TERCEIRO DOMINGO DE PÁSCOA
Atos 2. 14a, 36-47
14 de abril de 2002
CONTEXTO
O texto se insere no contexto do episódio do primeiro Pentecostes da igreja cristã em Jerusalém, relatado por Lucas em Atos 2. Estando os 12 discípulos de Jesus com alguns irmãos e irmãs em Cristo (cerca de cento e vinte pessoas – At 1.15), reunidos no mesmo lugar ( talvez no cenáculo em que Jesus pela última vez neste mundo esteve reunido com seus discípulos, na noite em que foi traído), foi derramado sobre eles o Espírito Santo de maneira milagrosa que os habilitou a falar em outras línguas, que podiam ser entendidas pelos peregrinos judeus, vindos de outros países, cujas línguas falavam (At 2.8-11). Foi então Pedro que, em nome dos onze, tomou a palavra, e dirigiu aos milhares que haviam sido atraídos pelo espetáculo, aquele vibrante discurso que teve como resultado a conversão de quase três mil pessoas. O nosso texto apresenta a conclusão do discurso de Pedro, sua reação entre os ouvintes e seus versículos finais descrevem a vida espiritual da primeira congregação cristã em Jerusalém.
TEXTO
V. 14a – O discurso de Pedro segue um modelo que se tornou comum na Igreja Primitiva. Faz primeiro uma explanação dos acontecimentos. Segue depois a boa nova de Jesus: sua morte, ressurreição e exaltação e conclui com um apelo ao arrependimento e batismo. Um esboço similar ocorre também em Atos 3, 10 e 13. “Pedro, de pé com os onze, ergueu a voz e assim lhes falou”, lemos na Bíblia de Jerusalém, traduzindo mais acuradamente o particípio stateís, que não descreve exatamente a ação de levantar, mas o fato de já estar em pé.
V. 36 – Do começo do discurso de Pedro o nosso texto salta até o final, mas é oportuno passarmos em revista o discurso todo. Citemos apenas os tópicos principais. Introdução (vv. 14-21).
Tema: Jesus é o Ungido de Deus. Principais partes do tema: 1) Suas obras demonstram a aprovação de Deus (v.22). 2) Sua morte, predeterminada por Deus, foi executada pelas mãos criminosas dos romanos, instigados pelos judeus (v. 23). 3) Deus o ressuscitou (v.24). 4) Davi falou detalhadamente sobre a ressurreição e exaltação de Jesus, não se referindo a si mesmo (vv.25-31). 5) A ressurreição de Jesus foi confirmada por testemunhas oculares (v. 32). 6) Jesus derramou o Espírito em virtude de uma promessa do Pai, que recebera quando exaltado à destra de Deus (vv.33-35). Conclusão: Que todos estejam certos, pois, de que Jesus crucificado foi feito por Deus Senhor e Cristo (v. 36). A conclusiva pois tira a conclusão de todo o discurso. Eles crucificaram aquele a quem Deus fez Senhor e Cristo. É uma peroração poderosa. Ele foi feito Senhor pela exaltação à mão direita do Pai e ele foi feito Cristo ou Messias por nele se terem cumprido todas as promessas do Antigo Testamento. A palavra Cristo se refere a um ofício, que ao mesmo tempo é tríplice: profeta, sumo sacerdote e rei. A palavra senhor fez dele o Senhor por excelência, o Senhor dos senhores de um reino que jamais teria fim. O martelo da lei no segundo uso acertou em cheio a bigorna da culpa dos judeus.
Pedro não mediu suas palavras. Lenski diz que não houve aqui nenhuma súplica ou mendicância sentimental que tantas vezes falha em atingir o alvo. Nenhum pecador faz um favor a Deus quando aceita a Cristo. Pedro pregou a verdade divina com todo o seu poder. O efeito viria por si mesmo (The Interpretation of the Acts of the Apostles, p. 103).
