto de “apóstolo”. Não contribui para o “surgimento da constituição eclesiástica”. Pelo contrário, está mostrando como uma igreja viva sabe tomar providências práticas quando aparecem dificuldades e carências, vendo também em atividades dessa natureza repercussões do Espírito de Deus que nela habita.
4 Agora também apreciaremos a frase seguinte com sua límpida objetividade: “Quanto a nós, porém, perseveraremos na oração e no ministério da palavra.” Aliás, é com essa objetividade que também deveríamos ouvir essa frase para a situação atual! Teríamos muitas formulações edificantes para contradizer os apóstolos e lhes mostrar que de fato teriam cumprido a incumbência do Mestre se tivessem “servido às mesas” de modo humilde e amoroso. Essa teria sido a melhor e mais eficaz pregação! Pelo menos grande parte de nós pensa que hoje a ação de ajuda seria a única proclamação que de fato ainda “chega” nas pessoas, porque a “palavra” estaria esvaziada e impotente. Com toda a naturalidade esperamos que os “servos da palavra” dediquem considerável parcela de seu tempo e suas energias em “servir às mesas”. Para isso não carecemos de justificativas teológicas cristãs convenientes. Na verdade, o resultado desse sistema já deveria ter nos despertado há tempo. Deveríamos ouvir de forma nova o que os apóstolos expressam com tanta clareza e determinação. Em primeiro lugar citam a necessidade da oração! De fato, quanto tempo e quantas energias requer a vida de oração do servo da palavra, se tiver o propósito de corresponder pelo menos satisfatoriamente a tudo que está diante dele apenas na congregação que lhe foi confiada! Será que a flagrante impotência de nossa igreja não tem como raiz o fato de que nossos ministros não conseguem mais “perseverar na oração” por causa de tantas sobrecargas? Mais uma vez admiramos a força de formulação do Espírito Santo quando Pedro acrescenta à oração o “serviço da palavra”. Os apóstolos não visam esquivar-se do “servir” e assim manter-se aristocraticamente em altitudes edificantes. Estão conscientes de que Jesus os chamou para “servir”. Não querem servir menos do que os Sete que a seguir serão eleitos, não querem ser menos “diáconos” que eles. Porém seu serviço se realiza em outra área, exigindo tudo deles. O “serviço da palavra” simplesmente não deixa sobrar tempo e força para outro ministério. Será que isso realmente seria diferente nos dias de hoje?
5 “A palavra agradou a toda a multidão.” Lucas emprega uma expressão do AT conforme a encontrava em sua Bíblia grega (p. ex., em 2Sm 3.36). O AT já chamava toda a comunidade de Israel de “toda a multidão” (2Cr 31.18). “E elegeram…”; a multidão “elegeu”, sem que obtenhamos informação sobre o procedimento usado. Os nomes dos eleitos têm uma entonação grega. Devem ter sido nomeados justamente “helenistas” porque a negligência em relação às viúvas deles havia sido a causa de toda essa ação. Nicolau é chamado expressamente de “prosélito de Antioquia”. Pela primeira vez aparece
um grego de nascença, um “gentio” no âmbito da igreja de Jesus, ainda que pela via do ingresso na cidadania israelita. Pela primeira vez soa também o nome “Antioquia”, que mais tarde se torna tão importante em Atos dos Apóstolos. Sendo o próprio Lucas originário de Antioquia, ele dispunha de conhecimentos especialmente precisos. Em contrapartida, uma pessoa como Filipe, apesar do nome grego, dificilmente seria um helenista. Mais tarde, atuou intensamente na Samaria, ou seja, numa área de língua aramaica.
No caso desses homens ocorre algo semelhante como no caso dos apóstolos. Na seqüência ouviremos mais somente sobre Estêvão e Filipe; os demais não são mais citados em Atos dos Apóstolos. Prestaram o serviço para o qual foram eleitos neste momento, e isso basta. Porém descobrimos Estêvão e Filipe no serviço de evangelistas! Isso somente nos causará espécie enquanto ainda permanecermos presos à idéia dos “cargos”. Mas Schlatter tem razão: “Atos dos Apóstolos nos mostra que os encarregados que assumiam compromissos concretos junto com determinada incumbência não perdiam nada de seu direito de cristãos, e de forma alguma se pensava que Estêvão prepararia o sopão, e deixaria a palavra por conta dos outros. Pelo contrário, ele continua sendo o que é, servo da igreja, membro do corpo do Senhor, e por isso testemunha de sua graça, lutador pelo direito dele, e morre sem que fosse alvo da crítica: „Teu diaconato te enviou para a cozinha, e não ao posto de mártir‟.”
