Diálogo Interluterano (IELB e IECLB) sobre a Celebração da Santa Ceia
I. A razão deste documento de estudo
"Que o Deus Todo-Poderoso e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo nos conceda a graça de seu Espírito Santo, para que todos sejamos unidos nele e constantemente permaneçamos nessa unidade cristã que lhe é agradável. Amém." (Fórmula de Concórdia - Epítome, XI, 23, Livro de Concórdia, p. 536).
Nesta oração, luteranos reconhecem a importância da união daqueles que crêem a mesma doutrina e confessam que, para tanto, a ação de Deus se faz necessária. A união na Igreja não é obra humana, mas dádiva divina, realizada pela palavra do próprio Deus.
As duas maiores igrejas luteranas no Brasil (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil [IECLB] e Igreja Evangélica Luterana do Brasil [IELB]) estiveram reunidas para uma Conferência Nacional (Rodeio 12, SC - de 29 de outubro a 1º de novembro de 1998), sob o tema "Unidade e Missão." A partir daquele encontro, as duas diretorias foram solicitadas a realizar estudos sobre a Santa Ceia, envolvendo as comissões de teologia das igrejas (Unidade e Missão, Comissão Interluterana de Literatura, 1999, p. 55). As duas comissões de teologia passaram a se encontrar, a partir de 18 de setembro de 1999. Estava em estudo a questão da "hospitalidade eucarística" - membros de uma igreja participarem da Santa Ceia celebrada na outra igreja luterana, em ocasiões especiais (Confirmação, etc.). Em razão da seriedade do assunto, as comissões de teologia decidiram empreender um estudo mais amplo da doutrina e prática da Santa Ceia. Após 4 reuniões, a partir de estudos redigidos por representantes de ambas igrejas, as Comissões submetem às Igrejas o presente documento para estudo.
É importante ressaltar que o assunto tratado, dada sua importância, tem sido estudado a partir de um exame da Escritura Sagrada e das Confissões Luteranas. Não se pretende um acordo político-eclesiástico, mas um testemunho claro da fé que cremos, ensinamos e confessamos. Destaca-se também, neste momento, o espírito de respeito mútuo entre as comissões de teologia. Pontos de consenso têm sido identificados, mas questões em estudo, onde não há concordância, também são reconhecidas.
O presente documento aponta, a seguir, aqueles pontos de consenso mais significativos identificados nos encontros e estudos das comissões de teologia. Observa, também, aquelas questões em que as comissões de teologia reconhecem a necessidade de estudos mais aprofundados, visto ainda não terem alcançado consenso.
O objetivo maior do presente documento é fomentar nas Igrejas o estudo de assunto tão fundamental quanto a Santa Ceia, esclarecer o posicionamento das Igrejas e convidar congregações e pastores à reflexão e reação diante do que se coloca.
II. Pontos de consenso
O texto bíblico é claro em mostrar que a Santa Ceia não é invenção humana, mas instituição do próprio Jesus (Mt 26.26-30 e paralelos; 1 Co 11.23-25). As duas Igrejas luteranas crêem, confessam e ensinam, com Lutero, que a Santa Ceia "é o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, sob o pão e o vinho, dado a nós cristãos para comer e beber, instituído pelo próprio Cristo" (Catecismo Menor de Lutero, Livro de Concórdia, p. 378). Como instituição do Senhor, a Ceia é recebida pela Igreja, não inventada por ela. É instituição feita no âmbito do evangelho; é sacramento; é dádiva de Cristo para sua Igreja. Não é obra humana ou mera cerimônia piedosa. É ato que tem a autoridade do próprio Cristo, que se manifesta em poder, mas sobretudo em graça e misericórdia para com seu povo.
Com os confessores em Augsburgo, IECLB e IELB testificam que "o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes na ceia sob a espécie do pão e do vinho e são nela distribuídos e recebidos. Por isso também se rejeita a doutrina contrária" (Confissão de Augsburgo; Livro de Concórdia, p. 32). A esta confissão somos movidos pelas palavras do próprio Cristo, presentes na instituição da Ceia ("Isto é o meu corpo ... isto é o meu sangue" - Mc 14.22,24).
A presença de Cristo, portanto, não pode ser interpretada de maneira simbólica, como Zwínglio o fazia. Se fosse isso, a comunhão seria por demais subjetiva e dependente do significado que o indivíduo lhe daria. A presença real também não pode ser interpretada de maneira transubstancial, como se na hora da consagração mudassem a substância e a essência dos elementos, como a doutrina católica romana tradicionalmente o tem afirmado e, por conseguinte, justifica a não-distribuição do cálice e a presença de Cristo na hóstia, mesmo depois da missa. Enquanto a interpretação simbólica tende à espiritualização e faz perder a concreticidade, a interpretação transubstancial tende a conduzir a uma materialização perigosa por induzir à compreensão mágica. Ambas as interpretações tentam explicar o mistério da presença real que não pode ser explicado adequada e suficientemente, mas é acolhido na fé.