V. 37 – Ao ouvir isso, foram apunhalados em seu coração. É essa a tradução exata de katanussomai, que o nosso texto de Almeida traduz por “compungiu-se-lhes o coração”, a Bíblia de Jerusalém por “sentiram o coração transpassado” e a nova tradução na linguagem de hoje por “todos ficaram muito aflitos.” A pregação da lei agiu como uma adaga transpassando seu coração, provocando neles uma profunda compunção ou pesar profundo. O coração na cultura grega sempre foi o centro da personalidade, incluindo a mente, o sentimento e a vontade. Seus olhos agora se abriram para a sua prévia atitude para com Jesus. Não apenas para o seu ato de assassínio mas também para a culpa de sua incredulidade. Em última análise, a incredulidade
está sempre na raiz de toda a alienação de Deus e a lei deve revelar essa causa profunda. Eles sentiram um profundo pesar de terem ofendido a Deus e esse sentimento é o começo do verdadeiro arrependimento causado pela lei de Deus. Enquanto a pessoa apenas lamenta as más conseqüências que causaram na sua vida os seuspecados, ainda não foi atingida pela lei de Deus.
V. 38 – À sua pergunta: “Que faremos, irmãos?” Pedro responde: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo.” Metanoh,metanonsate, conotando um ato decisivo de uma vez para sempre. O sentido do termo em o Novo Testamento denota uma mudança interna do coração que consiste em contrição e fé em Jesus, quando é usado sem modificadores. É um ato de volver meia volta e marchar agora em sentido contrário na vida, voltar de uma vida de pecado para uma nova vida em Jesus, sob a conduta do Espírito Santo. O segundo passo que Pedro lhes indica é o batismo em nome de Jesus para remissão de seus pecados. O batismo em nome de Jesus é o mesmo que o batismo no Deus Triúno. Ele às vezes assim é chamado porque a obra de Jesus fez o dom do batismo possível, pois é feito para obter a remissão dos pecados.
É esse dom da remissão dos pecados que faz do batismo um sacramento. Isso também é confirmado em Tt. 3.5, onde lemos que Deus, nosso Salvador, nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo e por At 22.16, onde Ananias dá a ordem a Saulo recém convertido para levantar-se a fim de receber o batismo e lavar os seus pecados. E como terceiro passo Pedro indica o dom do Espírito Santo. Mas não devemos separar arrependimento, batismo e o Santo Espírito, adverte Lenski. Eles deveriam receber o dom do Espírito Santo não num período posterior, não como uma segunda bênção posterior a fim de produzir uma total santificação por uma repentina transformação ( The Acts of the Apostles, p. 109). E o Dr. J. Rottmann observa que é evidente que não devemos tomar estes “três passos” como tendo seqüência cronológica. Os três passos são, por assim dizer, três aspectos de um só e mesmo milagre, o milagre em que um homem perdido e condenado por causa de seus pecados se torna filho de Deus por graça (Atos dos Apóstolos…, p. 95). Também não devemos confundir este dom do Espírito Santo com os dons carismáticos, porque estes só são dados a alguns, enquanto o dom do Espírito Santo aqui referido é dado a todos os convertidos.
V. 39 – Era a intenção de Deus de conceder o dom do Espírito primeiro aos judeus e a seus filhos. Notemos que filhos aqui não é delimitado e assim também as crianças e bebês estão incluídos. Depois estariam incluídos também todos os que ainda estão longe, isto é, quantos o Senhor, nosso Deus chamar, isto é, também os gentios, todos os que seriam atingidos pela mensagem da salvação em Cristo. A extensão de sua igreja, portanto, seria de caráter universal.
V. 40 – Lucas naturalmente não transcreveu todas as palavras ditas naquele dia. Apenas nos transmitiu o essencial. Entre outras palavras de exortação deu-lhes a séria advertência de salvarem-se desta geração perversa. Essa geração inclui os descrentes de todos os tempos, encabeçados pelos membros do sinédrio judeu. A necessidade de se salvarem dela nos mostra que é uma geração destinada à perdição. É uma advertência válida ainda hoje para todos nós.
V. 41 – O resultado do sermão de Pedro foi uma surpresa que certamente nenhum dos discípulos teria esperado. Quase três mil pessoas foram batizadas. Isso nos mostra que o fator numérico também pode ser motivo de alegria e representa uma rica bênção do Senhor. Observa Paul E. Kretzmann que não é importante saber se foram batizados por imersão ou por aspersão, porque o modo de batizar não é descrito na Escritura. Mas há uma porção de argumentos de probabilidade contra o modo da imersão (Popular Commentary of the Bible, New Testament, Vol. I, p. 544). Já Lenski categoricamente descarta a imersão. Refere-se a achados arqueológicos de fontes batismais da Igreja Primitiva muito rasas e não apropriadas para a imersão (p. 113-114). A palavra que é traduzida por pessoas é yucai, - almas, que certamente também inclui as crianças. Em At 7.14, onde a família de Jacó é mencionada, o termo “almas” positivamente inclui também as crianças.
