IV. Defender a honra do próximo
A 7 petição fala do mal. O Mal personifica é o “pai da mentira” (Jo 8.44), “logo toda mentira, todo falso testemunho” procede do mal. O Mal ainda causa outros males “no corpo e na alma”, mas a honra é que sofre mais com a mentira.
A honra faz parte e adere à pessoa. Lutero inicia seu estudo do 8º mandamento expressando essa relação de forma semelhante. Argumenta que “além do nosso próprio corpo, do cônjuge e dos bens temporais (5º, 6º e 7º mandamentos), temos outro tesouro que também não podemos dispensar, a saber, honra e boa reputação”. Nós precisamos do bem da honra para podermos nos alegrar com os três bens anteriores.
Como a pessoa é inviolável, assim também o deve ser a honra. Honra é a autenticidade da pessoa, dada por Deus, pela qual a pessoa é confiável no lugar e no ofício em que Deus a colocou através do chamado. Sem honra, a pessoa morre, mesmo em vida. Tirar a vida é o programa do “pai da mentira” (]o 8.44), o Mal que se colocou em oposição a Deus. Sua arma é o “falso testemunho” contra a pessoa, como ensinou a fazer desde a mentira insinuada a Adão e Eva (Gn 3.4 e 5).
Por essa razão, Jesus ensinou os seus discípulos a orar contra a mentira, pedindo ao pai-nosso: “Mas livra-nos do Mal”. Podemos ver a importância dessa petição, considerando a Lei da Honra, a Lei da Verdade, a Lei da Liberdade e a Lei da Paz.
A lei da honra = Do ponto de vista subjetivo, honra é o cantinho em se vale algo, em que se sabe da auto-estima proveniente da autenticida, de que Deus colocou na pessoa pela qual ela se reconhece com uma dignidade própria por causa da criação por Deus, à qual EIe acrescentou uma dignidade alheia pela redenção em Cristo. Somos muito valiosos para Deus. Essa é a nossa autenticidade e honra, do ponto de vista subjetivo.
Mas honra é mais abrangente. É o respeito e a estima adquiridos, que os outros têm pela pessoa por causa de sua personalidade, sua seriedade, sua confiabilidade, seu trabalho, seu carinho e suas realizações.
Honra também adere ao ofício por causa do chamado recebido de Deus através de outras pessoas. Assim o 4º mandamento fala da “honra” que se deve ao ofício de pais. Lutero distingue entre “amor” e “honra”, dizendo que Deus “não ordena simplesmente que amemos os pais; manda honra-los. Pois honrar muito mais elevada coisa é que amar. Não abrange apenas o amor, senão modéstia, humildade e reverência como para com uma majestade oculta”. Os pais estão “no lugar mais elevado depois de Deus”, são “representantes de Deus”. E dessa “autoridade dos pais deflui e se irradia toda outra autoridade”, como diz Lutero, passando a outras pessoas, autorizadas pelos pais, a mesma honra. Lutero inclui aí os professores, as pessoas ligadas à economia familiar e ao governo. A honra de todas as pessoas com chamado e ofício merece a mesma proteção que a honra dos pais.
Como cada um de nós recebeu um chamado de Deus para uma certa função na sociedade, o lugar delimitado por nosso ofício, cumpre-nos zelar para que nesse lugar se preserve a honra, tanto nossa como a do próximo que participa de nosso espaço de vida. A regra geral é amar o próximo como a si mesmo, o que compreende zelar por sua vida e seus bens, mas também pela sua honra, para poder desfrutar desses dons e alegrar-se com eles.
O oitavo mandamento quer proteger a quem é injustamente desonrado.
Nesse sentido, o direito da pessoa deve prevalecer, com a ajuda de quem lhe é o próximo: “Esse mandamento mira, pois, em primeiro lugar, a que cada qual ajude o próximo no sentido de lhe garantir o seu direito. Não permitirá que seja barada ou torcido, mas há de promover-lhe o direito e sobre ele vigiar com firmeza, quer seja juiz, quer testemunha, e seja qual for o caso em questão”.
