Gustaf Wingren. A Vocação segundo Lutero.
Canoas, Editora da ULBRA, 2006.
I – Terra e Céu [17-92]
1. O Reino Terreno
Vocatio tem sentido múltiplo. Pode significar: a) o próprio anúncio do evangelho mediante o qual os seres humanos são chamados para ser filhos de Deus; b. pode ser usada como significando o trabalho que toda pessoa faz: agricultor, artesão, etc; c. o chamado ao ofício da pregação. [9]
1 Co 7.20 [17-24] é sedes doctrinae para Lutero ao interpretar a palavra “klesis” como o status ou a ocupação exterior. [9]
Lutero usa Beruf na maioria das vezes como posição ou ocupação externa. Este uso é novo com Lutero. [9] Todos os seres humanos têm posição (Stand), mas só o cristão tem Beruf. Este “chamado” não é particular, mas sempre se estende ao próximo. “Se eu me vejo como ocupando algumas dessas categorias de vida que sirva para o bem-estar dos outros, não devo alimentar a mínima dúvida no que respeita ao agrado de Deus, mas crer no evangelho. O ponto significativo não é se entro em tal posição como alguém pecador e indigno. A questão é se o “estado” em si é pecaminoso, ou não. O pecado da pessoa é julgado e perdoado no céu, onde não há nenhum questionamento quanto à vo-cação, estado ou ofício mas tão somente ao coração. Na terra, por outro lado, é necessá-rio dar atenção ao ofício e estado, não ao pecado do coração”. [20]
Para Lutero, as vocações se estendem desde as ordens biológicas pessoais [ser pai, mãe, filho, filha] até as ordens impessoais [ser patrão, empregado, governante, professor, aluno]. “Em tudo o que envolve ação, em tudo o que diz respeito ao mundo ou ao meu relacionamento com o próximo, em tudo isso, portanto, Lutero sustenta, não há nada que caia numa esfera puramente privada ficando fora do estado, ofício ou vocação. É tão-só perante Deus, isso é, no céu, que o indivíduo está só. No reino terreno, o homem está sempre in relatione, sempre vinculado ao outro. Disso é claro que todo cristão ocu-pa uma grande variedade de ofícios ou estados ao mesmo tempo e não apenas um: um mesmo homem, por exemplo, é pai de seus filhos, marido de sua mulher, senhor de seus servos e conselheiro da câmara municipal”. [21]
As vocações não produzem qualquer alteração no coração do homem. O coração só é mudado diante de Deus, no céu, quando o ser humano está individualmente perante Deus; esta mudança ocorre através do evangelho de Cristo. “Ali o ser humano é uma pessoa sozinha”. “Na terra e em relação ao próximo, ele despenha um “ofício”; aí, o ponto principal é ser mantida a criação, ou seja, que os filhos recebam alimentação, ves-tes, cuidados. A obra do amor, Deus a efetua na terra através das “ordens” – a ordem do casamento, do professor e dos alunos, do governo, etc. Até as pessoas que não tomaram o evangelho em seus corações servem à missão de Deus mesmo sendo ignorantes quanto a isso, pela própria razão de estarem desempenhando as funções exteriores dos seus respectivos estados”. [23]
“A idéia de Lutero quanto ao ofício constitui um elemento importante no seu farto conceito de criação, que é peculiarmente concreto e vital. Os pássaros a cantar, embora não saibam o que irão comer, são para nós um exemplo. Deus espalha seus dons, sementes, ervas e criaturas comestíveis. Nosso cuidado único deveria ser, então, o que devemos fazer com todo esse bem que Deus produziu de modo que ele possa beneficiar nosso próximo. Em lugar disso, porém, nos preocupamos em como pegar o máximo possível para nós mesmos; e assim nos colocamos de modo contrário à generosa corrente da cri-ação.” [24]
Há uma direta conexão entre a obra de Deus na criação e a sua obra nesses ofícios... Deus cria os bebês no corpo da mãe – sendo o homem apenas um instrumento na mão de Deus – e então ele os sustenta com seus dons, entregues aos filhos mediante o labor de pai e mãe no seu ofício paternal. [25]
“Deus mesmo vai ordenhar as vacas através daquele cuja vocação é essa. Quem se engaja na humildade do seu trabalho realiza a obra de Deus, seja ele um jovem ou um rei. Dar a atenção devida ao ofício não é egoísmo. Devoção ao ofício é devoção ao amor porque é pelo próprio ordenamento de Deus que seja sempre a obra do ofício dedicada ao bem-estar do próximo. O cuidado pelo ofício de alguém é, no seu próprio quadro de referência na terra, participação no próprio cuidado de Deus pelos seres humanos.” [26]
Portanto, a vocação pertence à esfera terrena e não celestial. “Na sua vocação, o homem não está se elevando para Deus, mas, ao contrário, abaixando-se em direção ao mundo. Quando alguém faz isso, a obra criativa de Deus é levada adiante. A obra do amor de Deus toma forma sobre a terra, constituindo-se nos testemunhos externos do seu amor. Se notarmos com atenção quanto bem Deus nos outorga tanto pela sua criação direta quanto pelas suas ordens criadas, conheceremos a verdade de que ele nos perdoa os pe-cados.” [26]
2. O Reino do Céu
“A obra de Cristo é a vitória sobre a lei em todas as suas possibilidades: as boas obras não levam à salvação nem de um jeito nem de outro. Só a consciência, através da fé na obra de Cristo, está livre dessa falsa fé. Cristo não livra nem a mão do seu trabalho nem o corpo do seu ofício. A mão, o corpo e a sua vocação pertencem à terra. Nisso não há redenção, mas esse não é o propósito. O objetivo é que o próximo seja servido. A cons-ciência tem sua base na fé em Deus e não faz nada que possa contribuir para a salvação; as mãos, porém, servem na vocação, que é a obra de Deus inclinando-se para baixo, para o bem-estar dos homens.” [27]
No Reino do Céu, o homem está só diante de Deus. “Face a Deus não só o estado passa, mas também toda a obra é vista como pecaminosa e indigna. Por isso, todas essas quali-dades que fazem diferença entre os homens na terra são apagadas. O que faz a diferen-ça na terra é a estrutura dos vários ofícios com as suas respectivas obras. Mas no céu tudo é igual. Todos simplesmente recebem e recebem, de forma igual, a graça de Deus. Assim, a igualdade no reino celestial depende só do fato de ser ele o reino de Cristo, governado por um divino dom, o evangelho e não a lei.” [30]
“... a vocação permanece mais pura e é realmente servida quando, mediante o evange-lho, se torna claro que ela não tem nada a ver com a salvação. Deus recebe o que é dele, a fé. O próximo recebe o que é seu, as obras. Quebrar a lealdade estabelecida por Deus no coração do homem é um dos maiores desejos do diabo.” [30]
“Assim todas as coisas devem ser notadas: que tu coloque o evangelho no céu e a lei na terra; que tu chames a justiça do evangelho celestial e divina, e a justiça da lei, terrena e humana”. [31]
No reino celeste, só a fé tem permissão de entrar. “Todo o resto é colocado em nível terreno, no qual o seu próximo precisa dessas coisas. Num reino em que o homem não é o agente, mas aquele que apenas recebe, sua vontade não é livre; está sujeita. Se a liber-dade da vontade sobe ao céu, é isso uma infração da ordem divina, uma obra do diabo, na qual as obras são arremessadas para cima, face a Deus, não direcionadas para o pró-ximo de uma forma livre, direta e simples. O livre arbítrio existe em relação a Deus apenas como perversidade.” [32]
A dimensão da vocação é terrena e, portanto, transitória; já a fé assume uma dimensão escatológica na medida em que nos remete à nossa ressurreição. “A ressurreição de Cristo não se “completa” antes que venha a nossa ressurreição. Os crentes são o corpo de Cristo; o corpo de Cristo não se levanta enquanto aqueles que forem dele não ressus-citam.” [37]
3. Os Governos Espiritual e Terreno
O governo terreno Lutero divide em duas hierarquias: política e doméstica. Uma terceira hierarquia, a igreja, constitui sozinha o governo espiritual. [40]
O usus civilis da lei é compreendido pela autoridade do pai e do governo. A lei e a espada se pertencem mutuamente. A lei e a vocação pertencem uma à outra. A vocação dentro do reino da lei. [41]
Enquanto que a lei está realmente incorporada nas ordenanças externas, que exigem labor e realizações, o evangelho está incorporado na igreja, que profere o perdão dos pecados. [42]
Há alguma relação entre os dois reinos?
