Hermenêuticas pós-modernas
Vilson Scholz
A pós-modernidade é definida em relação a modernidade. Logo, faz se necessário caracterizar ambas.
1. Características da modernidade
- Segundo Habermas, é nos escritos do filósofo alemão Hegel que aparece pela primeira vez uma clara consciência da modernidade. Hegel esclarece que o princípio do mundo moderno é a liberdade da subjetividade, nos três aspectos de individualismo, direito a crítica e autonomia do agir.
- O ponto-chave da ideologia da modernidade é a fé no progresso, tido como um valor eni si. O novo é melhor porque é novo. A idéia do progresso resultou, não se o pode negar, de uma secularização da concepção bíblica de história, mediante a eliminação de todos os aspectos transcendentes. Há nisso, porém, uma profunda ambigüidade, pois junto com esta dessacralização veio uma ressacralização e mitização do profano em termos de progresso. O progresso se tomou uma espécie de fatalidade, pela sua inevitabilidade.
2. Características da pós-modernidade
- O termo entrou no debate contemporâneo especialmente depois da obra de J. F. Lyotard, A condição pós-moderna, do começo da década de 80.
-Nomes representativos do pós-modemo: além de Lyotard e outros, Martin Heidegger, Hans Georg Gadamer, Michel Foucault, Jacques Derrida.
-A pós-modernidade não pode ser considerada uma etapa posterior a modernidade, ou seja, sua superação, pois desse modo ela permaneceria dentro da concepção de modernidade, a qual se concebe, como havia teorizado Hegel, como contínua superação. Logo, a dicotomia moderno pós-moderno não deve ser concebida como algo que se sobrepõe dentro do ritmo "antes/depois.
- A cultura do pós-moderno é a busca de uina saída da forte racionalidade moderna, que encontrou sua expressão ideológica no positivisino e na exaltação do primado do saber científico. Descobriu-se que também o saber mais rigoroso e "puro", como o das ciências exatas, é incapaz de se auto-fundamentar. Edmund Husserl e Martin Heidegger participaram da crítica a superioridade das linguagens científicas, mostrando o seu enraizamento na vida cotidiana. A própria especialização e fragmentação na pesquisa científica contribuiu para uma modificação na concepção do saber. Em resumo: uma das características da condição pós-moderna do saber é a sua fragmentação em linguagens especializadas.
- Numa outra conceituação, o pós-moderno é o desmascaramento daquele traço de modernidade que foi e continua sendo a fé leiga na universalidade da razão humana, o otimismo no progresso evolutivo da história humana. Em outras palavras, é a crítica da crítica, ou seja, as instâncias críticas que a modernidade fez valer contra a tradição agora se voltam contra a própria modernidade.
- Convém notar que o pós-moderno fora das artes é o mesmo que o moderno nas artes. Nas artes, o moderno (que é o pós-moderno) surgiu por volta do início do século XX (no Brasil chegou com a Semana de Arte Moderna, no começo da década de 20). A arte dita "moderna" é um claro exemplo de pós-modernidade. No mundo das narrativas, as novelas de televisão são de modo geral modernas, pois se trata de "narrativas realistas". Já o realismo fantástico de Gabriel Garcia Marquez é pós-moderno.
- Uma característica da sociedade pós-moderna é a deslocalização da experiência. Por isto se entende a possibilidade de conseguir simultaneamente informações de todas as partes do mundo. Ao contrário do que temiam alguns, o efeito dos meios de comunicação massivos não foi a homogeneização da sociedade, e sim o aparecimento de uma multiplicidade de Weltanschaungen ou visões de mundo.
- Outra característica da pós-modernidade é a eliminação da referência na linguagem. Imagens e símbolos tomaram o lugar da realidade. Em lugar da distinção entre imagem e realidade, característica da modernidade, a sociedade pós-moderna transformou as imagens em simulacros, que produzem efeitos sociais apenas porque existem, não porque remetem a uma realidade que os transcenda (veja-se os "fatos" criados pela mídia). A comunicação moderna é regida por regras próprias e produz efeitos sociais determinados, embora não possa ser definida como "real" no sentido tradicional (o que é é, se assim nos parece).
