VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
29 de outubro de 1995
Rute l. l-19a
Leituras do dia
Epístola - 2 Tm 2.8-13. O texto focaliza o sofrimento que o apóstolo suporta por causa da Boa Notícia do amor de Deus. Tendo como referencial de vida o Salvador Jesus, espelha-se no seu exemplo e prossegue a sua jornada sabedor de que, vencidos esses desafios terrenos, reinará com Cristo. Depois de dizer que "se o negarmos (a Cristo), ele também nos negará", enfatiza sobretudo a fidelidade "àquele que é a razão de nossa esperança".
Evangelho - Lc 17.11-19. O evangelho fala, em primeiro lugar, de sofrimento. São dez leprosos que sofrem. São sofredores que buscam auxílio em Jesus e dele recebem a cura de seu mal. Enfatiza, depois do sofrimento, a cura e a alegria, acrescentando a ingratidão dos nove que não reconhecem a misericórdia e a graça de Deus. Sublinha, entretanto, a fidelidade do estrangeiro - o único de todos os curados - que volta para agradecer e louvar a Deus.
A linha do pensamento, portanto, está perfeitamente atada ao episódio da estrangeira Rute, a contar do sofrimento à atitude de extrema fidelidade.
Contexto
O livro de Rute narra à trajetória dramática de uma família em tempos de crise. A trama não está datada com precisão, mas se desenrola "nos dias em que julgavam os juizes". O relato diz que por esta época houve fome na terra. Não se define bem o sentido de terra mas, para o hebreu, só um país poderia ser a terra. Era a terra dada por Deus ao seu povo - a terra de Canaã. Fome e pobreza bateram forte, então, na casa de muitas famílias (fato, aliás, atualíssimo em nosso cotidiano). Entre elas estava a de Elimeleque (cujo nome significa "Deus é Rei" ou "Meu Deus é Rei"). Essa família, constituída de quatro pessoas - o pai Elimeleque, a mãe Noemi e dois filhos, Malom e Quiliom - teve que abandonar a terra para buscar trabalho e alimento em outro país, Moabe. Os rapazes se casaram com moças daquele país, chamadas Orfa e Rute. Mas por lá as coisas não melhoraram muito. Para não dizer que a desgraça era pouca, o pai acabou morrendo e, depois, os filhos. Sobraram as três mulheres. A família foi minguando e o ânimo também: três mulheres, três pobres, três viúvas.
Noemi sentiu-se só e sem raízes e apoio em um país estrangeiro. Resolveu voltar à sua terra. Sendo já falecidos seus filhos e não tendo outros para que desse às suas noras, resolve devolver-lhes sua liberdade, para que pudessem reconstruir suas vidas, casar novamente e livrar-se do sofrimento e da humilhação que significava naquela cultura não ter marido nem filhos. Para a mulher, o casamento significava ser praticamente comprada pela família de seu marido e nesta deveria realizar-se gerando filhos e garantindo o nome e a continuidade da herança da família e seu marido. Rute, uma das noras, recusa a separar-se de sua sogra (sogra!) velha, desanimada e sem grandes condições de lutar por sua sobrevivência. Dá admirável testemunho de fé no Deus de Israel, que aprendera a amar no seu convívio com a família israelita. Juntamente com a questão da fé, salta da atitude de Rute também um gesto profundamente impregnado de ternura, de solidariedade, de fidelidade e amor desinteressado.
Texto
Vv. 1,2. "Nos dias em que julgavam os juizes, houve fome na terra." Os juizes eram homens levantados por Deus para serem os libertadores da nação em épocas de opressão. "Julgavam" é tradução literal do hebraico. Exerciam funções legais, mas sua tarefa maior era dirigir o povo. Por essa época, houve fome na terra. A Palestina se caracteriza por precipitações pluviais irregulares, daí decorrendo épocas de seca e, conseqüentemente, de fome, que não eram incomuns. Um homem de Belém ("casa do pão" ou "celeiro"), cidade da região de Judá, tenta escapar das dificuldades indo para Moabe. Evidentemente, não havia intenção de migração permanente. O verbo gûr, "saiu", denota que o homem planejava retornar no devido tempo. As indicações que temos favorecem a idéia de que esta família era distinta: no final do capítulo, quando Noemi retorna, “toda a cidade" estava interessada, o que indica o retorno de alguém bem conhecido, não um "joão-ninguém".
Vv. 3,4. Não há qualquer registro do tempo que permaneceram em Moabe nem acerca das atividades que desenvolviam até que viesse a falecer Elimeleque. Os filhos, então, casam-se com esposas moabitas: Orfa e Rute. A declaração de que "ficaram ali quase dez anos" provavelmente refere-se ao período todo que ali moraram, e não apenas ao tempo que estiveram casados. Não sabemos quantos anos tinham quando foram a Moabe nem em que época contraíram matrimônio.
Vv. 5. Malom e Quiliom também faleceram completando o quadro de desgraças: três homens da família mortos. O autor não dá as causas das mortes e, para os propósitos da história, isto não é importante: o que interessa são as reações das mulheres. Noemi ficou só, sem marido e sem filhos.