Em um plano vertical, Lutero responde que ambos são expressões do amor de Deus. “Na sua vocação, o homem faz obras que possibilitam o bem-estar dos outros; pois assim Deus realiza todos os ofícios. Através da sua obra nos ofícios do homem, prossegue a obra criadora de Deus e essa obra criadora é o amor, uma profusão de bens e dons.” As vocações terrenas ajudam a manter o homem na terra e as vocações espirituais trazem o perdão dos pecados. O homem recebe os dons do amor de Deus tanto mediante o príncipe quanto mediante o pregador. [43]
Outra dimensão é horizontal. Esta dimensão aparece quando o homem olha para a sua posição dentro de sua vocação, não perguntando pelo que recebe, mas pelo que tem para fazer, pelo que Deus reclama dele. A vocação é a lei e o mandamento, a síntese das ordenanças de Deus para a pessoa que ocupa o lugar específico na terra que seu ofício lhe determina. “A igreja aponta sempre, originalmente pelo menos, para a eternidade, para o céu. A vocação aponta para o dia presente, para este mundo. Descobrimos aqui uma firme e definida conexão do ponto de vista do indivíduo”. [43]
A partir da dádiva do Batismo, percebemos que em nossa vocação a cruz se faz presente. No Batismo, aprendemos diariamente que precisar sofrer e morrer a fim de “afogar o velho homem” e ressurgir um novo homem para o serviço ao próximo. “Cristo morreu na cruz, e aquele que é batizado para a morte com Cristo deve ser posto para morrer mediante a cruz. Para entendermos o que está implícito na cruz da vocação, devemos apenas nos lembrar de que a vocação é ordenada por Deus para beneficiar, não aquele que cumpre a vocação, mas ao próximo que, estando ao lado, carrega a sua própria cruz para o benefício dos outros. Sob essa cruz, incluem-se mesmo até as mais triviais dificuldades como: no casamento, o cuidado com os bebês, que interfere no sono e lazer; no governo, pessoas turbulentas e promotoras de revolta; no ministério, a plena resistência à reforma; no trabalho pesado, a miséria, a sujeira e o desprezo do orgulhoso. Tem isso tudo o consolo da nobre e santa cruz de Cristo; mas até ela mesma também se achava numa profunda humilhação quando foi erigida”. [44]
Por trás de toda essa visão de Lutero está a imagem da obra da vocação como a do amor divino descendo para a terra, o mesmo tipo de amor que estavam em Cristo. Nenhuma pessoa que deixe a obra de sua vocação prosseguir sem se lamentar escapará de problemas, ódios e perseguição. Diz Lutero: “Por isso, não te aborreças onde achas o sofrimento. Isso não é necessário. Vive simplesmente como um cristão sincero – pregador, pastor, cidadão, agricultor, nobre, senhor – e cumpre o teu ofício com sinceridade e lealdade. Que o diabo se preocupe onde possa achar um pedaço de pai com que possa fazer uma cruz para ti; e que o mundo, onde possa achar uma vara para fazer um açoite para o teu couro”. [45]
“A crucificação de Cristo foi seguida pela sua ressurreição ao terceiro dia. Uma pessoa é batizada não só para morrer com Cristo como ainda para ressuscitar com Cristo; não só para a crucificação da velha natureza na vocação como ainda para a ressurreição da nova – através da fé no evangelho, pelo qual é dado o Espírito que outorga a vida. [...] O cristão é crucificado mediante a lei na sua vocação, sob o governo secular; e ele ressuscita mediante o evangelho, na igreja, sob o governo espiritual. Ambos os processos tomar lugar na terra, e ambos são dirigidos para o céu.” [45]
Quando Lutero critica os monges, ele o faz porque os monges querem agradar a Deus assumindo as obras em lugar da fé. Por isso, nada melhor para os monges se ocuparem com sua vocação para o próximo. Como fé e obra não podem se divorciar e é nesta conexão que se aprende a “esvaziar-se” que sem fé não se pode seguir nas obras e aí surge a cruz. Por isso diz Lutero: procurar tal estado de vida é tentar escapar das tentações comuns da humanidade, é evitar olhar para o céu esperando de Deus pelo pão de cada dia e confiando que Deus proveja o sustento. Tão logo uma pessoa deixa o mosteiro e se casa, tais preocupações aparecem, a saber, as ocasiões para a fé, para a confiança, para a prática da fé. No claustro, a fé não tem nem espaço, nem lugar, nem tempo, nem preocupação, nem trabalho. Mas, o casamento é de tal caráter que ele nos ensina e obriga a olhar para a mão e a graça de Deus e simplesmente nos dirige para a fé. [47]
Com isso Lutero harmoniza tanto o amor com a terra quanto a fé que vem do céu. “Toda a obra de Deus é posta em movimento mediante a vocação: ele modifica o mundo e es-palha a sua misericórdia sobre a humanidade oprimida”. [48]
Na vocação, as obras são constrangidas a moverem-se em direção ao próximo, em direção à terra; e a fé somente, a confiança, a oração, todas sem obras, sobem em direitura ao céu. Em tudo isso, a pessoa é incorporada a Cristo; a cruz na vocação é a sua cruz; e a fé, que rompe dessa cruz na vocação, é a ressurreição. [48]
Mas como nas ordens, além de Deus, Satanás também está ativo, Lutero observa que pode acontecer que o homem se desvie do próximo, sentindo-se tão confortável nesta posição que nem mais perceba a necessidade da fé em Deus. Observações como essa levaram Lutero a fazer propostas concretas para reformas da vida em sociedade, na qual, por exemplo, certas formas de comércio são condenadas. [49]
Quando Lutero critica a usura, compara aquele que empresta a juros elevados ao monge: se sente seguro sem o menor trabalho [sem fé] e sem o cuidado para o próximo [sem amor]. “Aquele que recebe o empréstimo e consente com a exigência de pagar juros tem de trabalhar para tornar produto o principal; nessa labuta, porém, está sempre debaixo do poder de Deus, em meio a milhares de perigos, doença, morte, incêndio, inundação, trovão, tempestade, animais selvagens e homens ruins. O emprestador, com certeza, tomaria consciência da sua insegurança se ele mesmo, pelo seu próprio trabalho, tentas-se fazer o seu dinheiro produtivo ao invés de emprestá-lo. Mas ele evita a insegurança reclamando um juro fixo para um determinado prazo (com a ameaça de que, se não for assim, privará o que tomou o empréstimo da sua propriedade posta como caução). Em tal situação, o emprestador não ora a Deus com sinceridade para Deus lhe dar o pão cotidiano; essa necessidade, ele próprio já a resolveu antecipadamente. Qualquer pessoa que não saiba o que é insegurança, não sabe também o que é fé. A proposta feita por Lutero é que o emprestador receba juros, não em cima do principal do empréstimo, mas sobre o lucro obtido ao longo do ano pelo que tomou o empréstimo. Caso uma catástrofe sobreviver sobre o que tomou o empréstimo, o emprestados não receberá nada. Mas, se as coisas correrem bem para o que tomou o empréstimo, elas correrão bem igualmente para o emprestador. Ambos estão no mesmo barco. A vantagem dessa um tanto quanto utópica proposta é que a pessoa rica partilha da insegurança e, com isso, é direcionada para a fé entrando numa verdadeira comunhão com o pobre e, dessa forma, é dirigida para o amor. Assim, ela se aproxima de uma correta relação tanto com Deus quanto para com o próximo. É esse o mesmo ponto de vista que Lutero apresenta quando aconselha o casamento como algo superior à vida no claustro. No casamento, ambos, a fé e o amor, são promovidos ao passo que no mosteiro são abafados”. [51]