A tarefa de defender o direito das pessoas também transcende o âmbito individual. Há, na sociedade, profissionais especialmente incumbidos desta causa. Destes, Lutero cobra retidão e os adverte contra a corrupção: “E com isto fica especialmente fixada uma meta aos nossos senhores juristas: terem o cuidado de tratar das coisas reta e sinceramente, deixando ser justo o que justo é, e, por outro lado, não torcer, nem encobrir ou silenciar, sem levar em consideração dinheiro, bens, honra ou poder”.
Quanto àquelas pessoas que injustamente são desonradas, e que, na comunidade, facilmente são discriminadas, estigmatizadas e consideradas indignas, Lutero lembra, em sua defesa, a palavra de Paulo, em 1 Co 12: “Os membros do corpo que nos parecem ser os mais fracos, são os mais necessários; e os que nos parecem os menos dignos, a estes damos a maior honra; e os que em nós não são decorosos, revestimos da maior honra”.
Portanto, podemos concluir que, a partir do Catecismo Maior, toda obra que é ordenada por Deus e que é realizada para a sua honra e louvor em favor do próximo necessitado, é teologicamente legítima.
Se assim não fosse, não encontraríamos nos sermões do Reformador textos tão insistentes em relação à necessidade das obras que provêm da fé, como este: “Depois disso, cuida apenas para proceder com o próximo, como Cristo procedeu contigo, e deixa todas as tuas obras com toda a sua vida visar o teu próximo. Procura onde há pobres, doentes e débeis; ajuda-os; exercita neles a tua vida, para que tenham apoio, por tua parte, todos aqueles que precisam de ti; ajuda-os na medida de tuas capacidades com teu corpo, teus bens e tua honra... Saiba que servir a Deus não é outra coisa, senão servir ao teu próximo, fazendo-lhe bem com amor, seja ele uma criança, uma mulher, um criado, um inimigo ou um amigo. Não faças distinções quaisquer. O teu próximo é aquele que necessita de ti em assuntos de corpo e alma. Onde podes ajudar corporal e espiritualmente, lá há serviço a Deus e boas obras... Olha para a tua vida. Se não te encontrares, como Cristo no Evangelho, em meio aos pobres e necessitados, então saiba que a tua fé ainda não é verdadeira e que certamente ainda não experimentaste em ti o favor e a obra de Cristo” [1]
Além do nosso próprio corpo, do cônjuge e dos bens temporais, temos outro tesouro que também não podemos dispensar, a saber, hora e boa reputação. Pois importa não viver entre os homens em publica desgraça, desprezo por todos.
Por isso Deus não quer se tirem ou diminuam a reputação, o bom nome e a retidão do próximo, exatamente assim como não quer que lhe tiremos ou diminuamos dinheiro e bens, a fim de que esteja em honra diante de sua mulher, filhos, empregados e vizinhos. E em primeiro lugar, o sentido mais imediato deste mandamento, segundo a letra (Não dirás falso testemunho), refere-se ao foro público, onde um pobre inocente á acusado e oprimido por falsas testemunhas, para ser castigado no corpo, nos bens ou na honra.[2]
Este mandamento mira, pois, em primeiro lugar, a que cada qual ajude o próximo no sentido de lhe garantir o seu direito. Não permitirá que seja obstaculizado ou torcido, mas há de promover-lhe o direito e sobre ele vigiar com firmeza, quer seja ele juiz, quer testemunha e seja qual for o caso em questão. E com isso fica especialmente fixada uma meta aos nossos senhores juristas: terem o cuidado de tratar das coisas reta e sinceramente, deixando ser justo o que justo é, e, por outro lado, não torcer, nem encobrir ou silenciar, sem levar em consideração dinheiro, bens, honra ou poder. Esse é um dos pontos e o sentido mais imediato desse mandamento quanto a tudo o que sucede nos tribunais.
Estende-se, em segundo lugar, muito mais, se é para ser referido à jurisdição ou regime espiritual. Aqui o que sucede é que cada qual testemunha falsamente contra o próximo. Pois onde há pregadores e cristãos piedosos, têm aos olhos do mundo a sentença de serem chamados de hereges, apóstatas, sim, malfeitores sediciosos e ímpios. Além disso, a Palavra de Deus tem de deixar que da maneira mais vergonhosa e virulenta seja perseguida, blasfemada, acusada de mentirosas, pervertida e erroneamente citada e interpretada. Mas isso que siga seu caminho; pois que é da natureza do mundo cego condenar e perseguir a verdade e os filhos de Deus e contudo não considerar pecado tal coisa.
