A mais extraordinária de todas as histórias extra-bíblicas do Dilúvio é a narrativa babilônica. Ela está baseada na tradição suméria, sua antecessora, porém muito mais ampla. Constitui o décimo - primeiro livro da famosa Epopéia assírio-babilônica de Gilgamesh. O texto, na forma existente, vem da biblioteca do rei assírio Assurbanípal (669-626 a.C.), mas fora transcrito de originais muito mais antigos.
As placas do Dilúvio foram desenterradas em Cuiunjique (Nínive) por Hormuzd Rassam em 1853, mas não foram identificadas até 1872, quando George Smith, que então se dedicava em estudar e classificar as descobertas cuneiformes de Cuiunjique, examinou-as novamente e as identificou.
De todas as tradições antigas que se relacionam com o Velho Testamento, a estória do Dilúvio Babilônico, incorporada à Epopéia de Gilgamesh, manifesta a mais impressionante e minuciosa semelhança com a Bíblia. O Noé babilônico é apresentado com o nome de Utnapistim, "Dia da Vida". Este, ao explicar a Gilgamesh a maneira pela qual obtivera a imortalidade, faz um relato completo do Dilúvio. É este aspecto da Epopéia de Gilgamesh, que a torna de interesse especial para os estudiosos da Bíblia.
No décimo - primeiro livro da epopéia, Utnapistim explica a Gilgamesh a sua imortalidade, fazendo-lhe uma narrativa do Dilúvio. Nesta notável estória, o chamado "Noé Babilônico" relaciona a sua posse da vida eterna com a dádiva de um dos deuses após a catástrofe, quando ele foi conduzido para fora do navio. As circunstâncias deram ocasião à narrativa mais completa e mais impressionante do Dilúvio, que pôde ser encontrada fora da Bíblia.
Kidner, em seu comentário a Gênesis, resume a Narrativa Babilônica do dilúvio
O dilúvio foi decretado pelo concílio dos deuses. É um último recurso, segundo a versão de Atrahasis, para silenciar a turbulência do homem, de modo que o céu possa desfrutar um pouco de sono. Todavia, um deus dissidente avisa o herói, que é seu cultuador, para que construa um navio. Mas deve manter esse propósito em segredo, despistando os que lhe façam indagações com alguma história Tranqüilizadora.
O navio babilônico é um cubo de sete conveses, cada lado medindo 120 côvados. É impermeabilizado com betume, recebe suprimentos em dinheiro e outras provisões, e nele embarcam a família do herói, animais e trabalhadores. Então a tempestade irrompe com tal violência, que os próprios deuses ficam aterrorizados com o que fizeram. Sete dias depois, o herói abre uma janela para eventualmente avistar terra à distância. O navio vem a pousar no monte Nisir, e depois de mais sete dias, três aves são soltas sucessivamente. As duas primeiras, uma pomba e uma andorinha, têm de voltar, mas a terceira, um corvo, encontrando as águas reduzidas, não volta mais. Depois o herói desembarca e faz sacrifício aos deuses, que já morriam de fome por falta de oferendas. Assim "os deuses aspiraram o suave cheiro; os deuses se juntaram como um bando de moscas sobre o ofertante". O céu aprendeu sua lição, e o principal instigador do projeto é censurado. Para consertar a situação, este confere divindade ao herói do dilúvio (KIDNER, 2005, p. 90-91).
I. AS SEMELHANÇAS
Ambas as narrativas sustentam que o dilúvio foi Divinamente planejado.
A versão babilônica declara que o decreto dos "grandes deuses" fora a causa do Dilúvio: “(Agora) seu coração instigou os grandes deuses (para) causarem um dilúvio”. (Tablete XI)
A narrativa suméria representa o Dilúvio como tendo sido decretado pela assembléia dos deuses, aprovado por todos, mas apenas formalmente e não sinceramente por alguns dos membros do panteão. Os deuses que foram mencionados como participantes da decisão de destruir a humanidade, são Anu, pai dos deuses, Enlil, conselheiro deles, Ninurta, representante deles, Ennugi, seu mensageiro, e Ea, o sábio benfeitor da humanidade. Outras divindades participaram da decisão, Istar, deusa da propagação, quando viu a destruição que fora causada pelo desastre se juntou a Ea, negaram ser responsáveis e culparam Enlil como autor de uma catástrofe sem justificativas.