“Quando se reforma corretamente a ordem secular, sua reforma deve estar em harmonia com o impulso que Deus nela estabeleceu. Essa é manifestadamente, não uma característica estática das ordens seculares; ela sempre deve ser guiada através da lei. Entra uma qualidade enérgica e viva no reino das vocações que torna impossível o conservantismo. Alguém poderia perguntar por que tal reformulação das ordens se tornaria necessária. A resposta fica evidente à vista das medidas empregadas pelo avaro homem de negócios, cujas atitudes são contrárias à fé e o amor. Lutero percebe uma clara expressão do “poder das trevas” ou do diabo: o usurário está nas mãos do diabo. Nas ordens seculares, Deus e o diabo estão ambos ativamente em ação. Tais ordens, por isso, nunca ficam em paz. Estão elas sempre sendo corrompidas porque o homem se desvia do querer de Deus. Mas elas são novamente melhoradas e reformadas por Deus, entre outras coisas, na fé e no amor cristão”. [52]
4. Fé e o Amor
Ver “Sermão sobre a Cruz e o Sofrimento” in LW 51: 195-208.
“Sendo o homem crucificado pela lei, através da cruz da sua vocação, ele é vivificado e ressuscita mediante a fé no evangelho. Enquanto as obras se voltam para o próximo e para o mundo, a fé se eleva para Deus, para o céu. Enquanto as obras têm a sua vida na visibilidade, a fé se estende para a vida após a morte, para fora da era presente”. [52]
Mas como relacionar a fé com as obras? Por que a fé irá se sujeitar à lei na vocação? Para Lutero, não como prova-la. “Estar a fé unida com o amor é, na verdade, um milagre da mesma espécie daquele da humanação de Deus. Vive Deus em bênção no céu. Por que, então, ele desceu à terra em Cristo, que amou os homens e sofreu a morte na cruz? Deus é assim. A fé também vive em bênção no céu. Por que essa fé não fica lá, mas se torna amor que se preocupa com o próximo? Fé é Deus, e Deus é como ela”. [56]
O amor que irrompe da fé permanece para Lutero, numa certa medida, algo inexplicável e incompreensível porque não podermos dar nenhuma explicação ou motivo para o amor de Deus. [57]
Quando uma pessoa dedica alegremente os seus esforços para as suas tarefas preenchendo as necessidades do seu próximo e atendendo a sua vocação, então o amor de Deus e de Cristo se torna ativo, então o Espírito se faz presente. Descobrir o amor é, assim, a mesma coisa que descobrir serem o próximo e a vocação uma circunstância na qual alguém pode viver com alegria. Nosso interesse não está em nosso amor; é para o nosso próximo e vocação para os quais o nosso interesse está voltado. [58]
“Só como velho homem, ainda sob a lei, pergunta o cristão pela justiça das suas obras. A fé e o novo homem conhecem apenas uma única justiça: o perdão dos pecados. É no próximo que o novo homem encontra a sua alegria. O que se dá entre ele e seu próximo não são obras, cuja justiça seria do seu interesse; ele não pergunta pela dignidade daquilo que faz. Vê tão-somente o próximo, que prova alegria nele”. [60]
“É o próximo que se acha no centro da ética de Lutero, não o reino de Deus nem a lei de Deus nem o “caráter”. A vocação e a lei beneficiam o próximo como faz também o amor que nasce da fé. O mesmo Deus age através da vocação e da lei, sem o Espírito, e através do amor, que nasce da fé, com o seu Espírito”. [60]
“O amor que nasce da fé e do Espírito pratica uma verdadeira ruptura dos limites entre os dois reinos e derruba o muro de separação entre o céu e a terra, como fez Deus na encarnação de Cristo. [...] A lei, incorporada em muitos ofícios, tinha a função, nas mãos de Deus, de obrigar o homem a servir os outros quisesse, ou não faze-lo. Mas agora, em fé e no evangelho, o coração foi feito novo. Nosso próximo com sua necessidade não constrange a nós contra a nossa vontade; pelo contrário, ele nos enche de alegria, pois servi-lo é nosso prazer. Aquilo a que nos compele o governo terreno, fazemos agora livremente. Assim o amor opera sobre a terra no reino da lei, embora de nenhuma lei esteja cônscio. O céu está na terra. Os limites entre o céu e a terra foram desfeitos por uma ponte nessa descida. A fé transfere para o amor a liberdade da lei que ela tinha no céu de modo que o amor na terra traz consigo a liberdade em relação à lei, que é a liberdade própria da fé”. [61]
“Deus no amor, o mesmo Deus que estabeleceu as ordens sociais, é ativo com o seu Espírito. Ora ele muda essas ordens, ora altera o mundo, ora refaz a vocação. Deus desce do céu e transforma a terra, agora aqui, depois ali, conforme a fé e o amor se manifestam mediante a pregação do evangelho feita pela igreja, através do reino espiritual. A tarefa da igreja inclui uma contínua renovação das ordens seculares, um incessante alerta em todas as vocações, do trabalho principal ao menor”. [62]
Lutero é muito modesto em oferecer direções para a reforma do mundo. Ele não dá nenhum programa. Há para tanto uma razão fundamental, consistente com vários aspectos da sua fé; está convencido de que o diabo ainda se faz presente quando a mudança para melhor é feita; e a sua noção de pecados proclama que não há ordens pecaminosas à parte das pessoas pecadores”. [62]
“Particularmente, são necessários apenas a fé e o amor. Tudo o mais está na liberdade para fazer, ou deixares sem fazer. Deves, por isso, fazer tudo, e, num outro, nada fazer e, em assim agindo, tornas-te igual para com todos” [64]
“Onde há amor não há rigidez legal”. [64]
5. Cruz e Desespero
Além do amor que nasce da fé, o pecado ainda permanece porque o homem continua pecador. Ansiedade em relação à deficiente justiça de nossas próprias obras, obediência ao mandamento de Deus contra o desejo de nosso coração, amizade forçada em relação ao próximo que nos desagrada e fidelidade na obra que nos desgosta são mostras da lei e conseqüentemente do velho homem em nós. [65]
“A fé, ou consciência, está no céu; e, como não é a lei, mas o evangelho que impera no céu, aí não está o pecado. Há pecado onde há lei. Na terra, a lei e o governo secular co-mandam; e há também o corpo do homem, que deve ser crucificado com todas as suas concupiscências pecaminosas”. [65]
“A cura não está completa, diz Lutero repetidas vezes, antes da nossa morte e ressurreição. ‘Todas as coisas estão perdoadas mediante a graça, mas nem todas as coisas são corrigidas por esse dom’. A fé pertence a esse dom”. [66]
“Mesmo quando o homem na terra contende com um pecado externo específico, difícil de dominar, esse pecado é perdoado no céu, perante Deus. A batalha permanece fora da consciência e deixa a fé intocada porque ela descansa numa segura promessa de Deus. O pecado é resistido de tal forma que o homem não é lançado no desespero; o êxito é certo mediante a palavra de Deus sobre a eterna vida após a morte. Se o homem não pode acreditar seja perdoado o pecado contra o qual batalha, a lei subiu até a sua consciência, e a fé abra caminho para as obras diante de Deus. Nesse caso, a vida eterna não depende da promessa de Deus, mas do progresso do homem na luta contra o pecado. Isso é desespero”. [66]
A teologia da cruz de Lutero se caracteriza: primeiramente na luta do homem em querer ser igual a Deus na fé e no desafio de desempenhar a vocação em relação ao próximo. Se em ambos os casos o homem busca santidade, as obras imperam no amor. Para Lutero, então, a vida cristã é desempenhada em relação às pessoas, porque elas é que precisam das ações do ser humanos. [69]
