SEXTO DOMINGO APÓS EPIFANIA
11 de fevereiro de 1996
Mateus 5.20-37
1. Contexto
Esta é a última das três perícopes consecutivas extraídas do capítulo 5 do evangelho segundo São Mateus. É oportuno lembrar que o Sermão do Monte está sendo pregado aos discípulos de Jesus - um núcleo da congregação cristã, seleto e bem informado.
2. Texto
Na verdade, o centro desta perícope é o v. 20. O tema do sermão está na polarização entre a "vossa justiça" (v. 20) e "a justiça dos escribas e fariseus" (w. 21 ss.). Antes de tudo, é preciso sublinhar que o contraste que Jesus estabelece não é entre o Antigo Testamento e o Seu ensinamento. Jesus acabara de atestar a validade do Antigo Testamento (v.17). Ao contrário, a questão é entre a interpretação da tradição rabínica de um lado e a correta interpretação do Antigo Testamento por Jesus de outro lado. Toda vez que Jesus emprega a expressão "está escrito" (4.4,7,10) Ele refere-se ao Antigo Testamento; quando Ele utiliza a expressão "ouvistes o que foi dito" (vv. 21,27,31,33,38,43), Ele refere-se às tradições judaicas cuja interpretação adulterou o sentido original da Palavra de Deus no Antigo Testamento.
A lei exige perfeição; o evangelho presenteia a perfeição, ou seja, o evangelho credita a nós a justiça de Cristo. Fariseus e escribas entendem que podem, por eles mesmos, cumprir a lei de Deus e nesta tentativa criam leis subsidiárias que abrandam a ira divina e possibilitam a sua propiciação. Jesus, numa abordagem exegética, "resgata" o que diz o Antigo Testamento e demonstra que a lei de Deus, sintetizada no Decálogo, devido a suas exigências, impede o seu cumprimento por parte do ser humano.
No v. 20 a expressão "vossa justiça" (hymôn hê dikaiosine) é fundamental. O genitivo não é subjetivo, mas objetivo. A justiça não é própria dos discípulos, mas é uma justiça que lhes foi outorgada. E a iustitia aliena, que vem de Cristo que cumpriu - não anulou - toda a lei (v. 17). A justiça de Cristo, esta sim, excede a exigência da lei de Deus. E tal justiça, pela fé, Cristo dá aos seus discípulos, à sua igreja, a nós cristãos.
Os vv. 21-37 são, na realidade, ilustrações que Jesus emprega para demonstrar o caminho tortuoso pelo qual escribas e fariseus enveredam na tentativa de cumprir, por suas próprias forças, obras (opinio legis), a lei. A religião dos fariseus e escribas era uma religião (e uma justiça) externa, formal, longe de fideísta e cordial. Jesus, embora não sendo fariseu, conhecia perfeitamente esta religião-tradição (pré)talmúdica (e este fato enfurecia fariseus e escribas). Na parábola do fariseu e do publicano no templo, Jesus caracteriza bem o primeiro. O fariseu considerava-se superior a todos os homens, especialmente àquele publicano - e dava graças a Deus por isso. Gloriava-se: não era roubador, nem injusto ou adúltero (moichós) e nem como aquele publicano. Tais afirmações eram verdadeiras. Aqueles homens viviam esse tipo de justiça exterior. Não só. O Antigo Testamento, por exemplo, prescrevia apenas um jejum ao ano (Dia da Expiação); mas os fariseus, por sua própria determinação, jejuavam duas vezes por semana. Davam o dízimo de tudo quanto possuíam, inclusive de suas ervas: hortelã, endro, cominho. Tudo isto era verdadeiro sobre os fariseus. Eles não apenas diziam, eles praticavam.
"Não matarás"(ú foneuseis) é citado da LXX, de Êx 20.13. Há várias palavras em hebraico e grego para "matar". As empregadas aqui especifi-camente significam "assassinar". Fariseus e escribas julgam apenas o ato; Jesus mostra que o pecado é cometido já no coração - pelo simples pen-samento e palavras - antes mesmo de o ato ser consumado. Tal intenção pode levar não apenas a julgamento do sinédrio ou à morte física, mas até mesmo ao inferno (geena). O mesmo ocorre com o adultério (27-30) e o divórcio (31-32). Deus é testemunha da aliança matrimonial e ele "odeia o repúdio (divórcio)" tanto quanto a violência sangrenta (Ml 2.14-16). Para fugir aos engodos do adultério (fornicação) e divórcio, o discípulo de Cristo mantém sua mão e seu olho sob disciplina de ferro. Jesus não está aqui sugerindo automutilação - mesmo porque um cego também pode ter desejos lascivos. Na linguagem bíblica as diversas partes do corpo são instrumentos da vontade humana e representam o homem todo (Pv 4.27). "Arrancar o olho" ou "cortar a mão" significam, pois, uma determinação repressiva aos desejos pecami-nosos, por mais dolorido que seja o esforço.
O judaísmo em geral interpretava a prescrição do Antigo Testamento quanto ao divórcio de forma bastante liberal. Um homem podia divorciar-se de sua mulher "por qualquer motivo" (19.3). Jesus assume a causa da mulher cuja honra ficava manchada portal procedimento. Contudo ela, assim como seu marido, não podia violar impunemente o matrimónio.
Nos vv. 33-37 Jesus fala dos juramentos (ou votos) a que os fariseus se submetiam mas que, no Antigo Testamento, não eram obrigatórios (Lv 19.12; Nm 30.2; Dt 23.21). O voto no Antigo Testamento era feito, obviamente, na presença do SENHOR. Os judeus no período do Novo Testamento tentaram esvaziar a seriedade e dignidade do voto estabelecendo distinções artificiais para a sua validade ou não. Jesus reafirma que visto ser dito na presença de Deus, o Sim ou o Não do Seu discípulo tem conotação e peso votivos.
Em cada exemplo Jesus mostra o vigor da lei cujo cumprimento precisa dar-se na esfera do pensamento, da palavra, bem antes da ação. Interpretada desta forma, quem pode cumprir as exigências da lei? Nenhuma justiça ou ação humanas. Por essa razão, apenas a "vossa justiça", que vem de fora, da parte de Deus, e que foi graciosamente outorgada por Ele através de Cristo, pode cumprir tais exigências e nos fará entrar no Reino dos Céus. Tornados perfeitos, santos e justos pelo sangue de Cristo não precisamos mais temer a exigência da lei de Deus. Como filhos de Deus desejamos, natural e alegremente, viver segundo a Sua vontade.
Sugestão de tema:
A Nossa Justiça vem de Deus.
Acir Raymann
Revista Igreja Luterana, Ano 1995, Vol 2. Pag 202