Um dos termos pelos quais a Santa Ceia é conhecida é "comunhão". De fato, há uma tríplice comunhão (como Paulo o mostra em 1Co 10.16-18): 1) aquela entre os elementos, pão e corpo de Cristo, vinho e sangue de Cristo; 2) comunhão entre Cristo e aquele que comunga; 3) comunhão entre os comungantes. Falando especialmente das duas últimas, a Santa Ceia não apenas expressa esta comunhão operada pelo próprio Deus, mas é meio pelo qual tal comunhão é sustentada e fortalecida.
4. Os benefícios da Santa Ceia - perdão, vida e salvação; a dimensão escatológica da Ceia.
As palavras de Jesus, por ocasião da instituição da Ceia, declaram seu benefício maior: "Isto é o meu corpo oferecido por vós ... Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós" (Lc 22.19,20); "derramado em favor de muitos, para remissão de pecados" (Mt 26.28). Por isso, confessamos que "Deus verdadeiramente nos perdoa por causa de Cristo quando somos batizados, quando comemos o corpo de Cristo, quando somos absolvidos" (Apologia da Confissão de Augsburgo XIII 4; Livro de Concórdia, p. 223). Com Lutero declaramos "que por essas palavras nos são dadas no sacramento remissão dos pecados, vida e salvação. Pois onde há remissão dos pecados, há também vida e salvação" (Catecismo Menor VI 6; Livro de Concórdia, p. 379).
A Santa Ceia é meio da graça, instrumento de Deus para trazer seu perdão para seus filhos. Assim, ela traz fortalecimento na fé, alimentando o crente para a vida diária e a luta contra Diabo, mundo e carne, que o querem levar ao desespero e descrença. Como meio da graça, a Ceia alude ao Cordeiro pascal e nos torna participantes da história dos maravilhosos feitos de Deus, desde a criação e a libertação de Israel do cativeiro até a consumação do seu Reino de justiça, paz e bem-aventurança.
A Ceia do Senhor é alimento para a fé, enquanto estamos neste mundo, e, ao mesmo tempo, proclamação da promessa da comunhão perfeita no céu. É, por isso, graciosa antecipação da ceia celeste. O apóstolo Paulo lembra que "todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha" (1Co 11.26). As duas igrejas luteranas (IECLB e IELB) confessam os benefícios da Ceia para a vida neste mundo e o caráter escatológico da mesma.
5. O lugar do arrependimento e fé para a participação na Santa Ceia.
O apóstolo Paulo alerta: "Aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor" (1Co 11.27). Preparações exteriores não tornam alguém digno do sacramento. De fato, nada do que possamos fazer nos torna dignos perante o santo e justo Deus. É preciso reconhecer nossa carência natural de sermos o que Deus exige em sua santa lei. Ao chegarmos diante da Ceia do Senhor fazemo-lo na confiança de seu convite gracioso, não em uma dignidade que nós próprios tenhamos construído. Por isso, quanto ao preparo para a Ceia do Senhor, confessamos, com Lutero: "Verdadeiramente digno e bem preparado é aquele que tem fé nestas palavras: 'dado em favor de vós' e 'derramado para remissão dos pecados.' Aquele, porém, que não crê nessas palavras ou delas duvida é indigno e não está preparado, pois as palavras 'por vós' exigem corações verdadeiramente crentes." (Catecismo Menor VI 10; Livro de Concórdia, p. 379). Nas palavras de Jesus, "arrependei-vos e crede no evangelho" (Mc 1.15), está seu convite ao pecador a que se chegue a Deus, reconhecido de seu pecado e natural indignidade, mas sobretudo crente nas palavras de perdão e vida oferecidos pelo próprio Cristo.
As igrejas luteranas (IELB e IECLB) entendem arrependimento e fé como obra que Deus, através do Espírito Santo, realiza em nós.
6. O envio para servir.
Por ser evangelho, a Santa Ceia traz vida renovada pelo perdão aos que dela participam na fé em Cristo. Nesta nova vida, reconhecemos o chamado de Deus, de servi-lo com nosso culto diário, e de servir ao próximo em amor verdadeiro. Perdoados por Cristo, somos libertos para anunciar o evangelho, perdoar uns aos outros, repartir o pão com as pessoas famintas e atender o próximo em todas as suas necessidades.
III. Questões em estudo
1. Os elementos visíveis utilizados na Santa Ceia
A respeito dos elementos, diversas questões encontram diferentes posicionamentos. Perguntas que se fazem são, por exemplo:
· Deve o pão usado na Ceia ser necessariamente pão sem fermento, ou poderá ser usado indistintamente o pão levedado?
· Que reflexão deveria ser feita em relação ao uso da hóstia? Seria apropriado utilizar pão inteiro, partido apenas na ocasião da celebração?