A partir da sua teologia do Batismo, Lutero estabelece que a mortificação do velho homem se dá “mediante a cruz e o sofrimento, e ressuscita pela evangelho ou, através da igreja, renascido como nova criatura. A cruz de Cristo é agrupada à lei, ao velho homem, à vocação, à terra. [...] O velho homem deve ser crucificado e morto mediante a lei, que na vida sobre a terra assume a forma do governo secular. Somos disciplinados na vocação, no trabalho e nas exigências da vida social. A vocação é terrena, tão chocante terrena que a humanidade de Cristo, isenta na aparência de qualquer divindade. Na crucificação de Cristo, a natureza divina estava apenas oculta, não ausente; estava presente no humilde amor pelos soldados e ladrões”. [71]
“O velho homem não pode ser crucificado a não ser pelo temor que a lei provoca na consciência. [...] Se lançamos nossos pecados sobre aquele que ressuscitou, podemos, em simples fé livre de responsabilidade, “libertar a consciência”. A consciência é libertada através do evangelho”.
Dos dois usos da lei que Lutero destaca [o civil e o teológico], o uso teológico ou espiritual é mais importante porque sua função é de levar o homem a tomar ciência do seu pecado. [...] Deus precisa, por meio da lei, estabelecer a ordem correta; e isso acontece apenas por meio da ocorrência do terror na consciência. O terror de consciência, a obra “estranha de Deus” através da lei, nos leva à obra própria de Deus, sua obra pessoal em Cristo. Por isso a lei nos ajuda governando o corpo, nas suas ordenanças civis, e espiritualmente, quando somos colocados diante de Deus, em nossa consciência”. [75]
“Tentamos mostrar que as obras do novo homem, direcionadas para a terra e livres da lei, rasgam a fronteira entre céu e terra. A liberdade do evangelho na consciência também confere liberdade nas ações que o amor, pelo Espírito, realiza no reino que, de outra forma, está sob o domínio da lei, o reino terreno, o reino do próximo e da vocação. Tentamos mostrar que o segundo uso da lei implica uma invasão do céu, uma ruptura entre os limites que circunscrevem os dois reinos. No desespero da dúvida, não há nada senão a lei no céu e na terra; a consciência padece debaixo da lei, cuja função é propriamente governar o corpo. É assim que Deus o quer. O usus spiritualis da lei, como o diz o próprio termo, é obra do Espírito Santo. Essa é a mais nobre tarefa da lei e a mais sublime. Dessa maneira, em sua oposição ao diabo, Deus refaz aquilo que ele mesmo instituíra. Pois o próprio homem, sem fé e sem necessidade do perdão dos pecados (o homem está nas mãos do “diabo”), por puro orgulho de suas obras pessoais, removeu o evangelho do seu trono. Deus, por isso, concedeu à lei a permissão de passar além do seu limite e “com relâmpagos incendiar e destruir a besta selvagem”. O dualismo de Deus e Satã vem à tona na obra redentora de Cristo quanto na batalha do homem pela fé”. [77]
6. Relacionamento com Deus e Vocação
“A vocação tem seu lugar na profissão de três ‘santas ordens e instituições estabelecidas por Deus’: o ofício do ministério, o casamento e o governo terreno. [...] Mas, acima desses três fundamentos e ordens, há uma ordenação inclusiva à qual são incorporadas essas três. Essa tal ordenação é o amor cristão, com o qual o homem serve a todos quantos se acham em necessidade, perdoa aos seus inimigos, em favor de todos e espontaneamente sofre injustiça”. [77]
“O amor é uma disposição íntima de suportar e fazer tudo o que é requerido pela vocação e ele o faz alegremente e sem resistência”. [78]
“O homem não deve abandonar o seu estado quando lhe vem o chamado do evangelho. Ele deve permanecer no ofício, na vocação, como diz Lutero. Quando, porém, chega o chamado do Evangelho, ele é um chamado para ser membro de um reino acima de todos os estados e ofícios.” [78]
A fé e o amor estão na sua plenitude não só face a Deus como perante o homem. [79]
“Sendo o cristão simultaneamente velho e novo homem, assim também, simultaneamente, agem as obras de Deus, lei e evangelho. No dia-a-dia é impossível distinguir quais são, respectivamente, as ações do velho homem e quais são as do novo. Estão má vontade e alegria, antagonismo e amor tão geminados que só Deus vê qual é qual. Por esse motivo, seus julgamentos são para os homens sempre surpreendentes. Ser tanto velho homem quanto novo significa ser uma pessoa doente na qual a doença e a saúde contendem. É impossível identificar mecanicamente o que é o que nas ações de um convalescente. No momento em que Deus se aproxima do homem, tanto a lei quanto o evangelho estão agindo. A vida exterior do homem é cheia de exigências, e as muitas responsabilidades são apavorantes. A fé, contudo, ao mesmo tempo, o eleva em liberdade acima do próximo e da vocação; e nessa mesma liberdade em relação à lei encontra alegria no curvar-se para servir ao próximo. O cristão experimenta ao mesmo tempo o medo e a alegria”. [82]
“Como Deus age no governo terreno, através do quarto mandamento, ele ordena às pessoas que lhe são fiéis levar em consideração pais e governantes. A obediência que a fé presta a esse mandamento é, por natureza, uma coisa bem diversa da relutante sujeição do homem natural àqueles que exercem autoridade sobre ele. Agora, Deus age de fato mediante o governante, embora não haja nenhum homem, como cristão, que lhe dê obediência espontaneamente. Estas duas atividades existem lado a lado: a coerção de Deus pelas ordens externas, sem a renovação do coração humano, e a renovação de Deus do coração humano, do qual flui agora a livre e abundante observância da regra divina. Com isso, é a ordem, em si própria, mudada significativamente: perde a sua marca de força e o poder para acusar”. [82]
“Se uma pessoa vem a ser nosso inimigo e oponente, isso é um teste para nossa paciência e uma oportunidade para a obediência cristã ao mandamento do amor. Essas experiências amargas revelam quão fortemente o velho homem ainda vive em nós e nos instigam a sufocá-lo”. [85]
“Aquele que se pergunta efetivamente pelo bem-estar real do próximo já tem fé e é um filho de Deus. É precisamente isto que é ordenado: preocupar-se com o próximo. O evangelho e o mandamento estão na mesma linha. São ambos partes de uma única realidade. [...] A fé em Deus e a prontidão para servir ao próximo constituem uma unidade orgânica. Psicologicamente, a primeira pode ser uma simples disposição de receber sinceramente o mandamento para servir o próximo. A fé se esconde por debaixo da obediência ao mandamento; no entanto, ela é ativa e pratica a obediência. A unidade espiritual, a fé e o amor caracterizam o Cristo vivo ou o Espírito que toma posse do homem.”. [87]
II – Deus e o Diabo [93-174]
1. A Noção de Governo
Para Lutero, o ser humano ou está sujeito a Deus ou ao diabo. A autoridade criada e instituída por Deus serve para opor-se ao diabo. Por isso, “Deus lida com o mundo mediante um governo mundano inflexível, mediante a espada e a lei, e através de uma igreja concreta, na qual é pregada a Palavra e os sacramentos, administrados”. [94]
Os reinos da igreja e da ordem social são governos porque, de uma forma especial, estão envolvidos na resistência ao pecado. [99]
