CAPÍTULO 1
Aspectos Isagógicos do Livro de Daniel
laYEnID significa “Deus é juiz” ou “Deus é meu juiz”, dependendo do significado do y i medial[1]. O profeta, personagem de destaque no livro que leva seu nome e, segundo as tradições ortodoxas judaica e cristã, autor do mesmo, era filho de família nobre, talvez até de linhagem real, como propõe os versículos 3 de 6 do 1º capítulo. Nada é dito sobre o local onde nasceu. Certamente sua infância ocorreu no tempo do rei Josias, o qual promoveu uma grande reforma religiosa, durante o ministério de Jeremias, a quem talvez teve a oportunidade de ouvir. Ainda jovem, em torno dos anos de 606 ou 605 a.C., foi levando cativo juntamente com outros jovens igualmente nobres por ocasião da primeira investida babilônica contra Jerusalém. Serviu em altos cargos na corte de duas potências mundiais: os impérios babilônico e medo-persa. Apesar de viver a maior parte de sua vida em terra estranha e estar sujeito a todo tipo de influência, permaneceu fiel ao seu Deus e à religião de seus pais. De fidelidade e piedade exemplares, mesmo em meio a situações de risco, foi dotado por Deus de muita saúde, bela aparência, capacidade intelectual invejável e sabedoria para a interpretação de sonhos e visões. Era honrado pelo povo no exílio por causa de sua justiça e sabedoria (Ez 14,14,20; 28.3). Ele próprio não retornou a Judá, mas viu seu povo fazê-lo. Nada se sabe a respeito de sua morte, apenas que alcançou uma idade avançada, em torno dos 90 anos. Os profetas Ezequiel e Jeremias, em parte, foram seus contemporâneos.
1.1. Posição no Cânon
No Cânon hebraico, o livro de Daniel figura, antes de Esdras, Neemias e Crônicas, entre os “outros escritos”, 3ª subdivisão da já 3ª divisão deste cânon. Segundo o pensamento crítico, tal posição refletiria a sua data de composição tardia, após a formalização da subdivisão dos “Profetas”, ou o reconhecimento de que não se trata de um livro profético em gênero. De fato, Daniel possuía o donum propheticum, mas não o munus propheticum, haja visto que não era um “profeta profissional”, mas um estadista. Na Septuaginta, Vetus Latina e Vulgata, foi recolocado após o livro de Ezequiel como o quarto dos “grandes profetas”, constando de 14 capítulos, a despeito dos 12 capítulos presentes no texto massorético. Tais adições ao texto, como os cânticos de Azarias e dos três jovens na fornalha, a estória de Bel e o Dragão, são as chamadas adições apócrifas.
1.2. Autoria e Data
Para os círculos conservadores, a autoria daniélica é evidenciada por referências do próprio texto, como no versículo de 12.4, nas revelações presentes nos capítulos 7 a 12 (dirigidas e subscritas nominalmente por Daniel; veja-se, particularmente, 9.2 e 10.2) e pela referência feita por Jesus no Evangelho segundo Mateus, capítulo 24, versículo 15. Defenderam-na nomes como Keil, Hengstenberg e Haevernick, da Alemanha, Pusey, da Inglaterra e R.D. Wilson of Princeton, dos Estados Unidos. Nos dias atuais, afirmam tal posição teólogos como E. J. Young e K.A. Kitchen[2]. Segundo essa perspectiva, os acontecimentos narrados nos capítulos 1 a 6 remontam ao período exílico do século VI a.C., tendo sido redigidos em torno do ano 530, pouco após a captura de Babilônia por Ciro, em 539.
Desde o século XIX, contudo, numa retomada da afirmação de Porfírio, filósofo neoplatônico do século II A.D., rejeitada por mais de mil anos, tornou-se opinião generalizada nos escritos do deísmo inglês que o livro fora escrito no século II a.C., no tempo da perseguição de Antioco IV Epifânes, entre os anos de 167 e 163, no início do período macabeu. Tal questionamento, perpetrado por estudiosos como Anthony Collins, Corrodi e Michaelis, foram em seguida reforçados por Bertholdt e von Lengerke em seus comentários, os quais afirmaram que a obra trata-se de um
pseudepigraphical tractate written in the Maccabean age to encourage the Jews in their resistance against the persecution of Antiochus IV Epiphanes. The profecies of Daniel were vaticinia ex eventu, prophecies-after-the-event, and were used as a device by which to ensure authority for an apocalyptic message[3]
Baseiam-se, para tanto, em argumentos teológicos, lingüísticos, históricos e lógicos.
Acima de tudo, o comentário de S.R. Driver, de 1900, quebrou a barreira da oposição conservadora.
In his lucid style and meticulous scholarship Driver mounted the case for Maccabean autorship in a way which appeared to most Englishmen no only to have succesflully salvaged the book’s religious value, but to have succesfully established definitively the critical position[4].
Entre os católicos destacou-se o trabalho de A.M. Dubarle.
Tal teoria, com teólogos como Eissfeldt, prosseguiu até 1919, com o ensaio de Holscher - já adepto da assim chamada 2ª fase desta corrente -, o qual enfocou problemas de linguagem, estrutura interna e a integridade litarária do livro. Seguiram-no Baumgartner e Noth, e a vigorosa controvérsia entre Rowley e Ginsberg nos anos 50. Como não se chegasse a um consenso, surgiu uma nova apreciação da complexidade da história literária da obra. Ressurgiu a argumentação tradicional. Ao fim, contudo, prevaleceu mundialmente a opinião de que a obra pertença ao período helenístico.
De fato, o livro de Eclesiástico, composto em torno do ano de 190 a.C., não menciona Daniel (veja-se 48.22; 49.7-10), mas 1 Macabeus, escrito em cerca de 100 a.C., já o conhecia (veja-se 1.43; Dn 9.27; 11.31). A partir de tais evidências, crê-se ser o autor um desconhecido, talvez pertencente ao grupo assideu (veja-se 1 Mc 2.27), e que sua redação final teria ocorrido em torno de 150 a.C., o que não exclui que contenha elementos mais antigos[5]. De fato, Daniel não aparece como uma personalidade histórica do período exílico em nenhum livro canônico do Antigo Testamento (ainda que seja o profeta mais freqüentemente citado nos escritos escatológicos do Novo Testamento). O nome ocorre duas vezes em Ezequiel, uma vez em conjunção com Noé e Jó (14.14) e uma vez como um protótipo de sabedoria (28.3). Afirma-se que “neither passage can have the biblical Daniel stories in mind, but it may be significant that the name was associated with a legendary wise man in the exilic period”[6]. Contudo, tal interpretação “rests mainly on the modern philosophical assumption that long-range predictive prophecy is impossible”[7]. Quatro fatores principais levam-nos a descartá-la: em primeiro lugar, afirma que os quatro impérios mencionados nos capítulos 2 e 7 seriam, por ordem, os impérios babilônico, medo, persa e grego. Mas no capítulo 5, versículo 28, afirma-se que os Medos e os Persas constituíam um império juntos. Assim, a ordem correta dos impérios seria: babilônico, medo-persa, grego e romano. Tal ordem não encontra subsídios na interpretação crítica.
Em segundo lugar, os Manuscritos de Qumram, do século II a.C., atestam que o hebraico e aramaico de Daniel são, realmente, de séculos anteriores: “...the Persian and Greek words in Daniel do not require late date. Some of the technical terms appearing in chapter 3 were already so obsolete by the second century B.C. that translators of the Septuagint translated them incorrectly”[8]. Isto rebate a posição crítica quando afirma a datação tardia através do fato de o texto ter sido escrito nestes dois idiomas e dá-nos motivo para crer que o emprego dos tais é fruto de uma vontade deliberada do autor (ao que parece, o hebraico é empregado em relação às nações mundiais, enquanto o aramaico o é para o futuro do reino de Deus).
Ainda, o quarto império de 2.33 e 7.7,19 é, como já vimos, o Império Romano. As forças romanas, como atesta a história, tomaram a Palestina apenas em 63 a.C., ou seja, cerca de 100 anos depois do período macabeu. E, por fim, o autor parece demonstrar um conhecimento exato dos acontecimentos do VI século a.C.
Assim, neste trabalho queremos situa-lo, como o próprio texto afirma (veja-se 10.1), num período próximo ao “3º ano de Ciro”, entre 547 e 530 a.C., e reafirmar a autoria daniélica do mesmo. Assim estabelecemos os subsídios para a exposição do assunto, como segue.
1.3. Tema
O tema teológico do livro é a soberania, na história, do Deus único e verdadeiro, que domina sobre tudo, condenado e destruindo a rebelde potência mundial, e que fielmente liberta seu povo[9] (veja-se 5.21). As visões de Daniel mostram Deus como triunfante (veja-se 7.11,26-27; 8.25; 9.27; 11.45; 12.13) e relaciona-se, neste aspecto, com o clímax da soberania de Deus expresso em Ap 11.15 (comparar com Dn 2.44; 7.27).
A graça de Deus aparece em Daniel através de várias profecias messiânicas. A mais conhecida delas encontra-se no capítulo 7, versículos 13 e 14. Ainda, como veremos em seguida, o “Ungido”, em 9.26, é sem dúvida Cristo. Como temas subsidiários, alguns vêem em Daniel ainda as questões da ênfase na oração e da angelologia, especialmente nas figuras de Gabriel e Miguel e dos anjos protetores dos persas e gregos.
1.4. Propósito
Aqui temos um ponto de contato entre as posições conservadora e histórico-crítica. Ambas afirmam que o propósito do livro é trazer consolo, contudo, em datas e situações diferentes. Enquanto a posição crítica, defendendo que as profecias de Daniel são vaticinia ex eventu afirmam que deveriam prover consolo aos judeus sob a perseguição de Antíoco Epifânes, cremos que o mesmo se aplica ao povo hebreu durante o exílio babilônico. Em adição, e numa aplicação do seu conteúdo ao período neotestamentário, afirmam que as tribulações e libertações atuais - subentenda-se, aos judeus no período exílico - são uma espécie de amostra e prefiguração dos eventos do final dos tempos. Segundo teólogos da igreja romana, até mesmo as adições apócrifas apontam para este propósito, de que Deus salva os inocentes, tipificados em Susana[10].
1.5. O Livro de Daniel e a Literatura Bíblica Apocalíptica
A literatura apocalíptica judaica surgiu em circunstâncias especialmente angustiosas, como quando o povo havia caído sob o poder político e militar de alguma nação estrangeira[11]. Em termos gerais, as mensagens apocalípticas referem-se à história humana como se estivesse tratando de um drama em dois atos, isto é, o presente e o futuro, no final dos tempos. Encontramos exemplos desta literatura em textos como Is 24 a 27, Jl 2, Ez 1.40-48, Dn 7.12 e Zc 1 a 6. Este gênero alcançou sua maior divulgação a partir do século II a.C..
O livro de Daniel, se tomado como um todo, é também um apocalipse, ou seja, um livro pertencente a um
genre of revelatory literature with a narrative framework, in wich a revelation is mediated by an other-wordly being to a human recipient, disclosing a transcendet reality, wich is bot temporal, insofar as it envisages eschatological salvation, and spatial insofar as it involves another, supernatural world[12]
Nestes moldes Daniel segue a linha dos antigos profetas: Deus é o Senhor da história e em breve revelará o seu domínio, prostrando todos os poderes pagãos e glorificando os judeus fiéis à Lei. Contudo, suas diferenças em relação aos demais prevalecem. Os profetas anteriores se ocupam do presente, visando a conversão e a penitência e com isto a renovação moral e religiosa dos contemporâneos. Esta preocupação pastoral parece escassa em Daniel; o que lhe preocupa é o futuro, isto sobretudo nas visões (capítulos 7 a 12). Elas descerram o futuro, fazendo esquecer a tribulação presente e procurando dar conforto. São escatológicas no sentido de que descrevem uma intervenção divina definitiva na história.
Depois da apocalíptica incipiente em Ez 38-39 (...), este livro representa o primeiro exemplo do gênero apocalíptico plenamente desenvolvido, gênero que teve ampla aceitação no judaísmo contemporâneo e posterior, por exemplo nos livros apócrifos de Henoc e também no Apocalipse do Novo Testamento, que tantas vezes cita Daniel[13].
Em Daniel, as mensagens se apresentam revestidas de uma grande linguagem simbólica e são comunicadas em forma de visão ao autor literário. Este recebe um forte impacto emocional (7.28; 10.8.17), o qual é capaz de levá-lo até ao desvanecimento (8.27; 10.9. Compare-se com Ap 1.17).
O livro contém o resumo profético mais detalhado de toda a história final do Antigo Testamento. Para muitos comentaristas, contém a única profecia (a profecia das 70 Semanas, tema desta pesquisa) que estabelece com exatidão a data do primeiro advento de Cristo.