De modo semelhante, o livro de Gênesis atribui o Dilúvio a intervenção divina: "Porque estou para derramar águas em dilúvio sobre a terra para consumir toda a carne em que há fôlego de vida debaixo dos céus: tudo o que há na terra perecerá" (Gênesis 6: 17). Porém, é um resultado da decisão do único e verdadeiro Deus, agindo de acordo com a Sua infinita santidade, sabedoria e poder. Embora as narrativas mesopotâmicas concordem com a Bíblia que a causa do dilúvio fora divina, não há, no relato do Gênesis, o menor traço da confusão e da contradição ocasionadas pelas numerosas divindades preocupadas em ocasionar aquele terrível cataclisma.
Ambas as Narrativas Concordam que a Catástrofe Iminente Fora Divinamente Revelada ao Herói do Dilúvio.
Na Epopéia de Gilgamesh, Ea, deus da sabedoria, avisa Utnapistim do perigo que se aproximava, por meio de um sonho: “A fala deles repetiu-a ele a uma cabana de junco: Cabana de Junco! Cabana de Junco! Muralha! Muralha! Cabana de junco, escuta! Muralha, Considera! Homem de Xuripac, filho de Ubara- Tútu Derriba (a tua) casa, constrói um navio! Abandona (as tuas) posses, procura salvar a vida! Menospreza (tuas) coisas boas, e salva (a tua) vida!”. Por essa forma o deus se dirigiu ao herói, que dormia em sua cabana de junco, ordenando-lhe que derrubasse a sua casa e construísse um navio.
Apesar de Noé também ser avisado divinamente acerca do Dilúvio, a maneira pela qual isso aconteceu difere amplamente do que se contém na versão babilônica. No relato bíblico conta-se que Noé "andava com Deus" (Gênesis 6: 9) e "achou graça diante do Senhor" (Gênesis 6: 8). Nesse estado de íntima comunhão com a Divindade, ele recebe uma comunicação direta do propósito divino, e não através de um sonho ou qualquer outro intermediário. O próprio Deus revelou o plano ao Seu servo fiel, informando-o da destruição vindoura, e ordenou-o que construísse uma arca. "Então disse Deus a Noé: Resolvi dar cabo de toda a carne, porque a terra está cheia da violência dos homens: eis que os farei perecer juntamente com a terra. Faze uma arca de tábuas de cipreste ... " (Gênesis 6: 13-14).
Ambas as Narrativas Relacionam o Dilúvio Com a Corrupção da Raça Humana.
Na Epopéia de Gilgamesh, embora um elemento moral não apareça como a causa do Dilúvio. O pecado do homem é mencionado como a razão para o Dilúvio, mas a natureza ou a extensão da ofensa é deixada completamente obscura. O que é mais sério, a catástrofe era destinada a todos, justos e injustos igualmente, sem exceção alguma.
De acordo com essa narrativa, Enlil mandou o Dilúvio para exterminar a humanidade, porque o povo se estava multiplicando muito rapidamente, e as suas ruidosas comoções, que perturbavam o descanso dos deuses, não podiam ser extintas com punições mais leves.
Embora a narrativa do Gênesis também relacionar o Dilúvio com o pecado do homem, não há a menor evidência da ambigüidade moral expressa na narrativa babilônica. Deus, de acordo com a sua infinita santidade, envia o Dilúvio como justo castigo ao abusivo pecado dos ímpios. O castigo desses, era um castigo justo e merecido. Apenas os maus são destruídos. O justo Noé, que era "íntegro entre os seus contemporâneos" e "andava com Deus" (Gênesis 6: 9), é poupado.
Na apresentação do Dilúvio como um julgamento moral dos ímpios, no qual os justos são poupados, a narrativa bíblica expõe a sua grandeza ética. Nenhuma mágoa é demonstrada pelos que foram destruídos no cataclisma, em contraste com as lágrimas das narrativas cuneiformes. Tão pronunciada é a motivação ética da narrativa bíblica, que longe de ficar triste por causa do cataclisma diluviano, como é o caso de praticamente todas as divindades da narrativa babilônica, Deus é descrito como arrependido até da criação do homem (Gênesis 6: 6).