“A ordem [criada e instituída por Deus] é e continua boa e divina, assim como o sol é ainda uma criação pura de Deus embora algumas pessoas usem a luz do dia para come-ter assassinatos e outros crimes”. [100]
“O mal é a obra diabólica mediante o coração do homem. A batalha entre Deus e o demônio por todas as vocações e ordens sucede no interior de cada ser humano individual”. [101]
“Devemos diferenciar entre uma criação ou coisa e o abuso dela. A criação é boa, mesmo quando mal usada. O abuso não surge da coisa mas da mente corrompida. Da mesma forma, a justiça civil, as leis, o comércio e todas as iniciativas humanas são coisas que, por natureza, são boas; é o abuso, porém, que é mau porque o mundo abusa desse dons contra Deus... O abuso não inere à substância. É na coisa boa que o diabo ativa o uso”. [101]
“Os ataques do diabo consistem em tentações para fazer mau uso de um ofício bom e divino, para administrar incorretamente a vocação”. [102]
“O demônio, perverso, torna a vocação de cada um tão pesada e de tal forma confunde a compreensão que as pessoas ficam incapazes de reconhecer o ofício e a obra que Deus põe sobre elas”. [103]
“Na área do governo terreno, a corrupção toma lugar através do levantamento da tirania e da disseminação da anarquia na sociedade. A primeira significa: no seu orgulho e prazer de mandar, o governante propaga seu poder por onde ele não tinha o direito de assim o fazer. A última significa a indecisão do governante na sua responsabilidade de manter a ordem de sorte que as transgressões da lei não são punidas com rigor e o seu poder não é usado. A tirania é a presunção do governante; a anarquia, o seu desespero”. [103]
“Romper relações com pessoas, considerando-as inferiores em santidade, é uma coisa que Lutero rejeita como satânica perversão. Quando isso é ensinado como santidade e verdadeira vida cristã, o exercício do ofício do ministério cai em erro e o governo espiritual se corrompe da mesma forma que um governo secular pode ser distorcido por um tirânico príncipe”. [105]
“O uso e o abuso variam de acordo com a mudança em nosso relacionamento com Deus, com o pecado ou com a oposição ao pecado: a saber, o diabo e Deus se acham envolvidos na concreta imagem da execução do ofício. A vocação é o ponto focal da decisão na batalha entre Deus e o diabo. Nesse combate, a Palavra é a lança de Deus”. [106]
2. O Conceito de Liberdade
No céu (na consciência), o evangelho reina; por isso, a liberdade. Mas na terra governa a lei; por esse motivo, a servidão. [108]
“O homem tem liberdade em questões exteriores, pois aí deve realizar alguma coisa, aí se encontra o seu estado na vida com as múltiplas obras. Mas assim que esse estado o confronta, a sua “liberdade em coisas externas” é transformada em servidão da lei; e ele está “livre” para obedecer a lei. A liberdade da consciência em é liberdade em relação à lei, para dentro das mãos vazias da fé, para a servidão perante Deus. A liberdade em coisas externas é a liberdade para a lei, para as mãos cheias de obras da vocação pessoal, para a servidão perante o próximo”. [109]
Para Lutero, há liberdade em fazer ou não fazer o que a vocação exige. “Há liberdade para fazer se o amor ao outro o exige, e liberdade para não fazer se é isso que o amor ao próximo requer. Através dessa liberdade de agir tem a fé e o relacionamento com Deus real significado no contorno da vocação. A vida segundo a vocação nunca se torna fixa ou rígida. Sempre e sempre encontramos em Lutero conceitos que mantêm seu sistema aberto para novas ações, portas através das quais Deus entra criativamente nas ordens da criação. ‘Liberdade para fazer ou não fazer’ é um desses conceitos”. [110]
“A mesma porta que abre essas ordens para Deus as abre igualmente para o diabo. Numa vocação imutável poderia funcionar somente um robô. Na verdade, o uso que se faz do ofício desempenha um papel vital, pois, através do seu uso próprio, a vocação é transformada mediante a fé e o amor na comunhão de Deus. Deus torna tudo novo”. [110]
“A liberdade cristã de consciência, indissoluvelmente unida ao amor pelos outros, vem a ser isto: em questões externas a pessoa deve “fazer” de acordo com a lei, seguir a regra costumeira, ou “romper”, quebrar a regra tradicional. O amor cristão faz essa ruptura porquanto alguma outra coisa poderia ser melhor para os outros, pois o amor vive no coração daquele que “abandona” a ordem habitual e o impele preferencialmente para uma nova ação em prejuízo de uma prática velha. Assim, o elemento mutável na vocação é representado no amor nascido da fé. Esse amor age inteiramente como quer à medida que discerne a vontade de Deus”. [113]
“A permissão (isso é, a liberdade de fazer ou não fazer) é garantida ao novo homem mas não ao velho. Para aquele que tem um amor não-fingido pelo próximo e seu trabalho, a vocação se torna flexível e adaptável. Para aquele que na verdade ama apenas a si mesmo, a vocação se torna rígida, inexorável e coerciva”. [114]
“Face a Deus, o homem pode ser livre apenas enquanto mau. Não pode ficar separado de Deus e continuar independente dele sem ficar preso ao adversário e inimigo de Deus, como escravo do diabo. Assim como ele não pode ser livre em questões externas a não ser confiando-se ao poder de Deus, de forma semelhante ele só pode ter liberdade em relação a Deus submetendo-se sua vontade ao diabo. Sendo assim, a vontade do homem está presa, ou em relação a Deus, ou em relação ao diabo”. [119]
“Deus, ao submeter a si a vontade humana, livra-a das forças do tirano. Sob o domínio divino, toda a situação humana é definida como liberdade; sob o satânico, servidão. Esse é o uso possível mais amplo da noção de liberdade e escravidão. [...] Deus criou o homem, e o homem foi destinado para Deus. Quando o homem volta a ser de Deus, ele se torna aquilo para o que foi concebido. Por esse motivo, esta é a liberdade para tornar-se aquilo para o que foi criado o homem”. [120]
3. A confusão dos reinos
“Em lugar de reforçar a liberdade de consciência e a servidão do corpo, como o queria a ordem de Deus, Satanás engana o homem, por um lado, em relação à servidão da lei na consciência e, por outro, à liberdade da lei em questões corporais”. [...] No reino espiritual, o evangelho deve reinar, o qual evangelho é contra a tirania do papa sobre as consciências. No reino mundano, a lei deve reinar com a sua demanda por obediência; e isso é contra a sedição dos camponeses”. [121]
“A liberdade de consciência quanto à lei na sua totalidade foi levada a efeito por Cristo e é possuída na fé até que seja plenamente realizada no céu após a morte”. [124]
Insistir em que as diferenças em posição externa devam ser abolidas seria transformar o reino mundano no reino espiritual de Cristo, no qual os governantes e os servos indubitavelmente estão no mesmo nível. [124]
“Durante a existência na terra, a lei deve dominar. Isso quer dizer, entre outras coisas, que devemos esperar cruz, tribulações e pesados fardos”. [125]
“A confusão dos dois reinos, terra e céu, ou dos dois estados, terreno e espiritual, é a conseqüência de se confundir liberdade e servidão nas duas formas como observamos. Essas perversões do mundo de Deus são obra do diabo, uma ação hostil contra Deus, através do mal no coração dos homens”.