Vv. 6,7. Como as comunicações funcionavam já naquele tempo, Noemi soube do fim da fome em Judá. A razão era de que "o Senhor se lembrara do seu povo". Como não tinha raízes em Moabe, decidiu retornar à sua terra (qûm indica o início de uma ação). Logo estavam a caminho. Tem-se a impressão de que se tratava de um lar muito pobre, visto que os preparativos de viagem foram feitos rapidamente. As três mulheres caminhantes rumo a Judá amadureceram no caminho a decisão final quanto a se realmente todas elas desejavam ir para lá.
Vv. 8,9. De um total de 85 versículos do livro, mais de 50 constituem-se de diálogos, como esses, onde Noemi convida as viúvas jovens a deixá-la e retornarem à casa de suas mães. Noemi ora para que Javé use com elas de benevolência (hesed, aqui traduzido por "benevolência", tem também o sentido de lealdade e amor. Noemi reconhece que Javé é um Deus fiel e amoroso, e ora para que ele trate de suas noras de acordo com a sua natureza). Não pode passar despercebido o fato de ela usar o nome "Javé", o nome pessoal do Deus de Israel. Poder-se-ia esperar que, falando a mulheres moabitas, usasse a palavra geral para "Deus" ('elohîm), ou "Camos", nome de um dos principais deuses dos moabitas. Ela, porém, usa "Javé"; Camos não merece consideração! Depois de lhes desejar felicidade, rompe com um beijo uma longa relação familiar, o que fez as noras romperem em choro, em alta voz - expressão oriental de profunda tristeza.
Vv. 10-13. O rompimento, a despedida são rejeitados. Noemi retoma a argumentação de que viver com ela significará nada mais do que pobreza e incerteza. Não gerará outros filhos que possam vir a ser seus esposos. "A mim me amarga o ter o Senhor descarregado contra mim a sua mão" não dá, segundo Cundal e Morris, o sentido hebraico como a tradução "mais amargo me é a mim do que a vós". Elas haviam perdido o marido; Noemi, marido e filhos. Elas poderiam casar-se outra vez, encontrar segurança e felicidade. Para Noemi, não havia outra perspectiva senão a da velhice solitária.
V. 14. Após mais lágrimas, as jovens viúvas reagem. Orfa com um beijo sedespede. Não raro se condena como egoísta a atitude de Orfa, que aceita a liberdade para reconstruir sua vida. J. T. Cleland nos lembra de sua "obediência submissa". Ele enfatiza que "ela foi dissuadida pelo aconselhamento ajuizado de uma mulher mais idosa. Não há um bom motivo para menosprezá-la. A obediência não é uma virtude que se possa desprezar ou censurar". Rute demonstrou mais imaginação e um amor mais profundo. O que não significa que devamos nos apressar em culpar Orfa.
Vv. 15-19. A resposta de Rute é expressão clássica de fidelidade. Declara a Noemi sua devoção imorredoura e recusa-se a deixá-la. Rompe com seu passado, com seu povo e decide fazer do povo de Noemi seu próprio povo. O Deus de Noemi será o seu Deus. Isto não significa que não tenha princípios religiosos, ou que coloque a amizade acima da fé. Já no v. 17 ela invoca a Javé, o que indica que ela veio a confiar nele (cf. 2.12). "Eu juro que a morte, e só a morte, nos separará". Há aí uma determinação e firmeza inabaláveis. Noemi não pode argumentar contra voto tão solene e abre seu coração àquele gesto de fidelidade e amor.
Proposta homilética
O texto nos coloca diante de duas mulheres de muito valor. Noemi, reconhecendo a sua fraqueza e impossibilidade de oferecer a suas noras uma uma vida digna e respeitável, lhes devolve a liberdade e com desapego as envia a buscar a sua realização enquanto mulheres. A outra, Rute, ultrapassa as exigências feitas a ela, pelos costumes da época, e assume colocar sua vida a serviço de uma mulher ainda mais frágil e necessitada do que ela. Há um exemplo - contrário aos frívolos relacionamentos de telenovelas - de valorização e preservação do sentido de família. Há o exemplo de uma sogra (!) que, em terra estranha, consegue manter-se fiel à sua fé e ao seu Deus e, ainda mais, com suas atitudes e testemunho de vida, conquistar o coração estrangeiro à mesma fé. Com razão, há quase mil e seiscentos anos, na primeira Homilia sobre as estátuas, bradava, por sua boca de ouro, S. João Crisóstomo: "Um homem só, mas abrasado de fé, pode reformar um povo inteiro". A fidelidade a Javé e a estrutura dessa fé são as bases de uma aliança de solidariedade e os laços rijos de uma amizade inseparável. Nesse fundamento, elas se articulam e reconstroem o sentido de vida e a esperança, como demonstra o restante do relato: num segundo casamento, Rute veio a ser bisavó de Davi, o maior rei de Israel. Duas mulheres de valor (ou, cooperadores de valor):
1. Noemi - no desejo de ver a felicidade alheia na fidelidade e no testemunho aos estrangeiros
2. Rute - na dedicação e amor ao mais fraco na preservação do sentido de família na determinação de seguir e servir o Deus verdadeiro
3. Nós - a medida do nosso valor: na atitude para com os outros, especialmente os mais fracos na atitude para com Deus e em relação à nossa fé na resolução dos rumos a tomar em meio às nossas jornadas.
Astomiro Romais