1.6. Conteúdo e Estrutura
Estruturalmente, o livro de Daniel é uma associação de sua autobiografia, história e profecia. O período histórico coberto vai desde a primeira invasão de Nabucodonosor, em 605 a.C., até o 3º ano de Ciro, em torno de 536. Tem como contexto as cidades de Babilônia e Susa. Divide-se em 3 partes principais: a primeira engloba o primeiro capítulo, em hebraico, o qual apresenta o contexto histórico do livro. A segunda, essencialmente narrativa, tem um propósito didático, orientado a demonstrar que a sabedoria e o poder de Deus estão infinitamente acima de toda possibilidade e compreensão humanas. Começa a partir do versículo 4 do segundo capítulo, até o capítulo 7, todos estes escritos em aramaico. Descreve a elevação e queda de quatro reinos mundiais consecutivos, seguindo-se o estabelecimento do reino de Deus, eterno (é dada ênfase a este assunto principalmente nos capítulos 2 e 7, motivo inicial pelo qual alguns estudiosos afirmam haver uma espécie de paralelismo quiásmico proposital no livro). Presta ênfase à soberania de Deus através de acontecimentos como a ascensão de Daniel, dos seus três amigos na fornalha ardente, da loucura de Nabucodonosor, de Daniel jogado à cova dos leões e da visão do Ancião de Dias.
A terceira parte, dos capítulos 8 a 12, escritos em hebraico, expõe revelações surpreendentes de Deus, em linguagem simbólica, a respeito do povo judeu, interpretadas principalmente por Gabriel, as quais vêm ampliar e desenvolver certas noções esboçadas já na primeira secção; contudo, agora, em linguagem decididamente apocalíptica. São seus expoentes profecias como a das 70 semanas proféticas como o tempo determinado por Deus para o cumprimento da missão do Messias em favor de Israel (capítulo 9) e do livramento final de todas as tribulações no fim dos tempos (capítulo 12). Abrangem o futuro próximo e distante, ainda que por vezes os mesclem. Por exemplo, as profecias dos capítulos 8 e 11, de acordo com muitos comentaristas, podem tanto referir-se a Antioco Epifânes e sua profanação ao templo, em 160 a.C., quanto ao anticristo do fim dos tempos (veja-se 8.23-26; 11.36-45. Comparar com Ap 13.1-10). As adições apócrifas, escritas em grego e posicionadas como os capítulos 13 e 14 do livro, contém as histórias da casta Susana, de Bel e o Dragão (ou Serpente, segundo alguns), e , novamente, de Daniel na cova dos leões. Também ao capítulo 3, a partir do versículo 24, foram incluídos a Oração de Azarias (vv. 26 a 45), um Interlúdio em prosa (vv. 46 a 51) e o Cântico dos Três Jovens (o “Benedicite Omnia Opera”, nos vv. 52 a 90).
1.7. Esboço
Passamos a transcrever aqui um esboço temático detalhado do livro de Daniel, o qual nos pareceu ser o mais adequado para o nosso presente estudo.
I. Prólogo: O Contexto (cap. 1; em Hebraico)
A. Introdução Histórica (1.1-2)
B. Daniel e seus amigos são levados cativos (1.3-7)
C. Os jovens e sua fidelidade (1.8-16)
D. Os jovens são elevados a altas posições (1.17-21)
II. Visões das Nações do Mundo e do Reino de Deus (caps. 2 a 7; em Aramaico, começando do v. 2.4b)
A. O sonho de Nabucodonosor de uma grande estátua (cap. 2)
B. Nabucodonosor faz uma imagem de ouro; seu decreto de que deva ser adorada (cap. 3)
C. O sonho de Nabucodonosor de uma enorme árvore (cap. 4)
D. Belsazar e a queda de Babilônia (cap. 5)
E. A libertação de Daniel (cap. 6)
F. O sonho de Daniel a respeito das quatro bestas (cap. 7)
III. Visões do Futuro e do Filho do Homem (caps. 8 a 12; em hebraico)
A. A visão de Daniel de um carneiro e um bode (cap. 8)
B. A oração de Daniel e a visão das 70 “semanas” (cap. 9)
C. A visão de Daniel sobre a direção de Deus para o futuro (caps. 10 a 12)
1. Revelação de coisas por vir (10.1-3)
2. Revelação do mensageiro angelical (10.4-11.1)
3. Profecias concernentes a Pérsia e à Grécia (11.2-4)
4. Profecias concernentes ao Egito e à Síria (11.5-35)
5. Profecias concernentes ao anticristo (11.36-45)
6. Aflição e libertação (12.1)
7. Ressurreições para a vida (12.2-3)
8. Instrução a Daniel (12.4)
9. Conclusão (12.5-13)[14]
CAPÍTULO 2
As Diferentes Interpretações da Profecia das Setenta Semanas
A profecia daniélica concernente às Setenta Semanas, assunto deste trabalho, recebeu, durante toda a história da exegese judaico-cristã um bom número de interpretações diferentes, se considerarmos, a partir de cada uma delas, suas principais variantes. Neste capítulo, passaremos a uma exposição das principais tentativas de interpretação da mesma para, no capítulo seguinte, apresentar aquela interpretação particular que nos parece ser a mais sensata e consoante ao texto bíblico.
2.1. A Interpretação Histórica
Defendida pela maioria dos intérpretes modernos, foi trazida à luz por estudiosos como Eichorn, Bertholdt, von Leng, Maurer, Ewald, Hitzig, Bleek e Wiseler - existem, contudo, precedentes na exegese judaica. Segundo este ponto de vista o escritor do livro, do segundo século a.C., estaria convencido de que o conflito que o povo judeu de sua época estava enfrentando era um prelúdio ao cumprimento das promessas de Deus, encontradas, p.e., em Isaías 40 a 55. Desta forma, o terminus a quo da profecia, como veremos em seguida, teria datas variadas segundo a interpretação particular de cada estudioso, tendo, contudo, como ponto de referência a destruição de Jerusalém em 587 a.C.; e o seu terminus ad quem situar-se-ia na época do próprio autor pseudepígrafo, do período macabeu. As adições da Septuaginta ao texto hebraico e muitos escritos rabínicos parecem corroborar tal interpretação. Deus estava pronto para a agir e queria que seu povo fosse encorajado a suportar o sofrimento, já que se tratava de um tempo limitado. Uma maneira de proclamar essa mensagem era fazer uso da profecia de Jeremias sobre os setenta anos, multiplicando-a para torná-la “setenta vezes sete” (uma interpretação possível para o termo hebraico “semana”), dos quais sessenta e nove setes já haviam passado. A divisão em sete setes é interpretada de vários modos, mas cobre o período babilônico, sendo que o “ungido, um príncipe”, é por uns identificado como Ciro e por outros como Josué (veja-se Ed 3.2; Ag 1.1; Zc 3.1). Os sessenta e dois setes cobrem o período até 171 a.C., quando o então sumo-sacerdote Onias foi assassinado, representando então o último sete o breve tempo antes que venha o fim e Deus vindique o que é seu. A restauração do Templo em 164 era símbolo desta vitória. Toma-se, a partir deste ponto-de-vista, que as semanas, ou setes, querem representar anos, e que os números devem ser entendidos literalmente. O fato de eles não se encaixarem perfeitamente deve-se ao conhecimento histórico um tanto vago do autor. Contudo, se encarada desta forma, não pode em momento algum ser caracterizada como profecia, haja visto que se trata de um relato da história dado após os acontecimentos relatados, uma vaticinia ex (ou post) eventu. Mesmo que escrita como se se referisse ao futuro, tratava-se de uma “história conhecida expressa sob a forma de profecia, e pode muito bem ser que os leitores mais instruídos do livro estivessem perfeitamente cientes do fato”.[15] Assim, considerar o livro como profecia é falhar ingenuamente em compreendê-lo.
O autor de 1 Macabeus, escrevendo pelo fim do segundo século a.C., descreveu a profanação do altar do Tempo por Antíoco, em 167, como uma “abominação da desolação” (veja-se 1 Macabeus 1.54; cf. com Dn 9.27). O engano que representava a esperança de um livramento imediato não impediu o autor de ver um cumprimento das palavras de Daniel neste evento, mas isto não significa necessariamente que ele tenha abandonado a esperança última da vitória que o livro de Daniel proclamou.
Desde Eichorn tal teoria transformou-se numa espécie de “ortodoxia liberal”. Defendem-na escritores como J.A. Montgomery, E.W. Heaton, N.W. Porteous e muitos outros, inclusive F.F. Bruce, Driver, Zoeckler e Stuart. Delitzsch e Hoffmann também,
but with the essential modification, that Hoffmann and Delitzsch have united an eschatological reference with the primary historical reference of vers. 25-27 to Antiochus Epiphanes, in consequnece of wich the prophecy will be perfectly accomplished only in the appearance of the Antichrist and the final completion of the kingdom of God at the end of the days[16].
Flávio Josefo afirmou referir-se à destruição de Jerusalém pelos romanos, em 70 A.D., tendo sido seguido por exegetas judeus da época de Jerônimo. Saadia Gaon e outros, porém, a modificaram. Ainda, Julius Hilarianus, no século IV, negou o caráter messiânico e afirmou haver 434 anos entre o retorno dos judeus à Palestina até Zorobabel e Antíoco, num erro óbvio.
Algumas “cronologias” apresentadas por estudiosos com o objetivo de fixar as datas exatas do cumprimento da profecia são dignas de nota. Maurer, p.e., afirmou que as sete primeiras semanas cobrem o período entre a destruição de Jerusalém em 588 a.C. até ao edito do imperador Ciro, em 538; as 62 seguintes vão de Ciro ao período dos Selêucidas, em 176 a.C., e a última, até Antíoco. Hitzig concorda com Maurer no que se refere às sete primeiras e à última, mas afirma que as 62 intermediárias estendem-se de Ciro, em 539, até a morte do sumo-sacerdote Onias III sob Menelau, em 170. Behrmann, por sua vez, afirma que as sete primeiras vão de 606 a.C., ano provável da deportação de Daniel e seus amigos, até 558, ano da ascensão de Ciro ao poder. Em seguida, faz um a regressão afirmando que as 62 intermediárias vão de 606 a 171, ano da morte de Onias, e a última, de 171 a 165 ou 164 a.C., o ano em que os cultos foram reiniciados no Templo. Assim, as aplicações cronológicas da profecia à história não ocorrem em 70 mas em 63 “semanas”. Por fim, temos a interpretação de Prince, quando afirma que as sete primeiras semanas vão de 586 a 537 a.C., identificando o “Messias Príncipe” com Josué, filho de Jozadaque (veja-se Ed 3.2); as 62 seguintes estendem-se de 537 até 174, ano da deposição de Onias sob Jason, sendo que o erro na cronologia é devido à ignorância do suposto autor, do período macabeu, em relação à cronologia do período persa. As sete últimas encerram-se com a restauração do culto no Templo em 164 a.C.[17].
Tal interpretação histórica está parcialmente correta em ver um cumprimento inicial ou primário da profecia de Daniel no segundo século a.C., “mas confinar o seu significado a este período é fechar os olhos ao testemunho de Jesus e dos escritores do Novo Testamento em geral, de que ela também tinha uma significação futura”[18].
2.2. A Interpretação em Qumram
Até agora não se descobriu um comentário de Daniel entre os manuscritos de Qumram, mas encontra-se na Regra de Damasco, 1.5-11, um uso de números com um propósito similar:
E no tempo da ira, trezentos e noventa anos depois de Ele tê-los entregue nas mãos do rei Nabucodonosor de Babilônia, Ele os visitou, fazendo com que uma raiz brotasse de Israel e Arão para herdar a sua terra e prosperar nas coisas boas de sua terra. E eles perceberam a sua iniquidade e reconheceram que eram homens cheios de culpa, contudo, por vinte anos foram como cegos tateando para achar o caminho[19].
O número 390 é evidentemente inspirado em Ez 4.4-5, onde representa os anos durante os quais Israel terá que carregar a sua culpa. F.F. Bruce e A. Mertens não o tomam historicamente, antes o consideram em termos esquemáticos. Bruce vai mais longe: mostra como, acrescentando-se vinte anos de espera, quarenta para a vida do Mestre e quarenta que deveriam transcorrer após a sua morte, os 390 anos de Ezequiel podem ter sido incorporados aos 490 de Daniel, interpretando assim para a época deles o prometido fim dos maus. Se Bruce está correto, os intérpretes mais antigos do texto a cuja obra temos acesso entenderam os números esquematicamente e não em termos aritméticos. Eles estavam convencidos do status canônico de Daniel e criam que os setenta “setes” se aplicavam à sua própria época, e que o fim estava próximo.[20]
2.3. A Interpretação Messiânica Tradicional:
A Interpretação Judaica influencia o Cristianismo Primitivo
O historiador judeu Flávio Josefo, escrevendo o seu relato da destruição de Jerusalém, faz alusão, como vimos, a uma dupla aplicação de Dn 9.27. Tendo destacado que Daniel escreveu sobre os sofrimentos da nação sob Antíoco Epifânes, prossegue: “E da mesma maneira Daniel escreveu também com relação ao governo romano, e que a nossa terra haveria de ser feita por eles uma desolação”[21]. Sua interpretação da queda de Jerusalém com o fim das setenta semanas tornou-se ensino padrão entre os judeus, passando assim para a exegese cristã. Somente pelo fim do segundo século, com estudiosos como Agostinho, os exegetas cristãos começaram a computar os setenta “setes”, ou semanas, de modo a fazê-los terminar na primeira vinda de Cristo - por isso, é “messiânica” no sentido mais próprio do termo. Os números foram tomados de maneira simbólica. Contudo, havia muitas variações em detalhes. Três e meia semanas mais comumente indicavam o fim do ritual judaico ou a morte de Cristo. As restantes três e meia eram muitas vezes relacionadas vagamente ao período do Anticristo. A influência da tradução de Jerônimo para “um ungido, um príncipe” (9.25) por ad Christum ducem ainda permanece na nota da Bíblia de Jerusalém como “Ungido, ou Messias”.