Ambas as Narrativas Falam da Libertação do Herói e Sua Família.
Na Epopéia de Gilgamesh, de acordo com Rehhwinkel Utnapistim, que significa "Dia da Vida", carregou a embarcação com ouro, prata, "todos os seres vivos", "família, parentes, bestas do campo e criaturas selvagens", "todos os artífices" (técnicos) e um barqueiro (REHWINKEL, 2006, p. 118, linhas 80-85).
Em Gênesis, o nome do herói do Dilúvio é Noé, que significa "repouso". Deus permitiu que apenas ele, sua esposa, e três filhos com suas esposas entrassem na Arca (Gênesis 7: 1, 7).
A narrativa babilônica, em geral, assemelha-se à narrativa Bíblica quanto a seres humanos, animais, aves e algumas provisões levadas a bordo do navio. A principal diferença está no fato de que na história bíblica um número muito menor de pessoas foram salvas; apenas oito.
Ambas as Narrativas Afirmam que o Herói do Dilúvio Fora Instruído Divinamente para Construir Um Enorme Barco para Preservar a Vida.
A versão de Gilgamesh chama-o simplesmente de elippu, "navio" ou "barco", uma vez ecallu, que significa "casa grande" ou "palácio", sendo esta última uma indicação do seu tamanho, com seus muitos andares e compartimentos. Na narrativa encontramos as seguintes palavras:
“Derriba (a tua) casa, constrói um navio! Abandona (as tuas) posses, procura salvar a vida!Menospreza (tuas) coisas boas, e salva (a tua) vida! . (Faze) entrar no navio a semente de todos os seres vivos. O navio que construirás, Suas medidas serão(acuradamente) tomadas. Sua largura e seu comprimento serão iguais.” “Um ikû era a área do seu soalho; de cento e vinte côvados cada uma, era a altura de suas paredes. Cento e vinte côvados era a medida de cada um dos lados do seu convés. Eu "fiz a configuração" da parte externa (e) a ajustei. Seis conveses (mais baixos) construí dentro dele. Dividindo(-o) (assim) em sete (pavimentos). Dividi a sua base inferior em nove (secções).”
(REHWINKEL, 2006, p. 116, 117, linhas 24-30 e 55-59)
O navio de Utnapistim era uma construção cúbica, medindo a largura, comprimento e altura, 120 côvados. Porém, o côvado babilônico é maior do que o Hebreu, (mais de cinqüenta centímetros), o navio deslocava cerca de 228.500 toneladas, cerca de cinco vezes mais do que a arca. Mais do que isso, tinha sete andares e era dividido verticalmente em (nove) partes, contendo assim sessenta e três compartimentos.
Embora a narrativa Hebraica apresente idéia semelhante de um enorme barco não há conexão etimológica entre teba, que significa "arca" ou "baú" (Gênesis 6: 14; 7: 1) e as designações babilônicas para o mesmo navio. O escritor hebreu queria enfatizar o caráter peculiar da construção em que Noé se refugiou e, portanto, deliberadamente evitou o vocábulo navio. A arca era uma construção de fundo chato, retangular"de trezentos côvados será o comprimento, de cinqüenta a largura, e a altura, de trinta" (Gênesis 6: 15). Com base nesses dados a arca tinha 150 metros de comprimento, 25 de largura, e 15 de altura, tinha três andares, e consistia de um número não especificado de compartimentos, deslocando cerca de 43.300 toneladas.
Tanto no relato babilônico como no hebraico, figura proeminentemente o betume ou piche para calafetar o barco, tornando-o impermeável. Utnapistim derramou piche e asfalto na fornalha ou panela de piche, naturalmente para derretê-lo e assim tapar as emendas das tábuas do navio. Da mesma forma, Noé calafetou a arca "com betume por dentro e por fora" (Gênesis 6: 14).