-No nível político, após-modernidade se manifesta na multiplicação de "centros" da história do inundo. Pode ser vista na crítica ao eurocentrismo; no afrouxamento de vínculos pós-coloniais entre nações européias e países do terceiro e quarto mundos; na diminuição de competição entre as superpotências pela hegemonia mundial.
3. O moderno na hermenêutica bíblica
Em termos de hermenêutica bíblica, o moderno se identifica acima de tudo com o que se convencionou chamar de "o método histórico-crítico" (MHC). Filho do iluminismo, que atingiu a maioridade no século XIX, o MHC pressupõe de modo geral um esquema evolutivo (progresso no âmbito da teologia bíblica - do politeísmo para o monoteísmo, por exemplo - e ênfase na gênese dos livros). Caracteriza-se pela aplicação da razão secularizada aos textos (daí o nome "crítico"), e é fomentado pela constante busca do novo (uma teoria supera ou quer superar a outra). A explicação clássica dos princípios que subjazem ao MHC foi dada pelo teólogo alemão Emst Troeltsch, que falou nos princípios da Crítica, da Analogia e da Correlação. Na prática, o objetivo do método histórico-crítico é, segundo um manual de Kaiser e Kuemmel, "descobrir o significado objetivo do texto". Parte-se do pressuposto que o texto tem um significado objetivo que pode ser desenterrado pela aplicação das ferramentas a disposição do teólogo/crítico. O irônico é que o MHC não leva o texto a sério, pois está mais preocupado com a história do texto do que com o texto propriamente. Em geral o texto transforma-se em janela que se abre para um referente extra-textual.
Posto em outras palavras, o método histórico (de críticos e conservadores) procura descobrir o sentido histórico, dá prioridade à intenção do autor, e quer ser uni enfoque objetivo, científico, livre de preconceitos.
4. Os ventos da pós-modernidade no campo da hermenêutica bíblica
Os ventos da pós-modernidade atingiram também o campo da hermenêutica bíblica. Como se pode perceber isto? Pelo surgimento de enfoques que questionam o Estruturalismo - Em termos cronológicos, o primeiro enfoque a questionar a hegemonia do método histórico-crítico foi o Estruturalismo. O paradigma estruturalista foi visto por muitos como o sucedâneo natural do método histórico-crítico, pois oferecia um enfoque sincrônico (ao invés de diacrônico), textual (em lugar do extra-textual), e relaciona1 (em lugar do genético). No enfoque estruturalista o texto é visto como que fechado em si mesmo, afastado tanto do autor quanto da realidade extralingüística. O surgimento do enfoque estruturalista no campo da exegese bíblica coincidiu temporalmente com o florescimento do Novo Criticismo no campo da teoria literária (primeira metade do século XX). Também o Novo Criticismo enfatizava a independência do texto em relação ao autor. Falava-se e ainda fala-se da "morte do autor" (entre parênteses é preciso observar, em tomjocoso, que aqueles que escrevem livros sobre a "morte do autor" de modo nenhum esperam que o leitor acredite que eles próprios já morreram!).
Crítica da Narrativa - Influenciado talvez pelo Novo Criticismo e pelo Estruturalismo, mas com certeza sob o bafejo da teoria literária secular, surgiu em tempos recentes o que se convencionou chamar de "Crítica da Narrativa", mas que eu prefiro designar com um termo um tanto quanto mais neutro: "Análise da narrativa". Esta análise é aplicada a trechos narrativos, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Preocupa-se com questões como enredo, personagens, narrador, ponto de vista do narrador, leitor implícito (chamado por Umberto Eco de "leitor modelo"), etc. Na medida em que considera o texto tal qual o temos (enfoque sincrônico), a análise da narrativa é tipicamente pós-moderna.