Concordam os defensores desta interpretação que o terminus a quo da profecia seja o edito de Ciro, e seu terminus ad quem, como dissemos, é o primeiro advento de Cristo. Além, disto, segundo esta teoria notam-se
two uneven segments of time as foretold in v. 25 and 26 (with no “gap” or “parenthesis”) prophesies Christ’s death, as well as the Roman destruction under Titus of Jerusalem and the temple, while v.27 foresees the cessation of the Levitical sacrifices as a result of His death in the middle of the seventieth “week”. The destruction of the temple will continue until the end at God’s good time.[22]
Esta interpretação messiânica ainda é bastante popular, sendo representada principalmente por comentaristas como Hengstenberg, Auberlen, o católico Laur Henke, Haevernick, , Wilson, Pusey, C.H.H. Wright e E.J. Young.
2.4. A Interpretação Típico-Messiânica da Igreja Cristã
Nos Evangelhos Jesus faz referência às setenta semanas de Daniel somente nos termos da “abominação da desolação” (veja-se Mt 24.15; Mc 13.14), que é o sinal da próxima destruição de Jerusalém, que se cumpriu no ano 70 A.D. Para Ele o significado da expressão não foi esgotado pela sua aplicabilidade às afrontas de Antíoco Epifânes. O livro de Apocalipse, por sua vez, retoma o simbolismo da “metade da semana”, expresso em 11.2 como quarenta e dois meses, durante os quais a cidade santa é pisada aos pés; e em 13.5 a besta tem autoridade por um período idêntico. Se este livro foi escrito, como a maioria dos estudiosos o afirma, após a queda de Jerusalém, então temos aqui uma aplicação posterior da nossa passagem a um fim dos tempos que, obviamente, ainda não ocorreu. Assim, o Novo Testamento positivamente encoraja o ponto-de-vista de que, embora hajam eventos neste ínterim que demonstram a verdade das imagens usadas, ela tem a sua perspectiva voltada para adiante, para uma culminação ao fim da história.[23]. De uma maneira mais geral os escritores do Novo Testamento pareciam estar convencidos de que o ministério de Jesus marcava o início da realização do reino que haveria de vir e que foi anunciado no livro de Daniel e do fim dos tempos (veja-se 1co 1..11; Hb 1.2; 9.26; 1 Pe 1.5).
E é sobre estes fundamentos que vários Pais, como Hipólito e Apolinário de Laodicéia, e outros tantos teólogos modernos, à parte da interpretação messiânica tradicional, desenvolveram uma teoria de interpretação escatológica da profecia, “as an announcement of the development of the kingdom of God from the end of the Exile on to the perfecting of the kingdom by the second coming of Christ and the end of the days”[24]. Kliefoth, em seu Commentary on Daniel, de 1868, foi o primeiro a tentar comprova-la exegeticamente. Leyrer e Leupold seguiram-no. De modo geral, os exegetas cristãos interpretam os “setes” ou semanas como números simbólicos. O terminus a quo da profecia é o edito de Ciro, em 538 a.C.; mas, tendo em vista que reportam o terminus ad quem da profecia de forma muito superior à primeira vinda de Cristo até aos últimos dias, até a época do anticristo, afirmam que termos como “retorno” e “reconstrução” possuem um significado superior ao literal, ou seja: como primeiro significado, temos o retorno dos judeus à Palestina e a reconstrução de Jerusalém: como significado neotestamentário, temos o retorno dos homens a Deus através de Cristo e a reconstrução do relacionamento pessoal e até social com Deus através da pregação do Evangelho. Afirma-se, contudo, que esta interpretação “tries to accommodate some modern historical sensitivities without compromisse of conservative principle”[25]. Cristo permanece central, “but extends the Christological principle both backward (typology) and forward (ecclesiology)”[26].
De todas as tentativas de interpretação anteriores, esta é a menos preocupada com a numerologia. Rompe totalmente com o pensamento em termos de hebdômadas, presente na interpretação messiânica, e raciocina apenas em termos de “heptads”, ou seja, números puramente simbólicos, “sete” ou múltiplos dele.[27] Assim, as primeiras sete “heptads” estendem-se do edito de Ciro até Cristo, o “príncipe ungido”; as 62 seguintes denotam evidentemente um período muito mais longo, no qual, como vimos, o evangelho será pregado em meio a tribulações. Na última metade da última “semana” Cristo e sua igreja perderão virtualmente toda a sua influência e prestígio externos e, no lugar de Cristo, um desolador, um anticristo, um antítipo de Antíoco Epifânes destruirá “a cidade e o santuário”, isto é, a igreja visível, proibindo todo louvor e fazendo à força um acordo de terror com “muitos”. Mas seu fim também está decretado e na última metade da semana os propósitos eternos de Deus finalmente e eternamente serão consumados.
2.5. A Interpretação Parentético-Milenista
Trata-se da tentativa de interpretação mais recente da profecia daniélica. Partem do princípio de que todos os eventos descritos na perícope não referem-se propriamente à obra redentora de Cristo, mas, por outro lado, são um sumário de todos os fatos mundiais até o fim dos tempos. Ironside, um de seus principais defensores, afirma em sua obra The Great Parenthesis, de 1943, que o terminus a quo das setenta semanas encontra-se no vigésimo ano de Artaxerxes, ou seja, em cerca de 445 a.C. (veja-se Ne 2). O período das sete primeiras semanas refere-se aos 49 anos durante os quais Jerusalém fôra reedificada, após o Exílio e o retorno dos judeus à Palestina. As 62 semanas seguintes começariam imediatamente e chegariam ao fim, como a maioria dos teoréticos desta corrente defendem, na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém no Domingo de Ramos, depois da qual, durante uma semana literal, o Messias foi exterminado. As promessas feitas no v. 24, entretanto, não foram cumpridas no primeiro advento de Cristo, pois “Israel did not recognize their Mesiah. They do not know Him yet as their Sinbearer. Their transgression has not been finished”[28].
A septuagésima semana não haveria de seguir as 62 semanas intermediárias imediatamente. Entre a sexagésima nona e a septuagésima semanas ocorre o “Grande Parêntesis”, no qual vivemos, estendendo-se já por mais de dezenove séculos. A septuagésima semana tem sido “suspensa” por Deus mesmo, que é capaz de mudar os tempos e as estações por causa da transgressão das pessoas, para dar lugar à “church age, not revealed to the prophets”[29]. Afirma Ironside:
As I have put it elsewhere, though some have objected to the expression, the moment Messiah died on the cross, the prophetic clock stopped. There has not been a tick upon that clock for nineteen centuries. It will not begin to go again until the entire present age has come to an end, and Israel will once more be taken up by God.[30].
Antes do fim do grande “Parêntesis” ocorrerá o chamado “Arrebatamento da Igreja”. Então aparecerá o grande líder neo-romano, o Anticristo, o “príncipe” do v. 26, pretendendo, a princípio, parecer amigo dos judeus. Ele fará um acordo com a nação por sete anos, prometendo-os proteção e liberdade religiosa conforme retornam para sua própria terra, a Palestina[31]. Reconstruirá o templo e dar-lhes-á oportunidade para reiniciar os sacrifícios e o culto levítico, conforme Ez 40 a 48. Na metade da septuagésima semana, ou seja, ao fim de três anos e meio, ele quebrará o acordo e fará com que cesse o culto judaico. Seguir-se-á, no restante da semana, a “Grande Tribulação”, ou o tempo da “tribulação de Jacó”, após o qual Cristo virá, com toda a igreja triunfante, para reinar com seus santos por mil anos[32], após, como descrito no v. 27, ter sido eliminado este “príncipe”. Essencialmente esta posição foi adotada também por Gaebelein, sendo muito popular hoje. Pode mesmo ser enquadrada como uma espécie de interpretação messiânica.
Está evidente que uma hermenêutica truncada e até certo ponto racionalista é empregada na defesa desta teoria. Contudo, como Hummel afirma,
perhaps the best that can be said for it is that it is both Christocentric and eschatological in its own way, but functionally it is to be feared that it diverts attention to a literalistic preocupation with details that finally clashes with the New Testament’s own interpretation of the prophecies in question[33].
CAPÍTULO 3
A Correta Interpretação de Dn 9.24-27
3.1. Considerações Preliminares
Antes de passarmos à análise do texto em questão, cremos que algumas considerações preliminares fazem-se necessárias.
Inicialmente, observamos no texto de Daniel que a revelação a respeito das setenta semanas não é dada de forma direta por Deus, mas, como aquele mesmo escreve, através do “homem Gabriel, que eu tinha presenciado na minha visão ao princípio” (veja-se 8.16). Tal fato novamente vem reforçar a unidade de autoria com o capítulo anterior, o qual, por sua vez, liga-se ao capítulo 7 (veja-se 8.1), refutando desta maneira a opinião daqueles que defendem que tais capítulos tenham sido escritos em épocas diferentes.
A revelação ocorre em conexão com o estudo de Daniel a respeito dos setenta anos de cativeiro da nação israelita “de que falara o Senhor ao profeta Jeremias” (9.2). Ocorreu no “primeiro ano de Dario, o Medo” (veja-se 9.1), que provavelmente é também o primeiro ano de Ciro na Babilônia, ou seja, 538 a.C. A esperança surgida pela ascensão de Ciro aparentemente levou o profeta a procurar esclarecimento nas Escrituras, nos “livros santos”, sobre a duração próxima do exílio. Aconteceu “à hora do sacrifício da tarde”, ou seja, à meia-tarde. Isso demonstra que as horas regulares também eram lembradas no exílio (veja-se 6.10; Sl 141.2), pois mesmo distante de Jerusalém, onde os sacrifícios eram oferecidos, Daniel dirige a Deus a oração presente nos vv. 4 a 19, em favor de seu povo. Tal oração é uma marcante confissão de pecados e uma petição pela sola gratia de Deus, contrastando a justiça de Deus com a “confusion of faces” do homem[34]. O versículo 11 faz referência à “maldição e imprecações que estão descritas na lei de Moisés” (veja-se Lv 26.14-25; Dt 28.15-68; 2 Rs 22) como a causa da atual circunstância trágica em que se encontra o povo. O versículo 19 é comumente considerado o Kyrie eleison do Antigo Testamento.
Está presente no texto uma forte ênfase na resposta instantânea à oração de Daniel: por ser ele “mui amado”, “no princípio” das suas súplicas “saiu a ordem”, a rb'd, decreto ou oráculo divino, comparável à “saída da palavra” em Is 55.11. Todos estes preparativos indicam que o autor concedia grande importância ao seu descobrimento e à sua mensagem. Mas tal oráculo necessitava de estudo para ser interpretado. Afirma Lacoque: “Uma das contribuições mais importantes do livro de Daniel é a sua nova insistência na ligação entre fé e inteligência”[35]. Sabedoria e entendimento eram um dom (veja-se o v. 22), mas Daniel é exortado a “considerar a cousa e entender a visão” (23) - e tal convite ao entendimento ele acaba por repassar ao leitor, estabelecendo as posições equivalentes entre o anjo e ele próprio, Daniel, e ele próprio, Daniel, como narrador da visão, e o leitor do texto. À luz do que segue, “visão” pode parecer uma palavra estranha, pois no contexto ha,r>M; bem como !Azoox; no versículo 21 referem-se ao que se ouve e não ao que é visto, o que indica que ela tenha adquirido um sentido geral, significando “revelação” (veja-se Ob 1.1; Na 1.1).
Se a sua oração foi ouvida, então o período do exílio chegaria ao fim, e a casa e a cidade de Deus seriam reconstruídos. O oráculo, contudo, mira ainda mais longe. Daniel entende Jeremias 25.11-12 e 29.10 num primeiro nível de significado. “However, the precise import of even that first level of meaning is not altogether certain”[36], já que parte de seu significado era simbólico (ou seja, 10 multiplicando 7, ambos símbolos de plenitude). Tal significação simbólica captada por Daniel
it is in no fundamental discontinuity with the phrase’s first level of meaning. We may fruitfully employ the label “typological” again to summarize the relation between the two levels of meaning: Israel’s historical seventy-year captivty in Babylon is a type of or implicitly predictive of suprahistory, of future experiences of the people of God. The people will again have to pass trough great trials before a corresponding deliverance comes to pass[37].