V. 42 – 46 – O verbo proskartereo, na ARA é traduzido por perseverar, também tem a conotação de segurar firme, aderir, ser fiel a, devotarse. Os primeiros cristãos agarraram-se firmes a quatro coisas, que o Dr. J. Rottmann chama os quatro pilares da vida espiritual da Igreja Primitiva (Atos dos Apóstolos, p. 100): 1) à doutrina dos apóstolos. Não tinham ainda um compêndio de doutrinas formuladas. Sua Bíblia era o Antigo Testamento que interpretavam à luz daquilo que Cristo lhes ensinara e que mais tarde foi condensado no Credo Apostólico; 2) perseveravam ou apegaram-se também firmes à comunhão. A palavra grega é koinonia que denota um compartilhar, um interessar-se pela vida e necessidades do próximo. Às vezes essa comunhão é reforçada pelo advérbio o moqumado,n - com uma mente ou propósito, de comum acordo (At 22.46). Era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum (At 4.32). Alguns vendiam até suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade (v. 45). Alguns até chegaram a denominar essa comunhão de comunismo cristão, mas que se distinguia do comunismo secular pela atitude voluntária e de amor com que o faziam e também pela não-obrigatoriedade de desfazer-se de todas as suas propriedades. O lema deles era: “O que é meu é teu”, em contraste com o comunismo secular cujo lema geralmente é : “O que é teu é meu.” 3) Apegaram-se também firmemente ao partir do pão.Com toda a certeza, este ato se refere à Santa Ceia que nas primeiras décadas da História da Igreja recebeu este nome. É verdade, que o partir do pão também se referia ao ágape, à refeição em conjunto que os primeiros cristãos tomavam, mas o ponto alto dessas refeições sempre foi a celebração da Santa Ceia, que mais tarde foi separada da refeição comum. 4) Apegaram-se também firmes às orações.
Notemos que está sendo usado o plural, que lembra o grande número e a diversidade das orações. Citemos apenas At 4.23-31 e At 12.12 onde vemos que poder e eficácia tinham suas orações.
V. 47 – O que chama a atenção neste versículo é o fato de que contavam com a simpatia de todo o povo. Como era diferente a sua piedade da piedade dos escribas e fariseus. Era algo jamais visto, uma piedade que irradiava amor, humildade e alegria. Sua confissão da boca foi secundada e confirmada pela evidência de suas boas obras, tornando-se assim a primeira congregação cristã um exemplo luminoso às congregações cristãs de todos os tempos. E o Senhor acrescentava-lhes, dia a dia, os que iam sendo salvos, o que nos mostra a verdade evidente que o Senhor é quem salva, mas o ambiente na congregação, em vez de representar um obstáculo à obra do Senhor, propiciava a sua obra salvífica.
PROPOSTA HOMILÉTICA
É um texto muito rico e extenso que dificilmente poderá ser esgotado num só sermão. Ele realmente trata de dois assuntos distintos. A primeira parte, até o v. 41, trata da conversão de quase três mil pessoas e a segunda parte, do v. 42 em diante, da vida espiritual deles. Ou o pregador aprofunda a primeira ou a segunda parte. No entanto, é possível um tema mais amplo que enquadre as duas partes, principalmente quando se quer mostrar que ainda hoje o poder do Pentecostes permanece e a mesma palavra de Deus continua a causar arrependimento e fé, sendo que, de acordo com as estatísticas, ainda hoje são convertidos diariamente cerca de 20 mil pessoas a Cristo e que o fato de tornar-se cristão e da conseqüente vida espiritual cristã continua o mesmo. Propomos
assim o seguinte tema com as duas partes principais:
O poder do Pentecostes não passou
1 – Ainda hoje todos os que são chamados pela Palavra de Deus se arrependem, crêem em Jesus, são batizados e recebem o poder do Espírito Santo.
2 – Ainda hoje os que crêem em Jesus se distinguem por uma vida espiritual, sustentada pelas quatro colunas da vida espiritual da cristandade neo-testamentária.
Paulo F. Flor
REVISTA IGREJA LUTERANA 2000/2 Pág 263