O autor Henry Morris, em seu livro “Criação ou Evolução” escreveu que a arca deu segurança a Noé e sua família, por ter agüentado a força das águas ao mesmo tempo em que destruía os ímpios. Em seguida fez um paralelo com o texto bíblico de Gl 1.4, onde está escrito: “Assim Cristo, morrendo por nossos pecados, venceu o pecado para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de Nosso Deus e Pai.”
Ambas as Narrativas Indicam as Causas Físicas do Dilúvio.
A Epopéia de Gilgamesh cita chuvas torrenciais e ventos destruidores acompanhados por relâmpagos e trovões, rompimento de diques, canais e reservatórios, resultado da tromba de água de sete dias, como causas naturais do Dilúvio.
O relato Bíblico descreve, não apenas uma transformação completa nas condições climáticas e atmosféricas que produziram um aguaceiro de quarenta dias de duração, ininterruptamente, mas também grandes transformações geológicas. A estrutura do mundo antidiluviano foi radicalmente alterada, como é descrito na passagem de Gênesis. "Romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as comportas dos céus se abriram" (Gênesis 7: 11).
Ambas as Narrativas Especificam a Duração do Dilúvio.
Na Epopéia de Gilgamesh, a violenta chuva e tempestade de vento duraram apenas seis dias e noites. No sétimo dia, o Dilúvio cessou de acordo com a narrativa:
Seis dias e (seis) noites o vento soprou; o aguaceiro, a tempestade, (e) o di(lúvio) a terra inundaram. Quando chegou o sétimo dia, a tempestade e o dilúvio, que haviam lutado qual armada, sossegaram (seu) furioso ataque.O mar silenciou, a tormenta se amainou, o dilúvio sossegou. (REHWINKEL, 2006, p. 119, linhas 127-131)
No relato bíblico, a duração total do Dilúvio foi de um ano e onze dias (371 dias), isso se a narrativa for considerada como um todo. O período de aguaceiro violento foi de “quarenta dias e quarenta noites” (Gênesis 7: 17).
Ambas as narrativas citam o lugar onde o barco encalhou.
Na Epopéia de Gilgamesh, o navio de Utnapistim encalhou no Monte Nisir, a leste do Rio Tigre, cerca de seiscentos e quarenta quilômetros do Golfo Pérsico.
O Gênesis não menciona o local específico onde a arca parou, só mencionando que foi "sobre as montanhas de Ararate" (Gênesis 8: 4).
Ambas as Narrativas Incluem Surpreendentes Detalhes Semelhantes.
Especialmente notável é o episódio da soltura das aves, para certificar-se da diminuição das águas. Na narrativa babilônica, uma pomba é solta no sétimo dia depois que o navio parou no Monte Nisir. Não encontrando lugar para pousar, ela volta. Uma andorinha, da mesma forma, é solta, mas volta. Finalmente um corvo é solto, mas não volta.
No registro bíblico não há andorinha, mas um corvo é solto primeiro, quarenta dias depois que os cumes dos montes se haviam tornado visíveis (Gênesis 8: 6, 7). Depois uma pomba é solta em três ocasiões, perfazendo quatro tentativas, em vez de três, como na tradição babilônica. Unger, comentando sobre a finalidade de soltar as aves diz que
O fato do corvo voar de volta para a arca, e não ter voltado da segunda vez, foi útil para mostrar que, embora as águas tivessem baixado até certo ponto, e o mundo exterior não era inóspito demais para uma forte ave de rapina, mas ainda era impróprio para os demais ocupantes da arca. Na estória babilônica, o envio de corvos em último lugar, em vez de em primeiro, é sem sentido. (UNGER, 1989, p. 32)
Ambas as Narrativas Descrevem Atos de Adoração Praticados Pelo Herói Depois do Seu Livramento.
Utnapistim ofereceu sacrifício, derramou uma libação, e queimou ". .. cana (doçe), cedro e murta" :depois que abandonou o barco. O objetivo aparente era, em parte, aplacar a ira daqueles deuses que haviam decretado o completo extermínio da humanidade, e em parte expressar a sua gratidão a Ea, que, apesar de tudo, o havia poupado.