Desta maneira, do ponto de vista da exegese, o problema básico está não em calcular a significação exata das semanas, mas sim em determinar o terminus a quo e ad quem, no segundo nível de interpretação tanto quanto no primeiro. Mas as grandes questões, como sempre, são questões de hermenêutica ou de pressuposição. Muitos têm indicado a interpretação do livro todo de Daniel e desta profecia particularmente como prova de fogo para testar a ortodoxia de um teólogo.
Previamente preparados pela discussão a respeito das diferentes teorias de interpretação da profecia de Daniel e das considerações preliminares acima, julgamo-nos aptos a realizar a discussão que segue. Em tal procedimento procuraremos analisar isoladamente e de maneira sintética os quatro versículos, de números 24 a 27, que constituem a profecia a respeito das setenta semanas, nos moldes propostos por Keil: “first of all to ascertain the meaning of the words of each clause and verse, and then, after determining exegetically the import of the words (...) to take into consideration the historical references and calculations of the periods of time named”[38]. Não é nosso objetivo, contudo, realizar aqui uma aprofundada exegese no sentido próprio do termo, mas sim um estudo analítico capaz de estabelecer aquilo que se pode extrair de verdadeiro e seguro na profecia, e refutar aquelas elementos errôneos nas demais teorias de interpretação.
3.2. Versículo 24:
O Anúncio das Setenta Semanas
%T;x.n< ~y[ib.vi ~y[ibuv' 24
[v;P,h; aLek;l. ^v,d>q' ry[i-l[;w> ^M.[;-l[;
ÎtaJ'x;Ð ¿tAaJ'x;À Î~teh'l.WÐ ¿~Tox.l;WÀ
~Tox.l;w> ~ymil'[o qd,c, aybih'l.W !wO[' rPek;l.W
`~yvid'q' vd,qo x;vom.liw> aybin"w> !Azx'
O versículo 24 é uma revelação divina do fato de que foi decretado um período definido de tempo para a realização de tudo o que é necessário para a restauração real do povo de Deus da escravidão, ou seja, as “setenta semanas”. Literalmente, significam “setenta setes”. A palavra hebraica ~y[ibuv', comumente traduzida por “semana”, é colocada primeiro na expressão ~y[ib.vi ~y[ibuv' com o objetivo de dar ênfase, pois o numeral geralmente é posposto ao substantivo, e não o contrário. A idéia pode ser parafraseada como: “setes, e de fato setenta deles estão decretados...”[39].
Não está claro o motivo porque Daniel usou ~y[ibuv' no masculino plural, quando na verdade o plural da palavra é, morfologicamente, feminino. A única ocorrência extraordinária do termo aparece no livro do profeta Ezequiel, capítulo 21, versículo 28, tA[buv. y[ebuv., significando “grupos de sete”. Contudo, não se pode dizer que tal uso incomum tenha acontecido porque Daniel seja um escritor recente, ou porque a forma masculina soaria mais semelhante ao equivalente a “setenta”. A forma, na realidade, é um particípio que pretende significar “besevened”[40], ou seja, “computado por setes”; o que levou Daniel a usar a forma masculina, crê-se, seja o deliberado propósito de chamar a atenção ao fato que a palavra ~y[ibuv' está sendo usada num sentido não usual. Assim, deve-se entendê-la como significando “dividido por setes”, cujo equivalente mais lógico seja a semana, como em Gn 29.27s e D10.2,3. Contudo, aqui não se expressa a duração de tais “setes”; o número é entendido, segundo a explicação de Kliefoth, como “an intentionally indefinite designation of a period of time measured by the number seven, whose chronological duration must be determined on other grounds”[41] mas parece ser uma referência, não literal, aos “anos” da profecia de Jeremias. Hummel, colaborando com tal perspectiva, propõe que tais “setes” devam ser entendidos como “heptads”, ou seja, “some indeterminate ‘seveness’”[42]. Por isso mesmo, o breve período de 490 anos defendido por algumas das teorias de interpretação citadas anteriormente não são suficientes para a consecução das necessidades da profecia. Além disso, vimos anteriormente que a literatura apocalíptica do Antigo Testamento e esta perícope, por inclusão, surgiram em momentos históricos angustiosos com o propósito de fornecer conforto aos israelitas. Neste contexto, perguntamos: que tipo de conforto poderia dar tal profecia, decretando, tão-somente, que após um período de reconstrução e restabelecimento relativamente breve do povo na Palestina haveria de sobrevir outra destruição da cidade santa e do santuário, como vemos no versículo 26?
Uma outra opção que temos à nossa disposição é compreender de maneira geral a numerologia de Daniel como simbólica do cumprimento definitivo, como já nos referimos no início desta secção, do projeto redentor de Deus dentro do tempo. A ênfase, assim, está na dinâmica redentora do texto, não em “tempos e estações”. Tal é precisamente o impulso do versículo 24, introduzindo a perícope inteira.
O verbo seguinte, %T;x.n, “está decretado”, mostra que a frase deva ser entendida num sentido coletivo, como se se dissesse: “Um período de setes - setenta deles - está decretado”. As setenta semanas, assim, devem ser tomadas como uma unidade. “Está decretado” remonta a uma decisão judicial: é deus que decretou este período de tempo para a realização de suas propostas redentoras.
^v,d>q' ry[i-l[;w> ^M.[;-l[;, “sobre o teu povo e sobre a tua santa cidade”. Este “sobre” pode também ser entendido como “concernente”, como afirmou Maurer, excluindo assim uma interpretação que leve ao sentido de um débito legal. “Teu povo e sobre tua santa cidade” lembra-nos que Jerusalém, ainda que em ruínas, é a cidade santa em honra ao seu passado e ao plano de futuro que Deus tem para ela. Contudo, não é uma referência sectária, que excluiria dos propósitos de Deus os não-judeus. É verdade que a referência primária é dirigida a Israel e Jerusalém, mas desde que o versículo inteiro descreve a obra messiânica, esta passagem refere-se também ao verdadeiro povo de Deus, aqueles que seriam beneficiados pelos fatos aqui descritos.
A seguir, são descritos os resultados da ordem que haviam de ocorrer e que constituem a obra redentora de Deus, os quais “are to be accomplished before the expiry of the 70 sevens, although the blessings brought about thereby may continue for long after that expiry”[43]. Tais estão aparentemente divididos em resultados negativos e positivos. Lemos:
~Tox.l;w> ~ymil'[o qd,c, aybih'l.W !wO[' rPek;l.W ÎtaJ'x;Ð ¿tAaJ'x;À Î~teh'l.WÐ ¿~Tox.l;WÀ [v;P,h; aLek;l
`~yvid'q' vd,qo x;vom.liw> aybin"w> !Azx'
3.2.1. Os Resultados Negativos
Alguns entendem o primeiro resultado negativo, o “fazer cessar” da transgressão, [v;P,h; aLek, como “encerrar a transgressão”. Tal interpretação, contudo, não parece justificável. Segundo Hengstenberg,
the sin, which has hitherto lain naked and open before the eyes of the righteous God, will now be shut in, sealed up and hidden by the God of mercy, so that it may be regarded as no longer existing; a biblical mode of describing the forgiveness of sins, analogous to the phrases ‘hiding the face from sin’, ‘putting away sin’[44]
O segundo resultado, taJ'x; tAaJ'x ~teh'l.W ~Tox.l;, “para completar o pecado”, ou seja, para dar um fim ao pecado, pode ser lido como “selar sobre o pecado”, ou “afastar da vista” (segundo Kliefoth). A idéia, assim, é de que será providenciado um fim do pecado como tal.
O terceiro resultado negativo da profecia é “cobrir a iniquidade”, !wO[' rPek;l.W, afirma que o sacrifício propiciatório necessário para o cobrir-se dos pecados será oferecido e, portanto, o pecado será expiado e perdoado. Uma tradução que talvez melhor expressasse esta idéia seria “fazer reconciliação para a iniquidade”, iniquidade esta que aqui significa não um pecado em particular, mas a iniquidade em geral.
Em resumo, os três resultados negativos configuram o pecado como aquele que tem causado a separação entre o homem e Deus. Assim, a primeira proposta do decreto é eliminar esta separação. O texto não indica como tal se efetuará, mas à luz do Novo Testamento podemos ler estas palavras como referindo-se àquele sacrifício perfeito oferecido por Cristo, o qual, como escreve o autor da Epístola aos Hebreus, “se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado” (Hb 9.26b).
3.2.2. Os Resultados Positivos
O primeiro deles, “para trazer a justiça eterna”, ~ymil'[o qd,c, aybih'l, diz respeito não a uma justiça externa ou uma mera prosperidade, mas sim, a uma justiça que viria de Deus (veja-se Sl 85.11-13; Is 51.5-8), que surge como o Sol sobre aqueles que temem a Deus (veja-se Ml 4.2), e é similar à salvação eterna de Is 45.17. Portanto, compreende justiça tanto interna quanto externa, naquela situação de justificação ou do correto relacionamento com Deus, através da fé em Cristo.
O seguinte é “selar a visão e profecia”, aybin"w> !Azx' ~Tox.l;w, ou “o profeta”. Alguns crêem que a referência aqui é à profecia das setenta semanas, particularmente. Contudo, seu sentido é de “selar” a profecia de tal forma que ela não mais apareça, haja visto que suas funções estariam encerradas, não sendo mais necessária. Não trata-se de uma punição a Israel, mas sim, à constatação de que o ofício profético e a necessidade da profecia como tal são, em Cristo, encerrados.
Por fim, o terceiro resultado positivo é “ungir um santo de santos”, ou, literalmente, uma “santidade de santidades”, conforme lemos: ~yvid'q' vd,qo x;vom.l. A referência não é, como defendem os críticos, à dedicação do Templo construído por Zorobabel, mas, isto sim, ao ungir do Messias, haja visto que a palavra vd,qo ocorre sem artigo, significando “a coisa mais sagrada”. Assim, “the anointing of a Holy of Holies can only denote the communication of the Spirit to Christ, to which prominence is given in other prophecies of the Old Testament, as a distinguishin characteristic of the Messiah”[45] (comparar-se com Zc 4; 1 Sm 10.1ss; Is 61.1).
Os seis itens apresentados neste versículo são, notadamente, messiânicos, e referem-se não aos tempos de Antíoco, nem ao fim dos tempos, mas sim à obra propiciatória de Cristo, cumprida em seu ministério terreno, durante seu primeiro advento.
3.3. Versículo 25:
As Três Divisões das Setenta Semanas
tAnb.liw> byvih'l. rb'd' ac'mo-!mi lKef.t;w> [d;tew> 25
h['b.vi ~y[ibuv' dygIn" x;yvim'-d[; ~l;iv'Wry>
bAxr> ht'n>b.nIw> bWvT' ~yIn:v.W ~yVivi ~y[ibuv'w>
`~yTi[ih' qAcb.W #Wrx'w>
Daniel, como vimos, é convidado a “saber e entender”, não para “observar bem”. A expressão é equivalente ao “quem lê, entenda”, dos evangelhos, e indica que a mensagem dada é relativamente difícil e requer uma mentalidade bem treinada na compreensão das verdades espirituais.
rb'd' ac'mo-!m, “desde a saída da ordem”, faz referência à ordenança de Deus, não de um governador persa. Deus é o autor desta ordem, ou decreto: Ele próprio determinou a duração do tempo até que as coisas profetizadas no versículo 24 sejam completas. O termo é equivalente e relaciona-se à “saída da ordem” do versículo 23, que descreve a emissão de uma palavra divina. Parece-nos difícil, portanto, afirmar que aqui, dois versículos depois, outro sujeito possa ser introduzido sem qualquer menção ao fato. Esta emissão da ordem de Deus é, em si, um evento invisível, cujos efeitos devam aparecer sobre a face da terra. Como o povo israelita estava então sob o domínio do império persa, nós naturalmente esperaríamos encontrar um eco da ordem divina no edito de um monarca persa.[46].
Mas, então, em que momento nós podemos encontrar o povo israelita começando a retornar e reconstruir Jerusalém? Ou seja, qual seria o terminus a quo desta profecia? Houveram na história três “decretos” dignos de nota e apontados pelas diferentes correntes de interpretação como terminus a quo: o primeiro deles ocorreu em 587, quando da destruição de Jerusalém (liberais, de forma geral, defendem esta posição); o segundo, em 538, o edito de Ciro; e por fim, em 445, a permissão de Artaxerxes a Neemias para reconstruir a cidade (defendido pelos dispensacionalistas). Para nós, contudo, a “palavra” que “saiu” tornou-se evidente na história durante o primeiro ano de Ciro. Este parece ser o ano (aproximadamente 538 ou 537 a.C.), no qual o exílio chegou ao fim, e uma nova ordem de coisas foi instaurada. Segundo Dn 1.21, ele mesmo, Daniel, o grande estadista da corte Babilônica, permaneceu lá até o primeiro ano de Ciro. Este foi o ano da grande mudança na qual Israel estava envolvido. Também, este foi o ano em que o grande edito de libertação foi promulgado, o edito que marcou o término formal do exílio (veja-se Ed 1.1-4). Este edito, além do mais, realizou-se em cumprimento à profecia de Jeremias, e fala expressamente a respeito da ida dos israelitas e Jerusalém para reconstruir lá o templo, o primeiro e mais importante passo na reconstrução da cidade (compare-se a Is 33.28; 45;13; Ed 4.12; 9.9). Portanto, não pode ser negado que este foi o ano em que os efeitos da ordem divina passaram a ser vistos na história. E também não é justificável distinguir entre a reconstrução da cidade e a reconstrução do tempo, pois, certamente, se o povo recebeu permissão para retornar a Jerusalém para reconstruir o templo, tornava-se necessário que esta permissão incluísse a construção de casas nas quais haviam de morar. Assim, este primeiro ano de Ciro deve ser entendido como o terminus a quo da profecia. Concordam com esta posição estudiosos como Calvino, Kliefoth, Keil e Mauro.