“É vital para cada um limitar-se à sua própria vocação e permanecer nela”. [127]
“Um homem de igreja deve abster-se de todas as armas terrenas, de toda coerção e desejo por poder mundano, pois a Palavra não deve usar nenhuma força externa. O pregador que vai adiante confiando simplesmente no poder interno e invisível da Palavra pregada, é assim fiel à sua vocação”. [127]
“Em geral, o diabo mistura os dois reinos mediante um desvio da vocação e uma violação da vocação da pessoa, isso é, através do abuso dos seus próprios ofícios. Satanás tenta os homens nesse sentido. Isto é vocação: o cuidado correto pelo ofício, o qual é traído quando a confusão toma conta. Contra isso, Deus salienta a sua oposição tanto pelo evangelho como pela lei. O evangelho deve dominar no reino do céu, e a lei no reino terreno”. [128]
“O homem novo, livre, não se desvia na sua ação; mesmo sem a lei, ele se entrega em íntima alegria à sua vocação, transformando-a em harmonia com a divina vontade criativa do amor, que vive no novo homem através de Cristo. Seu objetivo é servir ao próximo”. [129]
“Está implicado que todas as coisas e relacionamentos externos em que vive o homem representam Deus para ele; eles são “máscaras de Deus”, larvae Dei. Esse aspecto da visão de Lutero é da máxima importância”. [130]
“A fé exige que todo momento e ação sejam aceitos em fé e conduzidos na fé; as obras devem ser feitas na fé. A fé é severamente testada quando, em circunstâncias externas, Deus nos traz sofrimentos e problemas tais como ódio e calúnia da parte de nossos inimigos, doença e outros amargos infortúnios. [...] Deus põe a cruz sobre o velho homem, a quem ele mata e levanta de entre os mortos.” [131]
“Cruz e desespero vêm juntos na vocação e dirigem o homem para a oração. A fé renascida e fortalecida por Deus na oração capacita o homem a “descer do céu como uma chuva que frutifica a terra”; pois o homem “cumpre sua vocação com sincera alegria” e submete-se a leis injustas”. [132]
Assim como Deus está em tudo, o diabo se esconde por detrás de todas coisas de modo a enganar o homem. Mas, a Palavra de Deus revela o diabo com todos os seus disfarces e o desmascara. [135]
“Quando o céu e a terra são diferenciados em dois reinos, poder-se-ia ter a impressão de dois mundos estáticos, um mundo da idéia e um mundo material. Mas, quando os limites desses reinos ficam enuviados na batalha entre Deus e Satã, torna-se claro que essa divisão entre “acima” e “abaixo” não é uma descrição cabal da visão de Lutero sobre o mundo, apesar do fato de incessantemente o próprio Lutero usar esses termos e outros similares. Deus está acima de tudo não só como ira mas também como amor, na lei e no evangelho. Deus mora no céu, mas vive e opera na terra. Na sua obra sobre a terra quer os homens como seus colaboradores.” [136]
4. Cooperação
“A cooperação acontece na vocação, que pertence à terra, não ao céu; ela é dirigida ao próximo, não a Deus. Os atos e as obras humanas têm uma função real a cumprir nos relacionamentos civis e sociais apesar do fato de as obras feitas pelo homem não poderem arrancar-lhe a condenação que sobre ele está perante Deus”. [137]
“Lutero deixa claro que o próprio amor de Deus alcança os outros através dos cristãos como canais. Deus está presente na terra com a sua bondade quando o cristão dirige seu serviço, para baixo, para os outros. Deus habita nos céus, mas agora ele está perto e ativo na terra com o homem como seu cooperador. [...] Toda a noção do homem como canal é colocada em íntimo relacionamento com a doutrina da vocação. E, para completar, é acrescentada uma advertência contra o afastar-se do mandato de Deus e da ordem criada”. [139]
“Querer ser exaltado ao invés de servir, considerar o ofício como possibilidade de poder pessoal ao invés de serviço – é uma ofensa contra a vocação”. [141]
“A criação, a obra de Deus, é desenvolvida mediante a pessoa que, sendo fiel na sua vocação, é uma cooperadora contra o diabo. Ela resiste à tentação e vive humildemente no seu trabalho pesado, comum, rasteiro e discreto, mediante o qual Deus sustenta o seu reino terrestre contra os ataques de Satanás. A vocação e o homem que a cumpre são usados como ferramentas e meios para a contínua criação de Deus, que se dá a partir do “nada”, isso é, sob a cruz da vocação”. [143]
“A cooperação acontece quando fazemos uso das coisas criadas. “Mesmo que estejamos seguros da providência e atenção divina por nós, devemos saber que os meios e as coisas que Deus colocou à nossa disposição devem ser usados, que não devemos tentar a Deus”. [147]
“[...] Estas em necessidade significa todas as possibilidades da criação havendo sido experimentadas e achadas incapazes de prestar auxílio. Em tal circunstância, desce Deus e completa a sua criação. A porta pela qual Deus entra para efetuar o novo é, freqüentemente, a oração de uma pessoa em necessidade”. [148] [...] Dessa forma, a oração e a obra se pertencem. Quem faz seu trabalho completamente pode orar com poder, pois, assim tem ele uma boa consciência. [149]
“O homem na sua vocação é uma máscara de Deus na terra, mas no céu a máscara é suprimida e arrancada; pois ali a palavra do evangelho domina à medida que revela a atitude de Deus. A revelação no verdadeiro sentido é esta: o desvendamento de Deus e o fim de todo ocultamento”. [152]
“À medida que observa o contexto da sua vocação terrena, seu pensamento é que este não é um mundo em que o homem possa colocar a sua confiança, mas um no qual ele pode servir”. [154]
5. Regeneração
“A lei escrita e as ordens estabelecidas são necessárias porque as boas coisas dadas pela criação, talentos e habilidades, são muito suscetíveis ao uso com más finalidades. Mas, com respeito à vida na terra, Deus pode usar a razão do homem natural como meio para cuidas dos seres humanos da mesma forma como ela o faz com o amor do cristão”. [156] “Por isso é de máxima importância logo tornar claro que nenhuma distinção é feita entre o homem natural e cristão. A primeira coisa que deve ser dita sobre o cristão é que ele, através da promessa do evangelho, vive no céu e que essa vida é o mesmo que a recepção da graça; ele adota um outro reino em lugar do mundo”. [156]
“Eqüidade é uma coisa que Deus requer e a que se deve dar espaço na vida sobre a terra; Deus, porém, a exige de cristãos e não-cristãos igualmente, pois na terra não há diferença decisiva entre cristãos e não-cristãos. Devem todos falar a verdade. Devem todos obedecer à lei civil. Devem todos mostrar fineza e respeito. Onde as obras e o comportamento visível estão em foco não é só difícil fazer uma demarcação radical entre cristãos e não-cristãos; é errôneo”. [163]
“O objetivo da ação deve ser este: no meio de um mundo pecaminoso do qual inescapavelmente participamos, devemos viver para ajudar o nosso próximo e promover o bem-estar. Isso é impossível de nenhum outro modo a não ser tomando nosso lugar entre Deus e o próximo e fazendo “o que for necessário”. Em nossa relação real com Deus, uma ação é exigida numa hora e outra numa outra, quando o cenário exterior estiver mudando”. [166]