Da mesma forma, Noé ofereceu "holocaustos sobre o altar" que havia Construído (Gênesis 8: 20), com o objetivo principal, todavia, não de propiciar uma divindade irada, mas de adorar agradecidamente ao Amado que o havia salvo e à sua família e Deus "aspirou o suave cheiro" (Gênesis 8: 21).
Ambas As Narrativas falam de Bênçãos Especiais dadas ao herói, Depois do Desastre.
Na Epopéia de Gilgamesh, são conferidos a Utnapistim e sua esposa divindade e imortalidade, e eles são levados para habitar "em lugar distante, na boca dos rios”.
A narrativa bíblica também fala de bênção dada ao herói do dilúvio. Contudo, o benefício feito é de natureza completamente diferente. A capacidade para multiplicar-se e encher a terra, e para exercer domínio sobre os animais, que originalmente fora dada na criação, é conferida de novo a Noé e a sua posteridade, juntamente com a permissão para comer carne sem sangue (Gênesis 9: 1-5). Além disso, a lei de punição capital é formulada para proteger a vida do homem, e o Arco-íris colocado nos céus como um sinal da aliança de Deus de que nunca mais um dilúvio destruiria a terra (Gênesis 9: 5-17).
Contrastes entre a Narrativa babilônica e o Relato bíblico
Existem numerosas semelhanças entre a narrativa babilônica e a bíblica a respeito do Dilúvio, mas as divergências entre ambas são muito significativas e fundamentais. Será plenamente suficiente, portanto, à luz das muitas diferenças que já foram notadas na discussão das semelhanças, sumarizar os chocantes contrastes sob três tópicos: teológicos, morais e filosóficos.
1. As duas narrativas estão em grande contraste, quanto às suas concepções teológicas.
As duas narrativas se divergem completamente quanto ao conceito de divindade. Isto é a base das diferenças que as tornam tão distantes entre si. Enquanto na narrativa bíblica impera o monoteísmo, na babilônica encontramos provas de um politeísmo forte.
Em vez de atribuir o Dilúvio ao Único e Eterno Deus, como está registrado no livro de Gênesis, a narrativa babilônica inclui uma grande quantidade de divindades que não se dão uma s com as outras. Esses enquanto o dilúvio está sendo consumado negam ter qualquer participação nesta catástrofe. Escrevem também que a divindade culpada pelo castigo que seria para todos, se arrepende e permite que Utnapistim e sua esposa fiquem vivos e lhes oferece a vida eterna.
Outro exemplo notável da degradação da estória babilônica, devido ao seu Politeísmo grosseiro, pode ser observado na reação das divindades aos sacrifícios apresentados pelo herói do dilúvio após as águas terem baixado. Essa reação está profundamente em contraste com a reação de Deus frente à oferta de Noé. "E o Senhor aspirou o suave cheiro" e determinou-se a tolerar os pecados da humanidade e nunca mais visitar a terra com o dilúvio universal, ou quebrar as leis naturais, enquanto a terra existir (Gênesis 8: 21, 22).
A narrativa babilônica, por outro lado, está mergulhada no mais estúpido politeísmo, e apresenta uma cena desprezível. Quando "os deuses aspiram ao doce odor", "agrupam-se, em torno do que sacrificava como moscas", eles logo esquecem as desgostos que tinham contra a humanidade pecadora, e se alegram bastante porque Utnapistim sobrevivera. Mesmo se fosse agachando-se de medo "como cães" ou enxameando gananciosamente “como moscas”, a baixa concepção das divindades estabelece um abismo intransponível entre as narrativas politeístas cuneiformes e a imponente narrativa monoteísta da Bíblia.
2- As duas narrativas estão em grande contraste quanto às suas concepções morais.
É realmente natural que junto de uma idéia tão abominável de divindade se chegasse a uma totalmente errônea com respeito à moralidade. Esta é a razão pela qual a ética não fica clara nas estórias cuneiformes. Não é apresentada uma posição clara sobre o pecado e por fim o dilúvio aparece apenas como um capricho dos deuses e não como uma punição necessária sobre os pecados dos homens. Olhando desse ângulo a narrativa babilônica tem valor ético e didático muito duvidoso.