6 “Apresentaram-nos perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos.” Cabe-nos observar ambos os aspectos. Por um lado são os apóstolos que investem os eleitos no serviço. A imposição das mãos mediante oração não é apenas uma confirmação formal da eleição. Para as pessoas do pensamento bíblico, desde o AT a imposição das mãos era uma transferência real de plenos poderes e força para o ministério (Nm 27.18-23; Dt 34.9), o que é enfatizado seriamente pela imagem negativa oposta, de transmissão real da culpa pela imposição das mãos (Êx 29.15; Lv 16.21; Nm 8.12). Nesse ato não apenas se indica simbolicamente, mas se age de modo eficaz. Por outro lado, porém, como mostra At 13.3, esse ato não tinha o sentido oficial e hierárquico de uma “função” puramente “apostólica”.
7 “E crescia a palavra de Deus.” Como também em 2Ts 3.1, “a palavra” é considerada como uma grandeza independente com vitalidade e poder vivificador próprios. Realmente não somos mais que “servos” dessa palavra, que não precisamos tornar grande e eficaz com base no nosso empenho e no nosso esforço. A Deus seja rendida sincera gratidão porque também nós podemos presenciar como a própria palavra “corre” e “cresce”. Isso nos compromete ainda mais a dedicar todo o nosso amor e energia no serviço, libertando ao mesmo tempo nosso serviço de qualquer supertensão temerosa.
“E, em Jerusalém, aumentava muito o número dos discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé.” Lucas nos havia mostrado que a categoria dos sacerdotes era a verdadeira adversária de Jesus e depois também da mensagem de Jesus. Contudo, agora acontece o milagre (Jo 7.48s!) de que a palavra invade até as fileiras desse adversário. Justamente aqui Lucas formula de forma precisa: “Obedeciam à fé.” Esses sacerdotes não eram atraídos a Jesus por um entusiasmo súbito. A fé tinha de mostrar-se a eles com seu direito divino e sua necessidade interior, de sorte que davam o passo até Jesus como um passo de obediência, contrariando toda a sua postura anterior e todas as dificuldades. No idioma grego o imperfeito novamente assinala que esse “tornar-se obediente” diante da fé aconteceu apenas aos poucos, passo a passo. Nesse processo também a “multidão de sacerdotes” pode ter sido grande apenas em relação à atitude geral da categoria sacerdotal, e não um contingente numericamente “grande”. Porém no caso dos sacerdotes torna-se especialmente explícito o que é inerente à fé genuína. A fé autêntica não é arbitrária, não é “sentimento”; tampouco é apenas aceitar uma grande felicidade. Do contrário, com que rapidez poderíamos nos tornar novamente inseguros quando os sentimentos desaparecem ou quando, em lugar da felicidade, grandes aflições decorrem de nossa fé. A fé somente será clara e firme quando ela se submeter obedientemente a uma verdade que está diante de nós de modo irrefutável na ação de Deus em Jesus. Ao mesmo tempo, no entanto, a expressão também mostra que nunca chegamos à fé de forma mecânica, através de uma “subjugação” qualquer. Nosso coração acomodado muitas vezes deseja ser subjugado, de modo que ficaríamos isentos de crer. A verdade de Deus nos é mostrada com clareza; essa é a obra de Deus. Agora, porém, é a nossa tarefa “obedecer” pessoalmente à fé, superando consideráveis resistências em nós e em torno de nós.