Crítica da Resposta do Leitor - Tanto pós-moderna quanto pós estruturalista é a assim-chamada "crítica da resposta do leitor" (também conhecida como "teoria da recepção"). Levanta a velha pergunta: a árvore que cai na floresta produz barulho mesmo quando não existe ninguém lá para ouvir? Se o MHC privilegiava o autor e pugnava pela suposta objetividade, aqui o ator principal é o leitor e campeia a subjetividade. Seria desnecessário dizer que sancionou-se o relativismo, pois, em princípio, nenhuma leitura é superior à outra.
Antes que se comece a querer execrar a crítica da resposta do leitor, é bom lembrar os aspectos positivos que decorrem desse enfoque. Mais do que nunca fica claro que nenhum intérprete é tabula rasa. A rigor, ele já tem um texto ou textos em sua memória (em linguagem de informática se poderia dizer que o "ambiente" ou o "programa" preexiste ao trabalho com diferentes textos ou arquivos). Esse ambiente ou texto determina como os novos textos serão lidos. Na prática, só se ouve o que a mente está preparada para ouvir.
Como disse alguém: "Se não sabemos o que a Bíblia significa hoje, é de duvidar
se saberemos o que ela significou no passado" (Moisés Silva).
Os teóricos mais radicais da crítica da resposta do leitor chegam a afirmar que não existe um texto objetivo. Na medida em que cada leitor traz seu arcabouço interpretativo para o texto, acaba gerando um novo significado para o texto e, por conseguinte, cria um novo texto.
MÉT. HISTORICO ----- CRÍT. NARRATIVA ----- CRÍT. RESPOSTA-LEITOR
PRIVILEGIA
AUTOR ----- TEXTO ----- LEITOR
ENCARA O TEXTO COMO
JANELA ----- VITRAL ----- ESPELHO
5. Palavra conclusiva
É preciso lembrar que o pós-moderno não é uma etapa que sucede o moderno, e sim o questionamento do moderno, o voltar as armas da modernidade contra a própria modernidade. Isto significa que não se pode esperar dos enfoques pós-modernistas que necessariamente desbanquem o enfoque moderno do MHC. Na prática se percebe que, num sentido amplo, tudo continua "igual ao que era antes, no quartel de Abrantes". Em outras palavras, o método histórico (critico) está vivo e vai bem, obrigado.
Os resultados advindos dos novos enfoques são, em termos genéricos, semelhantes aos do método que caracteriza a modernidade. Isto porque a pós-modernidade pressupõe e constrói sobre a modernidade. (Isto também responde a pergunta quanto a relação entre o pós-moderno e o prémoderno. O pós-moderno, embora tenha muito em comum com o pré-moderno, não é uma simples volta ao passado. O pós-moderno é a (re)avaliação do moderno que se torna possível exatamente pelo instrumental da modernidade).
A pós-modernidade abre espaço para diferentes linhas ou linguagens hermenêuticas. Surgem as hermenêuticas negra, feminista, latino-americana, sul-africana, estruturalista, etc. Resta saber se isto abre espaço também para uma hermenêutica confessional. Tudo leva a crer que, no espírito da pós-modernidade, a hermenêutica confessional terá um lugar ao sol, mesmo que seja em meio a muitos outros enfoques.
Vilson Scholz
Dr. Vilson Scholz é professor de teologia exegética do Novo Testamento
no Seminário Concórdia de São Leopoldo, RS, e integrante do Conselho
Editorial de Igreja Luterana. No momento Dr. Scholz exerce atividade
docente no Concordia Seminary de St. Louis, USA. Este artigo é
o roteiro da conferência proferida pelo Dr. Scholz no encontro das
comunidades acadêmicas do Seminário Concórdia de São Leopoldo,
RS, e do Seminário Concórdia de Buenos Aires, realizado em 27-29 de
outubro de 1995, em Buenos Aires.