Já o relato bíblico por sua vez apresenta o dilúvio como um julgamento moral enviado por Deus, que é justo em todas suas relações com os homens. E por isso pune o pecador impenitente mesmo que isto acarrete destruição do mundo, mas salva aquele que se arrepende dos grandes pecados com seu poder e de forma divina. Isto nos ensina que Deus odeia o pecado, mas se alegra quando um de seus filhos se arrepende de seu mau caminho.
3- As duas narrativas estão em contraste quanto às suas concepções filosóficas.
A narrativa babilônica além de ser viciada por uma teologia errada, também está relacionada a uma filosofia falsa. Ela não tem a capacidade de atribuir a criação do mundo a um Ser Soberano que já existia antes de todas as outras coisas. Confunde matéria e espírito tornando ambos eternos. Desse modo falha em diferenciar espírito de matéria, e o espírito finito do Espírito infinito, e ainda mais é ignorante quanto aos princípios causais. Ao invés de atribuir o dilúvio ao Criador de todas as coisas, o qual coloca as forças naturais de sua criação para atingir seus objetivos como no relato bíblico, mostra o dilúvio como sendo vários fenômenos físicos em forma de divindades.
No relato bíblico, somente Deus como Criador e Mantenedor de toda sua criação, comanda o acontecimento para cumprir sua vontade. Após ter punido o pecado do homem através de forças naturais, ao mesmo tempo pôs de lado mesmo que temporariamente as leis que Ele mesmo havia criado. Deus diz que não tornará a fazer isso por causa da maldade humana nem quebrar de novo o ritmo normal de um universo que está em ordem (Gn 8.22).
3 – Explicações das semelhanças
A relação de origem entre as duas narrativas do dilúvio é clara, devido aos muitos paralelos que elas apresentam. Existem três possibilidades possíveis para o ocorrido. Ou os babilônicos copiaram sua versão dos escritos bíblicos, ou vice versa, ou ambas provêm de uma fonte comum, que se originou de uma ocorrência verdadeira.
1 – Os babilônicos se apropriaram da narrativa hebraica
Esta explicação é extremamente improvável, e apenas alguns eruditos a apóiam, justamente pelo fato de que os tabletes babilônicos mais antigos que se conhece são bem mais velhos que o livro de Gênesis em comparação com sua data de escrita. Pode ser que o relato bíblico do dilúvio que temos agora tenha existido em outra forma, séculos antes de ter sido escrito como o temos hoje.
2 – Os hebraicos se apoderaram da narrativa babilônica.
Na atualidade é a possibilidade mais aceita, mas que encontra certa resistência por parte dos estudiosos da Bíblia. Se for aceita esta explicação, se joga fora a Doutrina da Inspiração Divina. Estudiosos da Bíblia não se impressionam com estas explicações, pois consideram o fato de isto ser apenas teoria que não pode ser provada.
Um dos principais argumentos usados para alegar que os hebreus se apoderaram da história dos babilônicos é o suposto colorido da estória do Dilúvio Hebraico. É falado em uma terra sujeita a inundações, no caso a Babilônia, mas isto não é comprovado pela narrativa bíblica. Gênesis fala de rompimento de fontes subterrâneas, mas é justamente a Palestina, a terra onde existem fontes subterrâneas e não a Babilônia (Dt 8.7).
A passagem que fala do sacrifício após o dilúvio que está registrado em Gn 8.21 onde diz: “E o Senhor aspirou o suave cheiro”, é também dito ser derivada da narrativa babilônica. Esta apresenta sem dúvida um paralelo, mas a partir de um estudo mais cuidadoso da referida passagem é possível compreender que não há qualquer correspondência etimológica entre os termos empregados.
Também para a passagem de Gn 6.14, onde diz: “com betume por dentro e por fora”, encontramos paralelo, onde cofer deriva da palavra babilônica cupru. É possível que devido ao fato do betume ter sido inicialmente fabricado na Babilônia e este produto ter se espalhado por toda as nações vizinhas e com ele o nome babilônico.