“Na sua visão da sociedade, Lutero enfatiza fortemente o fator significativo da mudança na obra criativa de Deus sobre a terra, que parece puro esteticismo, exceto pelo fato de que a batalha entre Deus e o diabo oferece o background e a razão pela qual se vê como necessário um novo ato criativo”. [171]
III – O Homem [175-257]
1. A sua situação
“Uma antropologia que primeiro descreva o homem e depois de ocupe com a sua relação com Deus, é, para Lutero, um absurdo”. [176]
“A posição do homem entre o céu e a terra implica em não esperar ele apenas boa fortuna sobre a terra mas também antecipadamente estar preparado para sofrer “a cruz” e as tribulações deste mundo”. [177]
“A promessa do céu é dada pela palavra de Cristo; mas o caminho para esse reino após a morte é através da serenidade na vocação, através da paciente fidelidade à responsabilidade nos dias maus e bons”. [178]
“Entre a criação e a ressurreição estão a vida na terra e a vocação. A vocação testemunha a fé de que o corpo deve ser ressuscitado porque a vocação estende a lei e a cruz sobre o corpo enquanto o corpo está na terra, na qual esteve a cruz de Cristo”. [...] Entre a criação e a ressurreição encontra-se o recebimento, pelo homem, do batismo e da comunhão; e na visibilidade e exterioridade dos sacramentos se acha o mesmo testemunho da vocação: o testemunho de que também o corpo deve nascer para a vida eterna. Através da vocação, a lei testemunha a ressurreição; através dos sacramentos, o evangelho testemunha a mesma coisa”. [179]
“O evangelho, porém, que Deus endereça a toda consciência atribulada, pode ser recebido em fé e, pelo Espírito, produzir amor pelos outros e inclinação para o que requer o ofício da pessoa cumprindo-o na liberdade em relação à lei”. [181]
2. Vocação – Imitação
“O alto apreço pela capacidade que têm algumas pessoas em dar conselho em qualquer espécie de situação tem um caráter profundamente luterano. O caráter local da vocação mostra que a mesma contrasta com a imitação. Aquele cuja conduta copia algum padrão procura agir independentemente não apenas da época mas também do lugar”. [184]
“[...] a vocação aponta um mundo que não é o mesmo para todas as pessoas. [...] Cada um dos fatores sociais que surgem das ações vocacionadas das várias e diferentes pessoas tem o seu próprio caréter; e, assim, a vida na sociedade se desenvolve numa variedade opulenta”. [184]
“[...] cada qual deve realizar a sua própria obra sem olhar os outros nem tentar copiá-los. Cristo não deve ser imitado por nós, mas, antes, ser aceito em fé porque ele também teve o seu ofício pessoal, o da salvação do homem, ofício que nenhuma outra pessoa tem”. [185]
“É na fé que todos são iguais face a Deus ou no céu, onde não se encontra o homem na dependência de nenhuma obra de sua própria feitura. Mas há enormes diferenças nas obras voltadas para o próximo na terra”. [...] “As diferenças entre as pessoas acham-se todas nas coisas que elas podem fazer em suas múltiplas formas, na capacidade ou no trabalho”. [186]
“Quando o objetivo dos esforços humanos é servir os outros, servir a todas as pessoas, seguem-se naturalmente que suas obras deferirão em larga escala. São as diferenciações desejadas pelo próprio Deus, como a riqueza dos dons, que são espalhados mundo afora através do sistema das vocações terrenas. Para expressar isso, tem Lutero uma especial predileção pela figura paulina do corpo e seus membros (Rm 12 e 1 Co 12)”. [190]
“ [...] é de particular importância que nenhum membro do corpo dirija seu esforço no senso de se tornar um membro ou de participar do corpo. Eu já sou um membro! Isso é feito mediante a obra de Cristo; conseqüentemente, meu esforço pode agora ser dirigido na sua totalidade para servir o corpo e seus membros”. [191]
“A ação do homem é instrumento para o amor de Deus atingir as outras pessoas. A vida do corpo como um todo está envolvida na atuação de cada membro. No exercício da sua vocação, o homem se torna uma máscara para Deus. É digno de nota que o juízo de Lutero sobre a imitatio é negativo; ninguém deve colocar a sua confiança em algo externo, mas agir imparcialmente face a todas as aparências humanas”. [192]
“À medida que seu trabalho se dirige para fora, é ele uma máscara de Deus; mas, ao mesmo tempo, nenhum valor é atribuído a esse trabalho devido à confiança da consciência no evangelho, e o servidor se recusa a confiar em qualquer das suas boas obras. Não parece ao cristão que devam todos os outros cristãos fazer exatamente como ele faz, dar exatamente como ele dá, sofrer como ele sofre. Cada qual tem de prestar o seu próprio serviço”. [193]
“Deus é Criador e ele sempre traz à luz novas criações dando formas novas ao exercício das vocações dos homens. Por isso, deve o homem sempre deixar a porta aberta para Deus à medida que, na hesitação e desespero, procura conselho de Deus mediante a prece”. [196]
3. Oração
“Aquele que trabalha sabe que há tempos em que todos os caminhos humanos ficam fechados. Num sentido especial, esse é o tempo da oração. Só para esclarecer: Lutero defende as devoções regulares, as orações pela manhã e pela noite, e não só as orações em manifesta necessidade”. [198]
“Atirar todas as preocupações incondicionalmente sobre Deus não é tentar a Deus; é tão-somente levar em consideração o seu mandamento claro e manifesto”. [198]
“Em e através da oração, Deus realiza algo diverso do que seria feito sem ela. Naquele que ora, uma obra especial de Deus acontece, uma obra que tem, subseqüentemente, sua expressão externa”. [200]
“A oração está em relação direta com o desespero e o segundo uso da lei, cuja conseqüência deve ser a humildade e o anseio pelo divino evangelho”. [201]
“A oração não é possível pelo nosso poder pessoal; é o Espírito Santo que geme dentro de nós. Por essa mesma causa, o homem nem sempre está cônscio de que está em oração”. [203]
“O desespero surge em nossa vocação, estimulando a prece. Mas a divina resposta à suplica aparece também na vocação de cad um; e a divina interferência que responde à prece, relaciona-se intimamente com a metamorfose do trabalho em nosso chamado”. [204]
“A prece é a porta pela qual Deus, Criador e Senhor, entra criativamente em casa, na comunidade e no trabalho”. [...] Depois de uma pessoa ter gasto a sua força no trabalho e não poder fazer mais, ela deixa nas mãos de Deus o empreendimento em que estava engajado, e Deus entra e concede ao caso o avanço e resultado que é o melhor e o mais necessário. Deus penetra na situação de modo imediato, sem o uso da força humana”. [206]
4. O Mandamento de Deus