8 Com habilidade literária, Lucas nos concedeu uma visão das condições da igreja antes de iniciar o relato do terceiro processo, de sangrenta gravidade. Pudemos tomar fôlego (como a própria igreja) antes de presenciar atentamente o destino de Estêvão. “Estêvão”, esse nome aparece diretamente no topo da nova passagem. Acabamos de conhecê-lo na eleição dos “Sete” como “homem cheio de fé e do Espírito”. Agora se afirma que era “cheio de graça e poder”. Os homens da Bíblia não são pensadores e teóricos, que desenvolvem sistemas de visão de mundo ou teológicos sobre Deus, mas são testemunhas do Deus vivo, por meio dos quais ele atua. Porque a graça de Deus, por sua vez, tampouco é mera intenção amigável dele, e sim uma ação poderosa de socorro. “Graça e poder” formam uma unidade. Graça impotente de nada adianta, e poder sem graça é terrível. Porém “graça e poder” fazem “grandes prodígios e sinais entre o povo”. Curas e outros auxílios de cunho admirável na atuação de Estêvão dirigem o olhar para Jesus.
Portanto, os apóstolos não são os únicos que Deus confirma através desses meios.
9 Deus não está amarrado a determinadas pessoas, nem mesmo quando lhes concedeu tarefas extraordinárias. Nada o impede de atuar também por meio de outras pessoas. Estêvão é autônomo também nos caminhos de sua evangelização. Em Jerusalém havia, além do templo, as “sinagogas”. Nelas a Escritura (i. é, o “AT”) era lida e explicada pelos escribas. No entanto, como sabemos fartamente da vida de Jesus e da história de Paulo, na sinagoga todo israelita podia ler da Escritura e comentar algo a respeito da leitura (cf. Mt 9.35; Lc 4.16-22; At 13.14-16; 17.2; 18.4; 19.8). Não nos surpreende que Estêvão faça uso desse direito, a fim de levar a mensagem de Jesus também desse modo para dentro do povo. Ele próprio era “helenista”, motivo pelo qual procurava as sinagogas helenistas de Jerusalém. Não depreendemos com certeza das palavras de Lucas se ele tem em mente cinco sinagogas diferentes ou apenas duas, de sorte que os “Libertos” usavam a mesma sinagoga junto com os judeus de Cirene e Alexandria, enquanto os da Cilícia e da província romana da “Ásia” (cf. acima o exposto sobre At 2.10) tinham à disposição uma segunda casa de oração. Com certeza também Saulo de Tarso estava na sinagoga dos cilícios naquela época, ouvindo assim a mensagem cristã pela primeira vez por meio de uma pessoa como Estêvão.
Uma sinagoga “helenista” parecia oferecer um campo de trabalho singularmente profícuo. Os judeus da diáspora ocidental tinham visão mais ampla e eram mais versáteis que os judeus de Jerusalém. O pensamento grego não deixou de exercer influência sobre eles. Contudo, em breve se constatou que justamente por isso também eram mais perigosos do que os “mestres da lei” do antigo tipo hebreu. Enquanto estes se interessavam mais por detalhes da interpretação da Escritura, aqueles captavam com maior rapidez e clareza as conseqüências de cada idéia no conjunto total. Os “prodígios e sinais” como tais novamente não foram capazes de conduzir à fé. Tão somente puderam despertar perguntas e incomodar uma falsa tranqüilidade. Essas perguntas começam a se manifestar. Homens das sinagogas helenistas “levantaram-se e discutiam com Estêvão”. Uma vez que em seguida a acusação contra Estêvão se concentrava em “temos ouvido esse homem proferir blasfêmias contra Moisés e Deus” e “esse homem não cessa de falar contra o lugar santo e a lei”, a discussão deve ter versado mais e mais sobre os dois pontos “templo” e “lei”. Ao que parece, aconteceu algo muito similar ao que sucedeu mais tarde com Martinho Lutero. Os arautos do novo evangelho falaram primeiramente com alegria do positivo, daquilo que Jesus traz, daquele a quem Deus “exaltou a Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão de pecados”
(At 5.31). O caso de Estêvão não deve ter transcorrido de outro modo que o dos apóstolos. Agora, porém, Estêvão, como depois Martinho Lutero, é obrigado pelos adversários a traçar as conseqüências negativas. E os “helenistas”, ágeis no raciocínio, conseguem impeli-lo para idéias cada vez mais ousadas de forma mais eficaz do que os hierosolimitas, que ficam atolados numa indignação genérica e proíbem, sem justificativa clara, o “falar com base no nome de Jesus”. Os apóstolos associavam sua nova notícia com uma óbvia fidelidade ao templo e à lei, assim como Martinho Lutero também queria continuar sendo um bom católico depois de sua redescoberta do evangelho. Na discussão, porém, certas perguntas são dirigidas a Estêvão : se o perdão de todos os pecados é concedido em Jesus e sua cruz, que sentido ainda possuem o templo e todas as cerimônias no templo? Se a nova igreja está edificada sobre a “fé”, e se ela possui pela “fé” o relacionamento decisivo com Deus e sua justiça perante Deus, que, então, significa ainda a lei? São as questões que mais tarde também ocuparam vivamente as próprias igrejas cristãs (cf. as cartas aos Romanos, Gálatas, Hebreus!).