3- Tanto a narrativa hebraica como a babilônica provêm de uma fonte comum de fato, que se originou de uma ocorrência verdadeira.
É possível que ambas as narrativas tenham uma origem comum entre os semitas, onde uns foram para a Babilônia enquanto outros foram para a Palestina levando consigo estas tradições. Os hebreus não viviam isoladamente, e seria bem estranho se eles não possuíssem tradições semelhantes às de outras nações semíticas.
As tradições comuns entre os hebreus são refletidas nos fatos autênticos e verdadeiros dados a eles através de revelação divina. É possível que Moisés estivesse familiarizado com as tradições, e a inspiração divina o tenha capacitado a registrá-las corretamente retirando qualquer vestígio de politeísmo e adotando elementos puramente monoteístas. Mas se ele não estava familiarizado com estas tradições é perfeitamente possível que o Espírito de Deus o tenha revelado esses acontecimentos, sem a necessidade de qualquer fonte oral ou escrita.
Heidel defende que ambos os relatos do Dilúvio, o bíblico e o babilônico, retrocedem a uma origem comum de algum tipo. Esta fonte não necessita ser de todo originária do solo da Palestina, mas pode ter-se originado na terra da Babilônia, onde o livro de Gênesis (11.1-9) localiza o lar da humanidade pós-diluviana, e de onde Abraão emigrou para a Palestina. Visto sabermos que várias diferentes versões do Dilúvio circulavam na região do Tigre e do Eufrates, esta é uma possibilidade muito evidente.
Conclusão
Como no caso das histórias de criação, não sabemos ainda como as narrativas bíblicas e babilônicas do dilúvio são historicamente relacionadas. A evidência disponível não prova nada além do ponto de que há uma relação de origem entre Gênesis e as versões babilônicas. O esqueleto é o mesmo em ambos os casos, mas os componentes restantes, ou seja, o tema principal não tem qualquer relação entre si. A lenda da inundação babilônica, em particular, é afundada no politeísmo mais estúpido.
Os deuses ficam divididos quanto à verdadeira razão e quem na verdade é o culpado desta catástrofe. Eles logo esquecem os desgostos que tinham contra a humanidade pecadora, e se alegram bastante porque Utnapistim sobrevivera. . Junta em cima do sacrifício como um enxame de moscas famintas! Esta baixa concepção das divindades estabelece um abismo intransponível entre as narrativas politeístas cuneiformes e a imponente narrativa monoteísta da Bíblia. No dilúvio babilônico o motivo moral ou ético está quase que completamente ausente. Como lemos as primeiras linhas da história do dilúvio no Tablete XI da Epopéia de Gilgamesh, nós adquirimos a impressão de que o cataclisma foi causado pelo capricho dos deuses, por nenhuma razão ética.
Levando em consideração que os deuses tinham intenção em destruir a raça humana inteira sem discriminação entre o justo e o injusto, é aparente que os deuses foram incitados mais através de capricho que por um senso de justiça. É verdade, o herói do dilúvio foi salvo por uma divindade amigável por causa da sua devoção; mas isso era contra o decreto dos deuses em conselho e provocou uma disputa entre eles, inclusive culpando Enlil de ser o culpado da catástrofe.
Na história bíblica, por outro lado, a inundação é enviada por um Deus Onipotente que é justo em todos os seus procedimentos, que castiga o pecador impenitente, mas salva o justo com sua mão poderosa e do seu próprio modo. Em Gênesis o dilúvio é claramente e inconfundivelmente um julgamento moral, uma ilustração forte da justiça divina dando um castigo duro a uma "geração incrédula" e perversa, mas libertando o íntegro.
No documento hebreu o motivo ético é tão forte que Deus é retratado até mesmo que como lamentando mesmo a criação do homem. Enquanto no babilônico, os deuses, com a possível exceção de Enlil, lamentam a destruição do homem. Embora Deus tenha decidido não enviar outra inundação, ele não é representado em nenhuma parte como lamentando a catástrofe do dilúvio. Mas mesmo assim diz que não vai mais destruir a terra por meios não naturais. Isso serve para despertar a consciência do mundo, dar esperança e confortar o Crente em Deus.