“Quando uma pessoa crê no evangelho, seu relacionamento com Deus repousa na ação de Deus e não em sua própria. Liberta-se ela de qualquer noção de que possa basear-se sua justiça perante Deus em sua religião ou em seu caráter. Ou seja, face a Deus ela está livre da lei. Só aí ela, de fato, vê o que Deus realmente manda. O mandamento não desaparece quando a legalística relação com Deus é deixada para trás. Pelo contrário, quando a consciência finalmente chega a repousar na confiança no evangelho de Deus, compreende o homem que até agora ele simplesmente não havia perguntado pelo que Deus quer e ordena; tinha sido levado constantemente de um ato vão para outro em seus esforços para tornar-se adequadamente religioso. Quando, porém, chega à fé, encontra-se um único mandamento perante ele”. [211]
“O legalismo é uma contínua fuga do mandamento de deus. Já a fé é o caminho rumo à compreensão desse mandamento.” [211]
“O mandamento é uma ordem concernente ao “uso correto” do ofício da pessoa, pois o uso deve ser modificado pela morederação, isso é, pela atenção às diferentes pessoas, aos diferentes próximos. À luz disso, devemos entender que toda ação tem sua hora, seu tempo”. [215]
“A liberdade em relação à lei não significa uma total ausência da categoria do esforço e cobrança na vida cristã. Essa liberdade significa: o homem agora pergunta pelo que Deus manda. Procurar saber qual a divina vontade e qual a necessidade alheia, estando, assim, livre da egocêntrica preocupação com a sua própria vida religiosa, pressupõe, naturalmente, um coração que achou paz e vive pela fé”. [216]
“A razão julga a situação externa com muito cuidado, e a prece pede orientação a Deus. Nessa dupla receptividade, em relação a Deus e à vocação, a pessoa fica segura de que uma coisa particular deve ser feita; e, através dessa receptividade em ambas as direções, o homem se torna “um meio que recebe de cima e passa para baixo – feito um vaso ou cano”. A concepção do homem como um cooperador e máscara de Deus está em harmonia com isso”. [219]
“O cristão pode escolher o que é melhor em tudo o que lhe diz respeito. Como nova criatura, ele não é compelido a suspender a lei como um indivíduo que sempre exige ser a lei abrandada. Em si mesmo, seria isso uma nova servidão à lei, lei que nunca deveria ser dura e minuciosa para com a pessoa embora se possa perceber que a brandura pode-ria prejudicar a todos”. [219]
“O cristão é livre para insistir duramente na justiça ou para tratar complacentemente, segundo o que dita o amor, ou seja, de acordo com o que Deus ordena; pois discernir o que é exigido pelo amor ao próximo é o mesmo que ser madnado por Deus para faze-lo. Tal cristão tem uma constância elástica em relação aos outros. Ele está na mão de Deus e faz a coisa certa no tempo certo”. [220]
5. Stündelein
“Na hora divina, a ação tem de ser feita, e o homem recebe de Deus uma liberdade criativa para realizá-la através e contra qualquer oposição. O homem é livre na ação externa quando, como um véu, está preso a Deus para a ação criativa de Deus, a qual, no mento em que chega a hora, irrompe de uma forma imprevisível. O que Lutero fala sobre “o tempo” está relacionado ao seu conceito sobre liberdade e cativeiro e lança mais luz para sua percepção de liberdade. Isso pode clarificar o papel desempenhado por aquele que é fiel à sua vocação até ao ponto em que irrompe a ação de Deus”. [224]
“Deus pode encher um breve espaço de tempo com bastante significado porque ele é soberano e faz tanto quanto quer e quando quer mediante um mínimo de esforço humano. Ao experimentar uma pessoa esse “tempo”, situa-se ela perante o inacreditável. Deus pode igualmente, por outro lado, esvaziar de significado um longo período de tempo, um tempo que, talvez, apesar de abundante em esforço humano, é, porém, deixado vazio por Deus porquanto o Cristo nunca está preso a nenhuma regra”. [226]
“Se Deus favorece alguma pessoa e lhe concede fortuna, ela freqüentemente pode realizar mais numa hora que uma outra com enorme trabalho e pena em quatro dias inteiros... Ninguém é capaz de fazer nada a não ser que venha a hora certa, que é dada por Deus sem a nossa procura dela. É inútil para ti procurares o sucesso antes do tempo e tentar alcançar o teu propósito mediante grandes sofrimentos e sábios planejamentos. Pois Deus conhece a arte de apressar ou atrasar o tempo e a hora de modo que, para alguém, uma hora se torna uma quinzena; e, por outro lado, uma pessoa não realiza mais, através dum longo labor e muitas aflições, que uma outra com um trabalho curto e fácil... Deus assim manipula as coisas de modo que nossas dores não sejam necessariamente abençoadas; pois não queremos esperar até que tais bênçãos nos venham de Deus, mas queremos encontrá-las por nós mesmo antes que Deus no-las outorgue”. [227]
“Pois Deus organizou e distribuiu todas as coisas tão corretamente que é seu desejo conservar todos os pensamentos e obra em sua mão. Não haverá progresso a não ser que chegue a hora por ele determinada... e assim Deus conserva tudo em suas mãos; e desse modo ninguém na terra pode levar adiante seus próprios desígnios; na verdade, os planos da pessoa não se realizam de modo nenhum se ela primeiro não procura sua orientação”. [228]
“O Deus cujos mandamentos se tornam concretos em diferentes leis é o mesmo Deus que segura o curso exterior dos eventos em suas mãos e, assim, prepara as ocasiões oportunas em que devem se ajustar as coisas ordenadas”. [230]
‘Como Deus está em atividade no mundo por causa de nós, é Deus que nos dá o momento junto com os relacionamentos com os outros na situação nossa que o momento provoca; e, junto com esses relacionamentos, ele define também as nossas tarefas. Usar a hora e o tempo que Deus concede é assumir a sua própria vocação. É dessa forma que o ordenado por Deus para o ‘tempo’ é realizado”. [236]
6. Ocultação e Escatologia
A determinante e abrangente cristologia da fé luterana está implícita no concernenete às fadigas mais reais e tangíveis da vocação da pessoa. [245]
“A ocultação não é uma, no meio de outras tantas, característica de Deus. Deve-se ela ao fato de a pessoa ainda viver na carne e ainda não ter morrido e ressuscitado de entre os mortos. Por essa razão estamos discutindo essa fase do pensamento lutérico”. [252]
“Como é furiosa a batalha entre Deus e o diabo! Cristo não escapou da cruz, e o cristão escapa do desespero. Neste fatos repousa o ocultamento: o próprio Filho de Deus sofreu a agonia da cruz, e nenhum homem escapa da morte, temendo e morrendo na incerteza”. [254]
“A vocação do homem está envolvida nessa ocultação da vida cristã; na vocação do homem, a verdadeira “mortificação” deve ser desenvolvida pela divina vontade. Não há nada de santidade apreciada pelos homens na obra do chamado. Quando, porém, após a morte e ressurreição, terminar o ocultamento, acabará da mesma forma o peso do labor na vocação humana. O tempo da terra, então, estará no passado, o diabo terá sido vencido, e o velho homem, que deve ser entregue à morte, já terá expirado”. [257]