~l;iv'Wry tAnb.liw> byvih'l, “para restaurar e edificar Jerusalém”. Estas palavras apresentam o propósito da ordem. Não querem significar “construir novamente”, pois as palavras “para restaurar” não podem ser tomadas com um verbo auxiliar significando “novamente”, mas, como Young aponta,
the words mean literally, to cause to bring back. The object of the verb is Jerusalem, thus, to cause to bring back (Jerusalem) and to build Jerusalem, i.e., to restore the city to its former condition. This does not necessarily include the complete restituition (as H argues), but merely the beginning of such restituition. The words to build, in distinction from to restore “denotes the building after restoring, and includes the constant preservation in good building condition, as well as the carrying forward of the edifice beyond its former state” (Keil)[47].
dygIn" x;yvim'-d[;, “até um ungido, um príncipe”. Estas palavras estabelecem o terminus ad quem das sete primeiras e das 62 semanas intermediárias (veja-se v. 26). Seu significado pode ser parafraseado por “até um ungido que é ao mesmo tempo um príncipe”. A expressão está aberta a mais que uma interpretação, porque os termos são mais vagos do que o leitor em português possa imaginar. No Antigo Testamento reis e sacerdotes eram ungidos, e aqui estamos diante de um que não é apenas um sacerdote, mas também um rei. Inclusive, a palavra empregada aqui para “príncipe” é dygIn", a qual significa basicamente “líder”, não sendo mais específica. O termo é usado novamente por Daniel em 11.22, onde pode representar tanto um rei como um sumo-sacerdote. A despeito disto, contudo, a referência, aqui, não pode ser aplicada a Ciro, como Driver afirma, haja visto que a referência feita a ele como “ungido” em Is 45.1 deva-se à “remarkabele relation which he sustained to the church, a relation unparalleled in history (...) on account of his possessing the first elements of the true knowledge of God, as his edict in the Book of Ezra clearly shows”[48] e à relação tipológica entre ele e o autor da uma libertação ainda maior, ou seja, o próprio Messias.
A maior parte dos críticos dividem-se em relação a este “príncipe ungido” entre Josué e Onias III. Contudo, por esta breve exposição, fica claro que quem é ele ou quando manifestou-se são questões que não podem facilmente ser resolvidos por qualquer conhecimento histórico que disponhamos. O fato é que apenas existe um na história que satisfez plenamente os dois requisitos essenciais de um rei teocrático, ou seja, Jesus, o Messias (veja-se Zc 6.13; Sl 110.4; Jo 4.25). Ele é o “ungido”, apontado como “príncipe” de uma forma mais superior a qualquer outro. Daniel, portanto, está olhando para aquele único que ao mesmo tempo foi tanto um ungido quanto um príncipe, Cristo, e, quando tal aparecesse, a profecia seria cumprida.
~yIn:v.W ~yVivi ~y[ibuv'w> h['b.vi ~y[ibuv, “sete semanas e sessenta e duas semanas”. Aqui temos expressa a duração de tempo entre o terminus a quo da profecia e a aparição de “um ungido, um príncipe”. Como consenso entre os comentaristas e exegetas, estas palavras representam a parte de mais difícil interpretação na profecia.
A pontuação massorética faz uma separação entre os dois períodos, h['b.vi ~y[ibuv e ~yIn:v.W ~yVivi ~y[ibuv'w, a qual foi seguida pela tradução de Almeida: “...até ao Ungido, ao Príncipe, sete semanas; e em sessenta e duas semanas...”[49]. Após a palavra equivalente a “semana” ou “sete” os massoretas incluíram um acento chamado athnach, o qual comumente, mas não sempre, marca a interrupção, a “quebra” principal em uma sentença. Tal acentuação não constava no texto original. Contudo, na expressão acima, ele deve ser considerado meramente como indicador não da divisão principal da sentança, mas sim de que “the two phrases are not to be connected, thus: ‘seven sevens - and sixty and two sevens’”[50]. Assim, é melhor entender o texto como afirmando que entre o terminus a quo e a aparição de “um ungido, um príncipe”, há um período de 69 semanas que divide-se em dois períodos de duração desigual, sete e sessenta e duas semanas.
Mas a que períodos fazem referência tais subdivisões? As sete semanas, aparentemente, fazem referência ao tempo decorrido entre a emissão da ordem e a restauração da cidade e do templo; as 62 subsequentes seguiriam este período. No versículo 25 as 62 semanas não estão caracterizadas, mas no 26 nós somos informados do que haverá de acontecer após elas. Assim, fazem referência ao período posterior a Esdras e Neemias, até a época de Cristo. Afirmam que a cidade reconstruída continuaria a funcionar como centro religioso de Israel quando a era messiânica começasse.
A idéia principal presente em tal divisão, contudo, é a ênfase de que Deus não realizaria seu plano de salvação universal de uma vez ou mesmo num futuro imediato. Assim, as setenta semanas totais são distribuídas em porções desiguais de eventos até o versículo 27. “This division of the symbolic total gave assurance that the redemption of mankind would take place in a historical setting but not before two distinguishable eras had run their course”[51].
#Wrx'w> bAxr> ht'n>b.nIw> bWvT',, segundo a tradução de Almeida, “as praças e circunvalações se reedificarão”. Hengstenberg prefere traduzir por “restaurada e construída é a estrada, e firmemente determinada”. Behrmann afirma que as palavras “estrada” e “circunvalação” sejam dois nomes próprios. Segundo ele, a “estrada” seria provavelmente aquela próxima ao Templo, e a “cincunvalação” ou “vale”, o vale de Tyropoean.[52]. Haja visto, porém, que a palavra equivalente a “circunvalação” apareça apenas aqui em todo o Antigo Testamento, seu significado fica incerto. O que talvez possa ajudar a esclarecer seu sentido exato seja sua aparição num escrito hebraico no Rolo de Cobre do Mar Morto, com o sentido de “conduto”. O mais importante, contudo, é que as duas palavras, tomadas juntas, apresentam uma imagem da restauração completa da cidade.
~yTi[ih' qAcb.W, “mas em aflição de tempos”. Caracteriza a opressão e oposição sofridas pelo povo de Deus durante os tempos de Esdras e Neemias (veja-se Ne 4.1ss; 6.1ss; 9.36,37). Kliefoth e Keil referem-se aqui à construção espiritual da cidade de Deus, a Igreja Cristã, que similarmente ocorreu - e ainda transcorre - em tempos de aflição.
3.4. Versículo 26
~y[ibuV'h; yrex]a;w> 26>
ry[ih'w> Al !yaew> x;yvim' treK'yI ~yIn:v.W ~yVivi
@j,V,b; ACqiw> aB'h; dygIn" ~[; tyxiv.y: vd,Qoh;w>
`tAmmevo tc,r,x/n< hm'x'l.mi #qe d[;w>
No versículo 25 Daniel expõe a característica distinguível das sete primeiras semanas, a saber, a reconstrução da cidade. Agora, no versículo 26, ele exibe a característica distinguível das sessenta e duas semanas subsequentes, ou seja, que este é o período que deve vir entre a construção da cidade e a morte de um ungido. Depois das 62 semanas, dois eventos estão para ocorrer: primeiro, a morte do Messias, e segundo, a destruição da cidade. Este versículo não afirma quanto tempo após as 62 semanas estas coisas ocorrerão, mas do versículo 27 nós extraímos que a morte do ungido ocorrerá na metade da septuagésima semana[53]. A ambiguidade deste texto, como vimos, é utilizada por milenistas para justificar a interpretação parentética. A destruição a cidade ocorrerá após expirarem as setenta semanas.
treK'y, “será cortado”, “será derrubado”, “será elimininado”, “será removido”, “será excluído”. O verbo trk é usado, no Antigo Testamento, no sentido de “cortar uma aliança”, ou “fazer um pacto”, um ritual que envolvia a morte de uma vítima sacrificial (veja-se Gn 15.10,18); era também freqüentemente usado para designar a morte de um modo geral ou para a penalidade de morte (veja-se Lv 7.20), referindo-se a uma morte violenta, a não ser que seja dada alguma explicação (p.e., eliminar da congregação de Israel). Aqui, a palavra significa “eliminar pela morte”.
x;yvim', “um ungido”. O artigo definido é omitido, intencionalmente, ao que parece, a fim de mostrar a identidade do ungido com aquele mencionado no versículo 25. A referência não pode ser a Onias III (como defendem Maurer e Driver). Tal interpretação está baseada sobre a interpretação errônea de que as sete semanas comecem ou em 606 ou 586 a.C., e, como vimos, ambas as datas são insustentáveis.
Ao lermos este trecho, somos lembrados da linguagem de Isaías: “ele foi eliminado da terra dos viventes” (53.8). Como afirma Hengstenberg, a palavra “ungido” é incompreensível quando tomada por si só, apenas podendo ser entendida em conexão com “um ungido, um príncipe” do versículo 25. O “ungido” é Jesus Cristo, eliminado através de sua morte na cruz do Calvário.
Al !yaew, “e já não estará”, ou, literalmente, “and there is not to him”[54]. Estas palavras são extremamente difíceis, mas elas parecem indicar que tudo aquilo que deveria propriamente pertencer ao Messias, ele não teria quando morresse. Esta é uma forma enfática de explanar sua rejeição, tanto da parte dos homens como da parte de Deus, que culminou com o “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”, no Calvário. Keil e Kliefoth, segundo suas teorias, pensam que a referência é ao tempo na história da igreja em que o pecado tornar-se-á tão influente que o próprio Messias perderá sua influência sobre o mundo, até mesmo seu status e função de Messias.
vd,Qoh;w> ry[ih'w, “e a cidade e o santuário”. Esta palavras são os objetos do verbo, colocadas em primeiro lugar para efeito de ênfase.
aB'h dygIn" ~[;, “povo de um príncipe (que) há de vir”. Em consequência à eliminação do Messias o povo de um príncipe vindouro destruirá a cidade e o santuário. As suas identificações variam desde a deposição selêucida de Onias e captura de Jerusalém, à crucificação romana de Cristo e a destruição da cidade, até eventos escatológicos perpetrados pelo anticristo. Contudo, este “príncipe”, como afirmou Tertuliano, não é Cristo, nem Antíoco[55]. É interessante observar que ele é descrito como um príncipe “que há de vir”, numa clara referência aos capítulos 7 e 8, onde ocorre a mesma variedade de interpretações. Contradizendo as muitas objeções que têm prevalecido contra tal interpretação da profecia, deve-se notar que os exércitos gregos não destruíram completamente a cidade de Jerusalém num sentido físico (veja-se 1 Mc 1.31ss). Mesmo Keil e Kliefoth relacionam as palavras ao anticristo. Entretanto, parece mais aceitável que o “povo” seja o império romano, e o “príncipe”, Tito Vespasiano. Sua invasão e conseqüente destruição de Jerusalém não seria ordinária, mas sim um julgamento de Deus causando a sua completa destruição. O verbo expressa uma ação futura e denota uma hostilidade em relação ao e do príncipe; ou seja, ele é um invasor, como no versículo 1.1. É relevante notar, também, que em Mt 24.15-27 Cristo descreve a destruição que ocorreria cerca de 40 anos após a sua crucificação como um julgamento comparável ao fim do mundo.[56]
@j,V,b; ACqiw, “seu fim será num dilúvio”. A palavra equivalente a “dilúvio” sugere um “dilúvio esmagador”, “catastrófico”. Naum 1.8 refere-se à “inundação transbordante” da ira de Deus. A questão aqui é: quem é o antecedente do pronome “seu”? Alguns afirmam ser o ungido, outros o príncipe. Hummel, apontando aqui uma clara tipologia ao Êxodo e ao faraó atribui-o ao anticristo, já que o faraó egípcio é um dos maiores e mais antigos modelos de anticristo.[57] Contudo, mas sensata e coerente ao texto é toma-lo como referindo-se ao fim da destruição como tal. Assim, Hengstenberg prefere traduzir: “and it will end in the flood”[58]. A destruição será de tal magnitude que terminará com um dilúvio gigantesco.
tAmmevo tc,r,x/n< hm'x'l.mi #qe d[;w> , “e até o fim (haverá) guerra; desolações (estão) (são) determinadas” retoma o tema da oração do versículo 18. O sentido geral está claro nesta secção final do versículo; contudo, o relacionamento preciso das palavras entre si é difícil de ser determinado. Até o fim da destruição guerra e desolação continuarão. E o final, acompanhado de guerra devastadora, é um tema que se impõe na literatura apocalíptica, inclusive às suas alusões nos evangelhos (veja-se, para tanto, Mt 24.7).Mas nós devemos ler: “e até o fim haverá guerra, desolações estão determinadas” ou “e até o fim da guerra, determinada com desolações”? Provavelmente devamos preferir a primeira alternativa. Como Keil afirma: “Till the end war will be, for desolations are irrrevocably determined by God”[59].