· Jesus utilizou vinho por ocasião da instituição da Santa Ceia. O tipo de vinho (tinto, branco, rosê, suave, seco, ou diluído) a ser usado é uma questão secundária. No entanto, poderíamos, por razões de ordem pastoral, admitir a utilização de suco de uva?
· Que dizer do cálice individual? É ele uma possibilidade tão aceitável quanto o cálice coletivo, mais tradicional?
Algumas destas questões encontram diferentes respostas da parte das duas igrejas. Outras têm sido discutidas mesmo no âmbito interno de cada igreja.
2. Os participantes da Santa Ceia
Também sob este ponto há perguntas a serem respondidas:
· Quem é convidado a participar da Santa Ceia?
· O que dizer da extensão do convite a membros de outras igrejas?
· Deve-se entender a Santa Ceia como sendo uma comunhão aberta ou fechada? (Por comunhão aberta entende-se que pessoas de outras igrejas cristãs também são admitidas para participarem da Santa Ceia. Por comunhão fechada entende-se a prática em que exclusivamente membros da mesma denominação religiosa [e, em alguns casos, apenas membros da mesma congregação] são convidados a participar da Ceia.) Práticas diferentes têm sido adotadas nas duas Igrejas.
· No caso específico do relacionamento entre a IECLB e IELB, a prática do acolhimento mútuo afetaria a compreensão da comunhão fechada?
3. Celebrante da Santa Ceia
Algumas questões necessitam maior análise no que se refere a quem administra o sacramento:
· Que dizer da celebração realizada por leigos, homens e mulheres, não-clérigos? Entende-se aí a administração da Ceia, com consagração dos elementos e distribuição dos mesmos.
· E a participação apenas na distribuição, como auxiliar?
· Tendo em vista que não há consenso entre as igrejas luteranas sobre a ordenação de mulheres para o ofício pastoral, entra também em questão o ministério feminino.
IV. Convite ao estudo, reflexão e reação diante deste documento
As Igrejas luteranas IECLB e IELB são convidadas, através deste breve estudo, a refletirem sobre a Santa Ceia de Cristo. As comissões de teologia julgam apropriado levantar algumas perguntas gerais diante dos consensos alcançados e os pontos que continuam em estudo:
· No que se refere aos pontos de consenso, são eles realmente encontrados na prática das igrejas, em suas comunidades locais? Ou há diferentes posicionamentos, adotados por pastores e comunidades?
· Sendo pontos de consenso, podem ser considerados como não apenas necessários, mas já suficientes para a adoção da hospitalidade mútua na Ceia entre as igrejas? Ou os consensos seriam de tal monta, que, inclusive, recomendam este acolhimento?
· Quanto aos pontos em estudo, qual deve ser a prática daqui para a frente? São eles impeditivos da participação de membros de uma igreja luterana na Santa Ceia celebrada na outra igreja?
· Deve-se também nos pontos em estudo, ou mesmo em outras questões não abordadas por este documento, alcançar consenso, antes de aprovar a hospitalidade mútua na Ceia? Ou será que a prática da hospitalidade na Ceia nos poderia servir de fonte de bênção para a continuação do diálogo?
Por fim, torna-se também importante a reflexão sobre a função e o impacto de um documento a ser enviado pelas duas igrejas às comunidades:
· Deveríamos adotar uma orientação geral, havendo, no entanto, respeito às condições locais? Ou seja, o que dizer da liberdade de cada comunidade, frente a uma orientação geral, tendo em vista as peculiaridades de sua região?
· Parece às comissões de teologia que qualquer orientação geral não deverá vir com o peso de lei, mas como orientação fraternal. Reações a este ponto são importantes e serão muito bem acolhidas pelas comissões.
Entendem as comissões de teologia que o estudo e a reflexão a serem empreendidos nas duas igrejas são importantes para qualquer passo a ser tomado no futuro. Esperam as reações das comunidades, a partir dos pontos levantados ou de quaisquer outros que não tenham sido abordados no presente estudo, mas que sejam relevantes no que se refere à doutrina e prática da Ceia do Senhor.
Nota: Participaram da preparação e revisão deste documento, da parte da IECLB: Eberhard Frank, Gottfried Brakemeier, Günter K. F. Wehrmann, Helmut Fertsch, Huberto Kirchheim, Margarete E. Engelbrecht, Ottokar Fertsch (in memoriam), Verner Hoefelmann, Wanda Deifelt, Walter Altmann; da parte da IELB: Carlos Walter Winterle, Edgar Züge, Erni Krebs, Gerson Luís Linden, Nivaldo Schneider, Paulo P. Weirich, Paulo Udo Kunstmann, Rudi Zimmer e Ursula Ana Neumann.
Revisado em reunião conjunta
Em 11 de setembro de 2001
Porto Alegre, RS