51 – Homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim como fizeram vossos pais, também vós o fazeis. (Êx 32.9; 33.3; Lv 26.41; Jr 9.25; 6.10; Is 63.10).
52 – Qual dos profetas vossos pais não perseguiram? Eles mataram os que anteriormente anunciavam a vinda do Justo, do qual vós agora vos tornastes traidores e assassinos,
53 – vós que recebestes a lei por ministério de anjos e não a guardastes. (2Cr 36.16; Gl 3.19; Hb 2.2).
54 – Ouvindo eles isto, enfureciam-se no seu coração e rilhavam os dentes contra ele.
55 – Mas Estêvão, cheio do Espírito Santo, fitou os olhos no céu e viu a glória de Deus e Jesus, que estava à sua direita,
56 – e disse: Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus.
57 – Eles, porém, clamando em alta voz, taparam os ouvidos e, unânimes, arremeteram contra ele.
58 – E, lançando-o fora da cidade, o apedrejaram. As testemunhas deixaram suas vestes aos pés de um jovem chamado Saulo.
59 – E apedrejavam Estêvão, que invocava e dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito!
60 – Então, ajoelhando-se, clamou em alta voz: Senhor, não lhes imputes este pecado! Com estas palavras, adormeceu.
51-53 Na seqüência Estêvão tira do abrangente testemunho bíblico as conseqüências para a atualidade. Realmente não devemos entender essas últimas frases de seu discurso como um “xingar”. O homem que com o semblante de um anjo encarava seus juízes, que os tratara conscientemente como irmãos e pais, agora no final não se deixa arrastar pela carne e pelo sangue para uma agressividade vulgar. Precisamos ouvir todas as suas palavras como ditas com uma dor ardente por seu povo e com profunda seriedade perante Deus. Assim também Paulo, quando levanta suas mais duras acusações contra Israel, continua sendo ao mesmo tempo aquele que tem “grande tristeza e incessante dor no coração” por seus irmãos de Israel (Rm 9.1-5). Não estamos lidando com um teólogo frio e ávido por ter razão, mas com homens que haviam recebido o amor de Jesus, embora fosse o amor que vê implacavelmente a realidade destrutiva. “Homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim como fizeram vossos pais, também vós o fazeis” Também essas gravíssimas acusações são, até na formulação, bíblicas! Novamente Estêvão afirma apenas o que afirma a Escritura. Ele vê e caracteriza “Israel” de ontem e de hoje como uma unidade. Vê os profetas rejeitados e perseguidos, justamente porque “anteriormente anunciaram a
vinda do Justo”. Não é surpreendente que agora os filhos desses assassinos de profetas se tornaram ainda piores, “traidores e assassinos” desse Justo que acabara de vir.
A acusação contra Estêvão e os cristãos brota de uma imagem profundamente mentirosa e autocomplacente que Israel elaborou de si mesmo e de sua história. Considera-se como o povo privilegiado por Deus que, com o templo e com a lei, se apresenta com uma bela religiosidade diante de Deus, e fica indignado quando essa vã presunção é atacada com a mensagem de Jesus. Porém é precisamente “a lei”, a Escritura, à qual se apegam, que destrói a mentirosa quimera e revela a verdadeira imagem de Israel. Sem dúvida eles têm a lei, também “a lei” no sentido mais restrito; foi “promulgada por meio de anjos” e a receberam por mediação sagrada (cf. Gl 3.19). Porém cumpri-la? Jamais o fizeram!