3.5. Versículo 27:
A Última Semana e o Final
ycix]w: dx'a, [;Wbv' ~yBir;l' tyrIB. ryBig>hiw 27
@n:K. l[;w> hx'n>miW xb;z< tyBiv.y: [;WbV'h;
%T;Ti hc'r'x/n<w> hl'K'-d[;w> ~mevom. ~yciWQvi
`~mevo-l[;
Na interpretação do versículo 27, a primeira questão que se levanta é: quem é aquele que “fará firme aliança”? Várias repostas tem sido oferecidas, oscilando desde um sujeito indefinido, o príncipe do versículo 26 - que tanto pode ser Antíoco, o Anticristo ou o “pequeno chifre” de Dn 7 -, a última semana, no sentido de que “uma semana confirmará a aliança com muitos”, e até o Messias, Jesus.
Esta última parece ser a interpretação mais plausível. Afirmar ao “príncipe” do versículo 26 como sujeito deste último não nos parece ser a leitura mais natural, pois a palavra ocupa apenas uma posição subordinada mesmo no v. 26, onde não é o sujeito da oração. A cidade e o santuário estão para ser destruídos não por um príncipe, mas pelo “povo de um príncipe”. Além disso, como vimos, a expressão “e seu fim” não se refere ao fim do príncipe, mas ao fim da destruição como tal. Por isso, parece-nos inviável que tal príncipe, no versículo 27, venha a fazer uma “firme aliança”.
Além do mais, toda esta perícope é messiânica por natureza, e o Messias é o seu agente principal Seu aparecimento, no versículo 25, representa o grande terminus ad quem das 69 semanas. E, nas palavras de Young,
In vs. 26 two principal themes are introduced: 1) the death of the Messiah and 2) the consequent destruction of the city and sanctuary by a people of a prince (not the prince) who will come. In this vs. therefore, the principal characters are the Messiah and the people - not the prince.[60]
tyrIB. ryBig>hiw,, “ele fará firme aliança” ou, como propõe Young, “he shall cause to prevail a covenant”[61]. A expressão normalmente usada no hebraico para expressar tal idéia é “cortar uma aliança”, e esta não é a usada aqui. Por que, então, o escritor, querendo transmitir a idéia de que um acordo seria feito, não usa a expressão regular de sua língua? Por que usa esta construção tão estranha, encontrada no Antigo Testamento apenas em uma outra passagem (Sl 12.4)? Mais uma vez, nós podemos concluir que é um erro afirmar que estas palavras falam a respeito de um acordo feito para durar sete anos, e inferir ao texto que o que faz o acordo não possa ser o Messias, cujo “acordo” é um acordo eterno. A referência, portanto, não é ao estabelecimento de um acordo, mas ao acordo que já foi feito. Hummel expressa tal idéia da seguinte forma: “The Hebrew, wich literally says that he shall cause a covenant to be strong or to prevail, seem to imply that it is not a new covenant, but the confirmation and implementation of one already in existence”[62]. Desta forma excluem-se as interpretações que apontam para Antíoco e sua parceria com os líderes judeus, bem como a visão de Kliefoth, que aponta aqui para o Anticristo que fará um acordo com as multidões que tiverem seus corações endurecidos, e, por fim, de que refira-se ao “pequeno chifre”, ao império romano, numa alusão ao capítulo 7 do livro.
De que forma, portanto, podemos afirmar que é o Messias que fará este acordo prevalecer com muitos? Cristo, durante seu ministério terreno, através de sua obediência ativa e passiva à Lei de Deus, cumpriu plenamente os termos daquele acordo feito com Abraão e seus descendentes. Assim, sobre a base de seu sacrifício e ressurreição, vida e salvação são gratuitamente oferecidas aos pecadores. E este é o sentido em que as palavras tyrIB. ryBig>hiw foram empregadas por Daniel, ou seja, o “cortar uma aliança com” (ou “para”) referir-se-ia ao “fazer a aliança”; o “fazer com que aliança prevaleça para” é o mesmo que “tornar uma aliança eficaz”[63]. E esta aliança, como afirma o texto, deveria prevalecer com muitos. Assim é apresentado um contraste entre “ele” e “muitos”, o qual parece relacionar-se com a grande passagem messiânica de Is 52.13-53.12, especialmente 53.11. Ainda que a nação inteira de Israel não receba a salvação, “muitos”, contudo, haveriam de recebê-la. A referência, aqui, parece ser aos cristãos israelitas à época da destruição de Jerusalém, quando a “nova aliança” tornou-se evidente por meio da destruição do templo e da extinção da comunidade judaica como nação[64].
[;WbV'h ycix]w, “e no meio da semana”. Tal frase não significa “e durante metade da semana”, mas sim no meio da semana, à época em que metade da semana esteja transcorrendo. Corroborando aquela primeira interpretação, Stuart afirma que por “meia semana” (3 anos e meio) Antíco suspendeu os rituais no Templo de Jerusalém. Se insistirmos na tradução “metade”, Stuart estaria correto. Contudo, deve-se notar que a palavra significa tanto “metade” quanto “meio”, e este último é o sentido intencionado aqui. A idéia, assim, não é de que os sacrifícios cessariam por metade da semana, mas sim, que haviam de cessar “ao meio” da semana.
hx'n>miW xb;z< tyBiv.y, “(ele) fará cessar o sacrifício e a oferta”, segundo o entendimento de Almeida, a “oferta de manjares”. O sujeito deste verbo é o mesmo daquele que o precede. Não é, pois, Antíoco, que suspendeu os rituais no Templo, nem Tito ou um príncipe do Império Romano “revitalizado” dos tempos do fim[65]. No contexto, torna-se insustentável a afirmação de Ironside, de que tal príncipe, “in the midst of the week he will violate the covenant and demand that all worship to Jehovah cease, and the Antichrist will be manifested in his true character”[66]. Após a análise anterior, parece-nos óbvio que o sujeito aqui é Cristo, o qual, por sua morte vicária, pôs um fim à necessidade dos sacrifícios e ofertas[67] vetero-testamentárias.
Tem-se objetado - e até mesmo com uma aparente certeza, observando-se o caráter externo, ritual - que o sacrifício de Cristo não deu fim aos sacrifícios judaicos. A Epístola aos Hebreus, contudo, afirma que, por sua morte, Cristo aboliu os sacrifícios do Antigo Testamento (veja-se, para tanto, passagens como Hb 7.11; 8.13; 9.25-26 e 10.8-9). É verdade que imediatamente após a morte de Cristo os sacrifícios não foram interrompidos. Entretanto, no momento de sua expiação, a cortina do Templo rompeu-se em duas, de cima a baixo, de tal forma que o Santo dos Santos foi aberto, indicando que os sacrifícios rituais judaicos já não podem mais ser considerados como legítimos. Após a sua morte, os sacrifícios continuaram sendo realizados até a vinda de Tito; contudo, sua cessação definitiva foi uma manifestação externa daquilo que já havia sido realizado através de sua morte.
~mevom. ~yciWQvi @n:K. l[;w>, “sobre a asa das abominações virá o assolador”. A lingugem desta passagem é particularmente difícil. Em primeiro lugar é necessário determinar o significado de “asa”. A palavra não significa, como propõe Bevan e Prince, “em seu lugar”, nem “sobre asas”, ou seja, que o príncipe assolador virá sobre “asas de abominações”. Tampouco é a referência feita às “asas” de um exército[68], ou à estátua de Zeus Olímpico, colocada no Templo de Jerusalém, na qual o deus grego estava representado sobre uma águia com suas asas abertas (veja-se 1Mc 1.54-59; 2Mc 6.2).
Aparentemente, a palavra refere-se ao pináculo do templo (do gr. pteru,gion, literalmente, “pequena asa”), o qual tornou-se tão execrável a ponto de não poder mais ser considerado como o Templo do Senhor, mas sim um templo idólatra, em vista de sua rejeição ao Messias.[69] A palavra “asa” é usada quando se quer referir à “orla do manto” (como em 1 Sm 15.27; 24.25), e à extremidade da terra (Is 24.16; neste caso, é geralmente utilizado no plural). É verdade, como afirma Keil, que em nenhum outro lugar o termo é usada a respeito do ponto mais alto de um objeto, Entretanto, parece ser este o sentido em que a palavra é usada aqui. A asa do templo, conforme lemos em Mt 4.5 e Lc 4.9, é cume do próprio tempo. Com a expressão “asa das abominações” é feita referência, ao que parece, ao pináculo do templo. Porém, em que sentido o templo pode ser descrito como “abominação”, ou “abominações”?
A palavra faz uma referência, em primeiro lugar, aos ídolos, à idolatria como tal, e implica algo imundo e asqueroso, de que as pessoas deviam se envergonhar (veja-se Os 9.10; Na 3.6). Na época de Tito, contudo, não foram erguidos ídolos no Templo. Desta maneira, a palavra deve ser usada figuradamente para descrever o culto no Templo depois de seu véu ter sido rasgado. Já não era mais a casa de Deus, mas sim uma casa de abominações, pois o verdadeiro culto a Iahweh havia terminado. Diz-se que o assolador virá “sobre a asa das abominações”, ou seja, ele vem sobre o cume do mais alto pináculo do Templo, significando assim a sua destruição última, já que pressupõe-se a tomada da parte mais alta do edifício como a tomada de posse de todo o resto. A referência histórica, portanto, parece ser a destruição da cidade por Tito, em 70 AD. Tal evento não deve necessariamente ser enquadrado dentro da 70ª semana, mas como consequência posterior à ação do Messias, quando este causou a cessação das ofertas e sacrifícios.
~mevo-l[; %T;Ti hc'r'x/n<w> hl'K'-d[;w> “até que o fim, que está determinado, se derrame sobre ele”. Almeida explicita ainda mais o sentido da palavra “fim”: utiliza, na tradução de hl'K o termo “destruição”. Parece-nos decisiva, na interpretação deste trecho final do versículo, aquela fornecida por Young. Young afirma que o “fim” aqui significa “final pleno”, “completo”, e, aliada a expressão “que está determinado”, deve ser encarado como o sujeito de “se derrame”. Afirma:
In my opinion the phrase that determined has reference to the full end, so that we might paraphrase as follows, “and until the full end which has been determined shall pour upon the desolate”. It is “a determined end”, cf. Isa. 10:23; 28;22, from wich the words appear to be taken. The desolate is not Titus, i.e., one who is made desolate, but rather is impersonal, that which is desolate, i.e., the ruins of the Temple and city (...) Thus, since the Messiah has caused sacrifices and oblation to cease, there comes a desolator over the temple, and devastation continues until a full, determined end pours forth upon the desolation.[70]
Nossa interpretação a respeito deste “fim pleno”, contudo, não deve estancar aqui. Como vimos, é característica da literatura apocalíptica do Antigo Testamento, e de Daniel, em particular, a existência de um sentido “secundário”, superior ou tipológico ao próprio texto. Tal “segundo” sentido pôde ser observado em vários outros elementos da profecia, e aqui ocorre o mesmo. Desta forma, podemos inferir do texto que o fim decretado refere-se ao eterno conselho de Deus, corroborando com isto o fato de que aqui nada é dito a respeito da época exata deste fim - nem a respeito do terminus a quo da profecia as referências são satisfatoriamente claras, como apontou Jeske - e, agindo de maneira sensata, não podemos ir muito além do que o próprio texto nos permite. Hummel expressa esta idéia com muita propriedade: “Gallons of ink would be saved, had more attention been paid to this major hermeneutical indication within the text itself of the general, symbolic significance of its temporal reference”[71].
Desta forma, parece-nos claro que a ênfase da profecia não recai sobre o tempo exato de início e consecução das setenta semanas, seus terminus a quo e ad quem, aos quais repetidas vezes nos referimos, mas sim sobre os eventos majestosos que aconteceriam neste período. “These events have achieved our peace with God”[72]
CAPÍTULO 4
Aplicações Pastorais e Missionárias de Dn 9.24-27
A despeito de todas as dificuldades textuais, inerentes ou impostas por interpretações errôneas da perícope, a profecia sobre as setenta semanas de Daniel é uma rica fonte de consolo para os crentes nas mãos do pregador que esteja bem fundamentado sobre bons princípios hermenêuticos e exegéticos. Jeske o afirma ao dizer que em Dn 9.24-27 “one fact stands clear: the central figure is the Messiah”[73]. Por isso mesmo podemos voltar nossa atenção dos intrincados cálculos matemáticos para a sua figura central, Cristo. Ele, e somente ele, em cumprimento a todas as profecias messiânicas - entre elas, a presente profecia daniélica - conseguiu reconciliação do pecador com Deus, expiando a iniquidade e trazendo a justiça eterna (v. 24).