Em terceiro lugar - o que a todos nos toca - este mandamento proíbe todo pecado da língua por que se possa causar dano ao próximo ou magoá-lo. Porque "dizer falso testemunho" outra coisa não é senão obra da boca. Tudo, pois, quanto se faz contra o próximo com obra da boca, Deus quer proibido, quer se trate de falsos pregadores com sua doutrina e blasfêmias, quer de falsos juízes e testemunhas com a sentença, ou em outras ocasiões, fora do tribunal, com mentiras e maledicência. Aqui vem especialmente ao caso, o vício detestável e vergonhoso de fazer má ausência ou caluniar, com que o diabo nos aperta. Muito se poderia dizer a esse respeito. Porque é praga danosa comum isso de cada qual gostar mais de ouvir falar mal do que bem do próximo. E, posto sermos nós mesmos tão maus, que não podemos suportar diga alguém algo de mal a nosso respeito, apetecendo cada qual, ao contrário, que todo o mundo fale coisas áureas dele, não toleramos, contudo, ouvir alguém dizer o melhor a respeito de outrem.
Por isso, a fim de evitar esse vício, devemos lembrar que a ninguém cabe julgar e censurar publicamente o próximo, ainda quando o vê pecar, a menos que tenha ordem de julgar e censurar; pois diferença mui grande vai entre julgar pecado e ter conhecimento de pecado. Podes, na verdade, estar ciente de pecado, mas não deves julgá-lo. Bem posso ver e ouvir que o próximo peca, mas não é incumbência minha contá-lo a outros. Agora, se me adianto e passo a julgar e sentenciar, caio em pecado maior que o do outro. Se tens ciência de um pecado, outra coisa não faças senão transformar os ouvidos em sepultura e fechá-la, até receberes ordem de ser juiz e punir oficialmente.
Porque honra e bom nome facilmente se tiram, mas não é fácil restituí-los.
O procedimento correto, porém, seria ater-se à ordem do Evangelho, Mateus 19.18.15, onde Cristo diz: "Se teu irmão pecar contra ti, vai argüí-lo entre ti e ele só." Aqui tens preciosa e excelente doutrina de como governar bem a língua.
Dela cumpre tomar boa nota contra o detestável abuso. Seja esta, portanto, a tua norma: não sair logo por aí a divulgar coisas a respeito do próximo e a difamá-lo, mas admoestá-lo em particular, para que se emende. Semelhantemente, outrossim, quando alguém te leva aos ouvidos o que esse ou aquele fez, também a ele ensina da mesma forma: que vá e o repreenda pessoalmente, se viu a coisa; caso contrário, que cale a boca.
Como também diz Cristo naquele passo: "Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão" [Mt 18.15]. Aí então praticaste grande e excelente obra. Pensas que é coisa de pequena monta ganhar um irmão? Que se adiantem todos os monges e santas ordens com todas as suas obras fundidas em uma só massa, e vejamos se podem gloriar-se de haverem ganho um irmão.
Demais ensina Cristo: "Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça" [Mt 18.16]. Por forma que sempre se há de tratar com a própria pessoa a quem o caso diz respeito e não se falará dela sem o seu conhecimento. Se isso não adiantar, então apresenta o assunto publicamente à comunidade, diante de tribunal civil ou espiritual. Porque aqui não estarás sozinho, mas terás contigo aquelas testemunhas, pelas quais podes provar a culpa do réu. O juiz pode fundamentar-se nisso, pronunciar a sentença e castigar.
Assim temos agora a suma e o sentido geral desse mandamento: que ninguém deve causar dano ao próximo com a língua, quer se trate de amigo, quer de inimigo, nem deve falar mal dele, pouco importa se é verdade ou mentira, a menos que seja decorrência de mandato ou vise a melhorar. Cumpre, ao contrário, fazer uso da língua para falar o melhor a respeito de todos, encobrir seus pecados e fragilidades, escusá-los e os embelezar e velar com sua honra.
[1] (Sermonário de 1522; prédica sobre Mt 11.2-10; WA 10/I, 2, p. 168, linha 17 até p. 169, linha10).
[2] Lutero obras selecionadas volume 7, pág 376…