Esta é a exaustiva e profunda resposta de Estêvão à pergunta do sumo sacerdote. É assim que precisamos ler o AT como cristãos, e ver a história de Israel – de forma totalmente diferente como também o fazemos muitas vezes no cristianismo, quando num falso resplendor vemos Israel como “o povo da religião”. Sem dúvida oscilaremos entre a falsa glorificação de Israel e o “anti-semitismo” enquanto não reconhecermos, com genuíno arrependimento, como a mentira de Israel constitui também a quimera de nossa própria “piedade” e de nosso próprio orgulho eclesiástico, enraizado nas camadas mais profundas de nosso “cor incurvatum in se ipsum”, nosso “coração retorcido sobre si próprio” (Lutero). Por essa razão, reagimos como “pessoas religiosas” ao ataque do evangelho, ao chamado para nos converter a Jesus, à palavra da cruz, com a mesma indignação que naquele tempo eclodiu contra Estêvão. Por isso não podemos ler o discurso de Estêvão apenas sob enfoque “histórico-crítico”, mas temos de ouvi-lo com arrependimento, sendo pessoalmente atingidos por ela.
Uma palavra sucinta de Pedro em At 5.33 já havia “serrado” os corações do Sinédrio e suscitado o desejo de matar. O discurso de Estêvão, porém, representa um ataque bem diferente, e de antemão a situação está bem mais carregada de ressentimentos. Por isso, não nos podemos surpreender com as repercussões desse discurso, e Estêvão não deve ter esperado outra coisa. “Ouvindo eles isto, cortou-se-lhes o coração, e rilhavam os dentes contra ele.” Ainda se contêm, primeiro é preciso decretar a sentença. Mas a irritação interior os leva a ranger os dentes. Comentaristas críticos sentiram falta de alguém como Gamaliel se levantando novamente e aconselhando a esperar. Contudo, a sessão do Sinédrio não chega ao fim, porque a exclamação seguinte de Estêvão faz eclodir o tumulto. Em segundo lugar, a situação toda e a colocação da acusação são completamente diferentes do que no capítulo 5. E, em terceiro lugar, o grupo fariseu também foi atingido pelo discurso de Estêvão de maneira bem diferente do que pela palavra e pelo testemunho de Pedro. “Não cumpristes a lei”, essa asserção retirava o chão em que se apoiava a existência dos fariseus. Alguém como Gamaliel podia ouvir com ponderação que Jesus ressuscitou e curou esse homem coxo, que Jesus é o Messias. “Homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito
Santo” – isso representava também para ele uma afronta desmedida e insuportável para Israel e seus fiéis. Agora a continência de alguém como Gamaliel chegou ao fim!
55 No entanto, nem sequer acontece uma deliberação e votação. Nesse instante é concedida a Estêvão, por meio do Espírito Santo, a visão do mundo de Deus. Ele vê “a glória de Deus e Jesus, parado à direita de Deus”. Tinha consciência de sua situação e da morte certa. Agora ele é arrebatado interiormente de tudo e confrontado com aquela realidade que ele aceitara e testemunhara com fé. A “glória” de Deus sempre é também o resplendor luminoso de Deus. Como ela resplandece maravilhosamente para Estêvão nas trevas da incompreensão e do ódio que o cercavam! Ele vê Jesus, que conforme o Sl 110.1 está sentado à direita de Deus, e espera (Hb 10.12s), “parado à direita de Deus”. Será que Jesus se levantou para saudar a primeira testemunha de sangue? Será que ele demonstra precisamente agora no início da primeira perseguição de sua igreja que ele não observa passivamente, mas que está agindo, já preparando-se para sua parusia? Isso são apenas suposições. Estêvão o vê dessa maneira, e Lucas não nos informa mais nada. Contudo, ele declara o que vê, esquecendo-se de sua situação e de seus inimigos:
56 “Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus.” Foi isso que o próprio Jesus declarou perante o mesmo Sinédrio: “Entretanto, eu vos declaro que, desde agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso” (Mt 26.64). Naquela ocasião o sumo sacerdote rasgou sua veste, e o Sinédrio proferiu a sentença de morte. Agora a irritação explode com ímpeto ainda maior:
57 “Eles, porém, clamando em alta voz, taparam os ouvidos e, unânimes, arremeteram contra ele.” Não há mais sentença, nem a ponderação de que para uma execução era necessário o consentimento do procurador romano. A declaração de que um ser humano está à direita de Deus era uma insuportável violação da majestade e singularidade de Deus para qualquer ouvido judaico. E, ademais, esse ser humano deveria ser a pessoa que fora pendurada no madeiro maldito pelos líderes influentes de Israel? Essa blasfêmia era tão terrível para eles que taparam os ouvidos e gritaram em voz alta, em parte por pavor, em parte para encobrir as palavras de Estêvão. Quando arrastaram Estêvão para fora da cidade, não precisaram se lembrar expressamente da determinação legal de Lv 24.14; Nm 15.36; Dt 17.5. Aconteceu de forma bem natural. Obviamente o primeiro mártir cumpriu o que foi declarado em Hb 13.12s. O apedrejamento como tal não aconteceu de acordo com a regra que conhecemos da Mishná, a tradição judaica. Simplesmente se lançaram as pedras sobre Estêvão no campo aberto. Apenas se cumpriu a determinação de Dt 17.7: as testemunhas contra Estêvão jogaram as primeiras pedras.
58 A capa, que as atrapalhava no apedrejamento, foi depositada “aos pés de um jovem chamado Saulo”.
É assim que, com destreza de escritor, que Lucas introduz Paulo em sua obra histórica: “um jovem chamado Saulo”. Até então ninguém suspeita, muito menos ele próprio, o que será dele. Porém o leitor de Atos dos Apóstolos sente e estremece: uma vez que a primeira testemunha de Jesus morre como mártir, Jesus já escolheu para si o novo mensageiro, no meio da multidão de seus inimigos. A causa de Jesus não pode ser detida, não por processos, nem por ódio e derramamento de sangue. De acordo com a palavra e vontade de Jesus o evangelho precisa ser levado até os confins da terra. E precisamente o homem que está tentando aniquilá-lo seriamente terá de ser o cooperador central dessa expansão! O termo grego com o qual é caracterizado não significa um “jovem” conforme nós o entendemos, e sim o homem entre vinte e quatro e trinta anos. Em Israel não era possível que um homem assumisse um papel de liderança antes dos trinta anos. Não devemos imaginar esse Saulo que desencadeia a primeira perseguição da igreja como demasiadamente jovem. Aqui não lhe é atribuída nenhuma posição oficial, assim como ele tampouco a menciona em seu próprio retrospecto sobre seu passado em Fp 3.5s. No entanto, deve ter gozado de uma reputação especial, para que depositassem as vestes das testemunhas justamente aos pés dele. Por que, afinal, não haveria de ser assim, visto que podia dizer de si próprio: “E, na minha nação, quanto ao judaísmo, avantajava-me a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições de meus pais” (Gl 1.14)?
59 Estêvão ora sob as pedradas, a princípio ainda de pé, à semelhança da oração do Sl 31.5, com a qual, ao morrer, também Jesus formulou sua súplica ao Pai. Acontece, porém, que a oração do discípulo se dirige ao próprio Jesus e é formulada com mais modéstia: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito.” Não podemos saber com detalhes o que está por trás da morte física. Nossas concepções
terrenas não o alcançam. Contudo há uma coisa que o cristão pode pedir ao morrer, na certeza de ser ouvido: Jesus está aí, Jesus acolhe nosso espírito.
60 Em seguida Estêvão cai de joelhos sob as pedradas, e em alta voz ressoa seu grito sobre seus adversários: “Senhor, não lhes imputes este pecado!” Confirma-se o que afirmamos acima a respeito do encerramento de seu discurso. Nem mesmo agora está buscando a vingança e punição de Deus sobre aqueles que o levam à morte de forma tão injusta. Por essa razão também esse morrer difícil e violento é um “adormecer” em profunda paz.