Como vimos, tanto os teólogos liberais, adeptos do criticismo histórico, quanto os “entusiastas”, milenistas, voltam suas atenções quase que completamente ao que concerne aos tempos exatos do cumprimento de cada elemento da profecia. Inobstante, pudemos constatar que o mais importante na perícope não é o estabelecimento das datas exatas de cada elemento isolado, mas sim que o que estava nos propósitos de Deus ao revelar tal profecia era relembrar que ele é o Senhor da história, que governa todas as coisas e tem seus planos dispostos de maneira bem clara no tempo dos homens. E não apenas quis revelar sua soberania e poder como, superior a isto, que a despeito da corrupção e ingratidão do homem de todos os tempos, ele se manteve fiel à promessa de graça que fizera a Adão e Eva já no Jardim do Éden, no início do tempo dos homens; promessa esta que anunciou a vinda de um Salvador que fizesse em lugar dos homens o que eles de per si não poderiam, ou seja, estabelecer a paz com Deus. E é exatamente para reafirmar tal promessa que o Senhor profere mais esta profecia através de Daniel. De forma bem particular, contudo, é digno de nota perceber como o Senhor quis descrever os elementos de tal “processo” de eventos que culminariam com a obra vicária de Cristo de uma forma tão detalhada aqui em Daniel; e ainda, superior a isto, como a profecia projeta-se, de fato, tanto tipologica quanto escatologicamente no tempo.
Tal profecia repleta de conteúdo evangélico só pode estar cheia também de aplicações práticas ou missionárias que dela se possam extrair e empregar na vida e praxe da igreja. Todas elas, contudo, avançam em direção ao alvo de prover consolo aos cristãos, tal qual como era o propósito inicial do texto à época de sua redação. E dentro desta riqueza de conteúdos podemos citar alguns que consideramos, quais sejam eles:
1. a reafirmação da soberania e poder de Deus. Deus apresenta-se aqui, e a isto já nos referimos, como o Senhor da história, que domina sobre tudo e todos e faz prevalecer a sua vontade sobre a vontade dos homens. Tem predeterminados e esquadrinhados em sua voluntas abscondita toda a história humana e, por extensão, do universo. E esta constatação, por si só, já é uma preciosa fonte de consolo para os cristãos. É absolutamente relevante observar que ele revelou esta profecia a um profeta estadista de uma nação gentílica, em cujo panteão o Deus Iahweh figurava, ao que parece, apenas como mais um “deus” digno de louvor em decorrência de suas manifestações poderosas, descritas nos capítulos 1 a 6. Desta forma, ele demonstra seu poder para cumprir com seu propósito salvífico universal, não restrito ao povo do Antigo Testamento. Como consequência, isto oferece aos cristãos a confiança de que Deus há de cumprir também as suas promessas neotestamentárias, cabalmente.
2. a constatação de que tudo o que era necessário acontecer para a salvação dos homens já se cumpriu. Todos os resultados positivos e negativos apresentados no versículo 24 foram levados a cabo por Cristo através de sua obediência passiva e ativa à Lei e ao projeto redentor de Deus. Por isso mesmo os pecadores podem dirigir-se diretamente a Deus, sem a necessidade de um intercessor humano, firmados tão-somente na fé nos méritos de Cristo.
3. a advertência de que a edificação da Igreja Cristã não ocorreria, como de fato não está ocorrendo, em tempos de paz absoluta, mas em “tempos angustiosos”. A história inteira da Igreja demonstra tal verdade, ainda que estejamos em uma época de paz relativa no que diz respeito à liberdade religiosa que temos. Contudo, vemos que desde a primeira dispersão dos crentes de que fala o livro de Atos dos Apóstolos, perpetrada pelos mestres judaicos em consonância com as autoridades civis da época, a Igreja fiel sempre foi um grupo minoritário e perseguido. O mesmo aconteceu até os mártires medievais, como Huss, o próprio reformador Lutero, quando perseguido, e os primeiros luteranos, caçados e exterminados não só nas décadas seguintes mas também até meados do século XVII. Tal advertência, desta forma, ao mesmo tempo que serve de aviso aos crentes, é sobrepujada pelo consolo que vem do próprio Cristo, ao afirmar que nem mesmo “as portas do inferno” prevalecerão sobre a sua Igreja.
4. a afirmação e reafirmação da vitória final de Deus e de seus fiéis. Deus é o Senhor da história. Já providenciou tudo o que era necessário para a salvação eterna dos pecadores, e na sua onipotência mantém dia após dia os que foram tornados santuários do Espírito Santo segundo a sua vontade. Assim será até o final, até a “destruição, que está determinada”. A vitória final não pertence propriamente ao povo de Deus, mas sim por extensão ou por aplicação, pois Deus mesmo é o detentor de tal vitória e imputa-a, por graça, a seus filhos em Cristo. Lutero expressa tal idéia ao afirmar, a respeito da pessoa do profeta: “Thus Daniel’s life is nothing but a fine, clear mirror. In it we see the conflict and victory of faith, which, by the grace of God, triumphs over all men and devils; we see too the great fruit and use of faith, which it produces through patience and cross-bearing, both before God and the world”[74]
Como aplicação subsidiária da perícope, ressaltamos ainda a necessidade da evangelização. Cristo obteve todo o necessário para que a salvação do pecador seja algo pessoal e real, e o Senhor provê condições a todo instante para que mais e mais pecadores estejam entre os “muitos” do versículo 27 que serão salvos. Por isso compete aos já cristãos, sacerdotes reais de Deus no mundo, realizar a obra da evangelização enquanto ainda dura o tempo da graça de Deus, a fim de que, positivamente, mais pecadores sejam salvos e, negativamente, um número menor deles pereça. E isto não contradiz a doutrina da eleição pela graça: antes, é a comissão designada por Cristo aos crentes (veja-se Mt 28.18-20).
CONCLUSÃO
O sentido exato da profecia de Dn 9.24-27 é, de fato, bem mais simples do que se imagina - ou do que imaginam aqueles que se detém demasiadamente em detalhes e questiúnculas textuais. De fato, trata-se de uma perícope de interpretação extremamente difícil se se ignoram princípios hermenêuticos como o que diz respeito à unidade do texto bíblico como um todo, ao unus sensus literalis e a sua inspiração verbal. Acima de tudo, porém, perde-se completamente de vista o objetivo do coração de Deus em relação a esta profecia quando se ignora o centro de toda revelação: Cristo, o Messias, prometido desde o Éden. Com Cristo - e como foi nosso objetivo demonstrar através deste trabalho de pesquisa - o sentido e objetivo consolador intencionados no texto voltam a ser vistos com clareza, através da simples exegese literal do mesmo.
ANEXO
RECENSÃO
TOGNINI, Enéas. O Arrebatamento da Igreja. São Paulo: Enéas Tognini. 1970. 63 pp.
O autor da obra O Arrebatamento da Igreja, o pastor Enéas Tognini, diz-se ser “por força da Bíblia, pré-milenista”[75], pois, a seu ver, Jesus virá buscar a igreja antes da Grande Tribulação, e voltará para julgar as nações antes do milênio. No que diz respeito a cronologia dos fatos descritos no livro de Apocalipse, entretanto, mantém-se alheio a qualquer tomada de posição. Afirma: “Em interpretação do Apocalipse não sou nem preterista, nem futurista ou coisa semelhante”[76].
Também, não é este o assunto que pretende tratar em O Arrebatamento da Igreja. Antes, como o próprio título sugere, detém-se na análise da história do povo de Israel em conexão com a da Igreja Cristã, tendo em vista o grandioso momento em que, segundo crê, Cristo virá e arrebatará seus crentes. Aplica-se ainda em provar e comprovar a fundamentação bíblica do Arrebatamento acima descrito.
Tognini afirma que o tempo é o que determina se uma profecia cumpriu-se ou não. Por isso mesmo, as teorias sobre o Apocalipse são inúteis, assim como de nada adiantava fazerem-se teorias sobre o Emanuel desde a profecia de Isaías até o nascimento de Cristo em Belém.
Atualmente, encontramo-nos no tempo da graça. As coisas que o Senhor fez no passado, registradas na Escritura, são uma garantia do que ainda está fazendo hoje e fará no futuro. E na ordem dos fatos divinos o próximo que ocorrerá será o Arrebatamento da igreja. Enfaticamente afirma que: “os céus proclamam que o dia do Arrebatamento da igreja não está longe. Os sinais dessa vinda já começaram a aparecer e estão se tornando cada vez mais nítidos nas páginas dos horizontes dos tempos”[77]. Fundamenta tal convicção em textos como o do Evangelho segundo Lucas, cap. 21, v. 28: “Ora, ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei as vossas cabeças; porque a vossa redenção se aproxima”[78].
O judeu, embora hoje afastado de Cristo, ande errante no mundo, é entretanto, o povo escolhido de Deus, já que “Deus não se arrepende dos seus dons”, conforme cita a Epístola de Paulo aos Romanos, cap. 11. 29.[79]. Por isso, a partir da história do povo judeu, Tognini elabora um esboço para descrever os acontecimentos atuais e futuros, como segue:
1º) Graça – Abraão: Conforme Gl 3.17 vemos que Abraão viveu 430 anos antes de o Senhor ter dado a sua Lei a Moisés. Desta maneira, e ainda fundamentado no capítulo 4 da mesma epístola, afirma que Abraão vivia em pura Graça, e nessa Graça deu o dízimo – o qual muitos crentes atualmente afirmam ser proveniente da Lei – e repartiu sua Promessa com os outros povos da terra.
2º) A Lei: A verdadeira finalidade da Lei, conforme vê-se em Gl 3.23-29, é de servir de aio, ou seja, um escravo que conduz o filho do seu senhor à escola. Vindo porém, a maturidade – o sacrifício de Cristo – o aio perde a razão de ser.
3º) Jesus: Cristo veio em cumprimento às promessas de Deus, mas Israel o rejeitou. Diante de Pilatos assumiram a responsabilidade plena “nem tanto pela morte do Senhor Jesus, mas pela rejeição do Filho de Deus, de Israel como nação e povo (Mt 27.25)” [80].
Segundo Tognini, encontra-se no Novo Testamento dois evangelhos: o evangelho do Reino, que diz respeito aos judeus, e o da Graça, que diz respeito aos gentios. Assim, é necessário que se saiba distinguir quando a Escritura fala sobre o Dia do Senhor e quando fala sobre o Arrebatamento da Igreja, ou o Dia de Cristo.[81] Por exemplo, quando Cristo falou, como no Evangelho segundo Mateus, cap. 24, v. 14: “E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então virá o fim”[82] , estava referindo-se não ao Arrebatamento da igreja, mas sim ao restabelecimento de Israel como povo de Deus, como seu “Reino”.
O autor afirma ainda que, cronologicamente, as 69 primeiras Semanas descritas no capítulo 9 do livro de Daniel, vv. 20 a 27, correspondem a um período de 483 anos que vão desde os últimos anos do cativeiro babilônico, passando pelo restabelecimento dos judeus na Palestina, até a vinda e rejeição de Cristo. Neste ponto Deus fez parar a história dos judeus, e abriu um parênteses para inaugurar a dispensação da graça, cujo resultado é a Igreja Cristã. Paulo, em Efésios 3, v. 2, fala do mistério – a graça – que esteve oculto e foi revelado aos gentios por causa da rejeição dos judeus. Em outras palavras, a rejeição dos judeus oportunizou a salvação dos gentios.
O tempo da graça, no qual vivemos, “vai terminar quando se completar o número dos gentios”[83], ou seja, quando a igreja for arrebatada. Retirada a igreja do mundo pelo Arrebatamento, a Semana que falta (correspondente aos últimos 7 anos) irá começar. Será a Grande Tribulação, na qual Deus voltará a tratar os judeus como nação, como povo.
4º) O Arrebatamento: O Arrebatamento é “aquele momento quando o Senhor Jesus virá para arrancar a sua igreja do caos deste mundo”[84]. Por isso mesmo o Arrebatamento e a Volta de Cristo são duas coisas diferentes: na sua volta Cristo virá com os santos, aos quais já havia arrebatado anteriormente, para julgar o mundo. “No Arrebatamento só os mortos em Cristo ressurgirão; na sua volta os que morreram sem Cristo se levantarão também”[85].
O dia do Arrebatamento, contudo, será uma ocasião sensível apenas para os crentes, da mesma maneira como ocorreu após a ressurreição do Salvador: Cristo, durante 40 dias, aparecera somente aos seus discípulos e amigos, aqueles que creram nele. Por isso afirma que “os incrédulos não verão os santos subindo para o Senhor (...) terão oportunidade, depois, de ver os sepulcros abertos e nada mais”[86], fato que gerará um confusão tremenda e generalizada em todo o mundo, pelo misterioso “desaparecimento” de milhões de pessoas, sem qualquer explicação aparente para os que ficarem.
5º) A Grande Tribulação: Esta eqüivale à angústia de Jacó, registrada no livro de Jeremias, cap. 30.7, à 70ª Semana da profecia de Daniel 9 ou ao “Dia do Senhor”. É diferente do Dia de Cristo, quando os crentes se apresentarão a Cristo; o Dia do Senhor, na verdade, é o que se conhece como o Juízo Final. Neste, Cristo aparecerá no monte Sião e o reino de Israel, convertido, será restabelecido[87].
Ao contrário do que se pode pensar, durante esta Grande Tribulação que se seguirá ao Arrebatamento haverá oportunidades para conversões; contudo, estas serão como aquelas do crentes do Antigo Testamento[88], e tais crentes não farão parte do corpo de Cristo, haja visto que só pertence a este corpo quem foi batizado pelo Espírito Santo.
Identifica os “grandes sinais no céu” citados nas profecias escatológicas da Escritura com todo o armamento atômico, biológico e químico que, utilizado – ou, no mínimo, testado pelos seus possuidores – durante o período da Guerra Fria, representava uma ameaça constante para o mundo.
6º) A Volta de Jesus e o Milênio: Após a grande tribulação e ainda dentro do Dia do Senhor, Cristo voltará junto com o arrebatados e todo olho o verá. Julgará então as nações “na base do tratamento que dispensaram aos judeus”[89] Depois disto, Cristo reinará com os seus crentes – judeus ou não – durante mil anos, durante os quais Satanás estará preso.
Em sua argumentação, objetiva e convincente, Tognini faz uso de uma vasta fundamentação bíblica e de excertos de outros escritores como Gordon Lindsay, Ironside e Sinesio Lira, entre outros. Contudo, percebemos claramente que carece de bons princípios de interpretação do texto bíblico, o que o leva a conclusões – na maioria das vezes – precipitadas e fantasiosas. Um exemplo bastante claro encontra-se na teoria que Tognini defende repetidas vezes e que torna-se, de certa forma, a idéia central da obra ao lado da idéia do Arrebatamento da Igreja, de que está nos planos de Deus que Israel, após o “princípio das dores”, seja novamente reunido e reconsagrado como povo de Deus. Para tanto, fundamenta-se em versículos bíblicos como o da Epístola aos Romanos, cap. 11, v. 26: “e todo o Israel será salvo”. Ora, ao seguir-se bons princípios hermenêuticos, analisando o versículo em seu contexto, desde o mais próximo até o mais remoto, fica claro que o apóstolo aqui esteja referindo-se não mais ao povo judeu em si, mas à Igreja cristã, que constitui o Israel neotestamentário.
Como se não bastassem tais conclusões “literais” – no sentido crasso da palavra, é claro – o autor ainda toma a liberdade de fazer conclusões fantasiosas e entusiastas. Haja visto que os anjos, no dia da Ascensão do Senhor Jesus, afirmaram que Cristo voltará “do modo como o vistes subir” (Atos 1.11)[90], afirma que Cristo retornará exatamente donde ascendeu, ou seja, na Palestina, no monte das Oliveiras[91].
A obra foi escrita num período em que as revoluções militares em toda a América Latina e alguns países da África ainda estavam processando-se e estabelecendo-se. Neste contexto de violência, a assim chamada Guerra Fria, encabeçada pelos Estados Unidos e pela ex-União Soviética assumia proporções ainda maiores, e constituía uma preocupação constante e a nível mundial. Neste contexto, Tognini aponta a própria Guerra Fria, os armamentos atômicos produzidos pelas duas superpotências da época e a situação de conflito que o mundo enfrentava como sinal evidente de que o Arrebatamento da Igreja estaria realmente muito próximo. Dá a idéia de que a Guerra Fria seria um dos sinais imediatamente precedentes à Grande Tribulação. E ainda procura descrever como seriam os dias da Grande Tribulação. Vemos, contudo, que a Guerra Fria conforme era concebida já se acabou, e no entanto a Grande Tribulação, conforme descrita por Tognini, ainda não começou.
Carece ainda de um maior rigor analítico em seus julgamentos. Afirma que em nossa época os sinais do fim descritos no capítulo 24 do Evangelho segundo Mateus são maiores e mais visíveis que em toda a história da humanidade. Ao se analisar tais sinais descritos por Jesus – guerras, fome, terremotos – de maneira objetiva, fundamentados em dados estatísticos confiáveis, percebe-se que não aconteceu ainda em nosso século um “boom” no número de tais situações, mas sim, que ocorrem atualmente como ocorreram em toda a história da humanidade. O que leva muitos a crerem que tais sinais tenham-se multiplicado pode ser explicado, entre outras coisas, pelo enorme avanço dos meios de comunicação de massa nos últimos cem anos, que possibilitaram um fluxo incomparavelmente maior de informações entre as diferentes partes do mundo. É pela influência de meios como rádio, TV, jornais e, mais recentemente, a comunicação digital via computador, que têm-se a impressão de que os números das guerras, da fome, dos terremotos e outros acontecimentos agigantam-se a cada dia.
Por fim, Tognini apresenta-se extremamente legalista nesta obra. Condena veementemente diversões como o circo, o teatro e o futebol[92]. Chama o leitor à conversão, não baseando-se na oferta incondicional da graça de Deus, e sim em ameaças relativas à “ira futura de Deus”[93]. Demonstra desconhecer qualquer noção da distinção correta, bíblica, entre a Lei e o Evangelho – ainda que todo o tempo cite as duas doutrinas.
Logo, julgamos que O Arrebatamento da Igreja, em vista da quantidade de informações errôneas e contraditórias que contém, fundamentadas antes em conclusões pessoais que em bons princípios hermenêuticos, não constitui uma obra realmente valiosa ou relevante no estudo da Escatologia, ao qual se propõe. Antes, é necessário que seu leitor possua exatamente aquilo que falta ao autor: uma atitude interpretativa correta frente a Escritura, atitude esta de submissão ao texto, contudo não entusiasta, nem desejosa de “enxertar” teorias espúrias dentro do texto bíblico, nem tampouco desprovida de uma capacidade objetiva de julgamento daquilo que se lê e se quer interpretar. Apenas assim poderá ele “peneirar” os – escassos – conteúdos realmente proveitosos do livro. Positivamente, seu grande mérito é nas palavras de Horace D. Hummel ao comentar a obra de Ironside, The Great Parenthesis, manter-se ainda cristocêntrico no sentido mais próprio do termo.[94]
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[1] ARCHER, Gleason L. Merece Confiança o Antigo Testamento? São Paulo: Vida Nova. 4ª ed., 2ª reimperessão, 1991. P. 319.
[2] CHILDS, Brevard S. Introduction to the Old Testament as Scripture. Philadelplhia: Fortress Press. 1ª ed., 1979. P. 608.
[3] Id., p. 611.
[4] Id., p. 614.
[5] BÍBLIA SAGRADA. Petrópolis: Vozes/Santuário. 33ª ed., 1982. P. 1086.
[6] FREEDMANN, David Noel. The Anchor Bible Dictionary. New York: Doubleday. Vol 2, 1992. P. 30.
[7] CONCORDIA SELF-STUDY BIBLE (New International Version). St. Louis: Concordia. 1986. P. 1301.
[8] Id., p. 1302.
[9] ARCHER, op. cit., p. 319.
[10] BÍBLIA SAGRADA, op. cit., p. 1086.
[11] SANTA BÍBLIA. Reina-Valera 1995, Edición de Estudio. Bogotá: Sociedad Biblica Colombiana. 1996. P. 1620.
[12] FREEDMANN, op. cit., p. 31.
[13] BIBLIA SAGRADA, op. cit., p. 1087.
[14] CONCORDIA SELF-STUDY BIBLE, op. cit. p. 1302.
[15] PORTEOUS, in BALDWIN, Joyce G. Daniel: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão. 1983. P. 184.
[16] DELITZSCH, F., e KEIL, C. F. Commentary on the Old Testament. Grand Rapids: Eerdmans. 1985. Vol. IX. P. 337.
[17] YOUNG, Edward J. The Prophecy of Daniel - A Commentary. Grand Rapids: Eerdmans. 1980. Pp. 192-3.
[18] BALDWIN, op. cit., p. 184.
[19] Id., ibid.
[20] Id., p. 185.
[21] JOSEFO, id, p. 186.
[22] HUMMEL, Horace D. The Word Becoming Flesh. St. Louis: Concordia. 1979. P. 588.
[23] BALDWIN, op. cit., p. 185.
[24] DELITZSCH, KEIL, op. cit., p. 336.
[25] HUMMEL, op. cit., p. 588.
[26] Id., ibid.
[27] Id., p 589.
[28] IRONSIDE, in YOUNG, op. cit., p. 194.
[29] HUMMEL, op. cit., p. 587.
[30] IRONSIDE, in YOUNG, op. cit., p. 184.
[31] Por isso entende-se que os defensores desta teoria tenham entrado em polvorosa principalmente nas décadas de 50 a 70, em decorrência do estabelecimento do Estado de Israel, em 1947. Naqueles anos foi produzida uma enorme quantidade de literatura que pretendia alertar a todos que o fim do “Grande Parêntesis” se aproximava. Em anexo a esta pesquisa encontra-se a recensão de uma obra do pastor Enéas TOGNINI, O Arrebatamento da Igreja, que explicita não só a posição parentético-milenista, mas também expõe a preocupação que se abateu sobre seus teoréticos em decorrência dos fatos transcorridos desde 47.
[32] Neste ponto dividem-se os defensores da interpretação parentética em pré e pós milenistas. O que foi citado neste trabalho constitui lugar-comum a todos eles.
[33] HUMMEL, op. cit., p. 187.
[34] HUMMEL, op. cit., p. 582.
[35] LACOQUE, in BALDWIN, op. cit., p. 178.
[36] HUMMEL, op. cit., p. 583.
[37] Id., ibid.
[38] KEIL, in YOUNG, op. cit., p. 195.
[39] Id., ibid.
[40] Id., ibid.
[41] KLIEFOTH, id., p. 196.
[42] HUMMEL, op. cit., p. 584
[43] BALDWIN, op. cit., p. 197.
[44] HENGSTENBERG, in YOUNG, op. cit., p. 198.
[45] Id., p. 201.
[46] Id., ibid., p. 202.
[47] Id., p. 203.
[48] Id., pp. 203-4.
[49] A BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Edição Revista e Atualizada no Brasil. Rio de Janeiro: SBB. 1959, [s.ed.]. P.880.
[50] YOUNG, op. cit., p. 205.
[51] CONCORDIA SELF-STUDY BIBLE, op. cit., p. 1317.
[52] YOUNG, op. cit., p. 206.
[53] Hummel corrobora com esta opinião. Veja-se, para tanto, HUMMEL, op. cit., p. 585.
[54] YOUNG, op. cit., p. 207.
[55] Aqueles comentadores liberais que defendem a interpretação de que o “príncipe” vindouro seria Antíoco têm sua argumentação em muito enfraquecida quando se constata que ele não destruiu nem o templo nem a cidade de Jerusalém, embora sem dúvida muitos danos tenham sido causados (veja-se, para tanto, 1 Macabeus 1.31,38).
[56] JESKE, op. cit., p. 181.
[57] HUMMEL, op. cit., p. 586.
[58] Id., ibid.
[59] KEIL, id., p. 208.
[60] YOUNG, op. cit. p. 209.
[61] Id., ibid.
[62] HUMMEL, op. cit., p. 508.
[63] YOUNG, op. cit., p. 213.
[64] ALLIS, id., ibid.
[65] Tal posição é defendida, entre outros, por Leupold. Afirma: “As he (i.e., the Antichrist) seeks to take the place of Christ so he shall imitate him(...) He will inaugurate a covenant (...) but a covenant of terror, compulsion, and violence”. LEUPOLD, in JESKE, op. cit., p.182.
[66] IRONSIDE, in YOUNG, op. cit. p. 217.
[67] As duas palavras, no contexto, vêm representar os dois tipos de sacrifícios praticados no Antigo Testamento, ou seja, ofertas sangrentas e ofertas incruentas.
[68] Conforme Rosenmueller, exercitui detestando vastator dux praeerit.
[69] YOUNG, op. cit., pp. 217-8.
[70] Id., p. 219.
[71] HUMMEL, op. cit., p. 508.
[72] JESKE, op. cit. p. 183.
[73] Id., ibid.
[74] CONCORDIA SELF-STUDY BIBLE, op. cit., p. 1301.
[75] P. 9.
[76] id.
[77] P. 10.
[78] BIBLIA SAGRADA – Antigo e Novo Testamento (Trad. João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada no Brasil) São Paulo: SBB. 2ª ed, 1993, p. 93.
[79] P. 12.
[80] P. 16.
[81] id.
[82] BIBLIA SAGRADA, op. cit., p. 30.
[83] P. 20.
[84] P. 24.
[85] P. 32.
[86] P. 34.
[87] P. 44.
[88] P. 47. O autor não deixa claro como eram as conversões “dos crentes do Antigo Testamento”.
[89] P. 58.
[90] BIBLIA SAGRADA, op. cit., p. 126.
[91] P. 25.
[92] P. 36.
[93] id.
[94] HUMMEL, Horace D. The Word Becoming Flesh. St. Louis: Concordia. 1979. P. 177.