CAPÍTULO 1
Texto e Tradução
Na quarta edição do Novo Testamento Grego de Nestle-Aland[1] lemos:
14. Staqei.j de. o` Pe,troj su.n toi/j e[ndeka evph/ren th.n fwnh.n auvtou/ kai. avpefqe,gxato auvtoi/j( (...)
22 :Andrej VIsrahli/tai( avkou,sate tou.j lo,gouj tou,touj\ VIhsou/n to.n Nazwrai/on( a;ndra avpodedeigme,non avpo. tou/ qeou/ eivj u`ma/j duna,mesi kai. te,rasi kai. shmei,oij oi-j evpoi,hsen diV auvtou/ o` qeo.j evn me,sw| u`mw/n kaqw.j auvtoi. oi;date(
23 tou/ton th/| w`risme,nh| boulh/| kai. prognw,sei tou/ qeou/ e;kdoton dia. ceiro.j avno,mwn prosph,xantej avnei,late(
24 o]n o` qeo.j avne,sthsen lu,saj ta.j wvdi/naj tou/ qana,tou( kaqo,ti ouvk h=n dunato.n kratei/sqai auvto.n u`pV auvtou/\
25 Daui.d ga.r le,gei eivj auvto,n( Proorw,mhn to.n ku,rion evnw,pio,n mou dia. panto,j( o[ti evk dexiw/n mou, evstin i[na mh. saleuqw/Å
26 dia. tou/to huvfra,nqh h` kardi,a mou kai. hvgallia,sato h` glw/ssa, mou( e;ti de. kai. h` sa,rx mou kataskhnw,sei evpV evlpi,di(
27 o[ti ouvk evgkatalei,yeij th.n yuch,n mou eivj a[|dhn ouvde. dw,seij to.n o[sio,n sou ivdei/n diafqora,nÅ
28 evgnw,risa,j moi o`dou.j zwh/j( plhrw,seij me euvfrosu,nhj meta. tou/ prosw,pou souÅ
29 :Andrej avdelfoi,( evxo.n eivpei/n meta. parrhsi,aj pro.j u`ma/j peri. tou/ patria,rcou Daui,d o[ti kai. evteleu,thsen kai. evta,fh( kai. to. mnh/ma auvtou/ e;stin evn h`mi/n a;cri th/j h`me,raj tau,thjÅ
30 profh,thj ou=n u`pa,rcwn( kai. eivdw.j o[ti o[rkw| w;mosen auvtw/| o` qeo.j evk karpou/ th/j ovsfu,oj auvtou/ kaqi,sai evpi. to.n qro,non auvtou/(
31 proi?dw.n evla,lhsen peri. th/j avnasta,sewj tou/ Cristou/ o[ti ou;te evgkatelei,fqh eivj a[|dhn ou;te h` sa.rx auvtou/ ei=den diafqora,nÅ
32 tou/ton to.n VIhsou/n avne,sthsen o` qeo,j( ou- pa,ntej h`mei/j evsmen ma,rturej\
Texto traduzido por João Ferreira de Almeida como segue[2]:
14. Então, se levantou Pedro, com os onze; e, erguendo a voz, advertiu-os nestes termos:
22. Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis;
23. sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos;
24. ao qual, porém, deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era posssível fosse ele retido por ela.
25. Porque a respeito dele diz Davi:
Diante de mim via sempre o Senhor, porque está à minha direita, para que eu não seja abalado.
(26). Por isso, se alegrou o meu coração, e a minha língua exultou; além disto, também a minha própria carne repousaraá em esperança,
(27.) porque não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção.
(28.) Fizeste-me conhecer os caminhos da vida, encher-me-ás de alegria na tua presença.
29. Irmãos, seja-me permitido dizer-vos claramente a respeito do patriarca Davi que ele morreu e foi sepultado, e o seu túmulo permanece entre nós até hoje.
30. Sendo, pois, profeta e sabendo que Deus lhe havia jurado que um dos seus descendentes se assentaria no seu trono,
31. prevendo isto, referiu-se à ressurreição de Cristo, que nem foi deixado na morte, nem o seu corpo experimentou corrupção.
32. A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas.
Tendo como ponto de partida estes textos procederemos à pesquisa isagógica, como segue.
CAPÍTULO 2
At 2.14a, 22-32 no Contexto da Isagoge de Atos dos Apóstolos
As referências patrísticas no segundo século dividiam o Novo Testamento em “Evangelho” e “Apóstolo”, o que corresponde à nossa terminologia moderna de “Evangelhos” e “Epístolas”. contudo, tais escritos não estavam em condições de fornecer todos os esclarecimentos de que a igreja necesitava a respeito de suas origens. A mensagem e os relatos dos evangelhos antecipavam a história da igreja cristã, ao passo que as epístolas já pressupunham a existência da igreja. Assim, havia necessidade de um livro que descrevese a origem e o primitivo desenvolvimento da igreja e se tornasse assim o elo entre os evangelhos e as epístolas. O livro de Atos dos Apóstolos preencheu assim esta lacuna, de tal forma que Harnack o denominou “a ponte entre os evangelhos e as epístolas”[3]. E é relevante observar que a nossa perícope de Atos 2 apresenta o que podemos considerar como o primeiro movimento dos apóstolos em cumprimento à Grande Comissão, ou seja, o anúncio do evangelho primeiramente em Jerusalém (At 1.8). Tal movimento serve até como comprovação da autoria lucana da obra, já que no evangelho de Lucas “Jerusalém é o centro da chegada, o lugar da revelação messiânica; para Atos é o ponto de partida do evangelho”[4], ou seja, no pensamento de Lucas estabelece-se, com respeito a Jerusalém, uma relação de afluência - do Messias, Cristo Jesus - e fluência - do evangelho, mensagem que este mesmo Messias veio trazer e personificar. E foi como consequência da pregação de Pedro e dos apóstolos no dia de Pentecostes que surgiu a primeira comunidade cristã, a igreja de Jerusalém (veja-se, para tanto, capítulo 2, versículos 37 a 47). Ainda, a ocasião serviu para a propagação do evangelho intensificada posteriormente pelos cristãos dispersos após a morte de Estevão, já que naquele dia estavam reunidos judeus residentes em diversas regiões do Oriente Médio, sudeste europeu e norte da África (veja-se, para tanto, os versículos 9 a 11).
Desta forma, é nosso objetivo agora analisar como o excerto de At 2.14a, 22-32 confirma a visão geral da ortodoxia luterana com respeito a alguns aspectos isagógicos controversos da obra.
2.1.Seu título
É importante também darmos atenção à história da titulação da obra de Lucas. Este dificilmente dera o título de “Atos dos Apóstolos” ao escrito, já que tal não corresponde ao seu conteúdo. Dos apóstolos, apenas uns poucos são retratados como figuras de liderança, tais como Pedro, Paulo e Tiago; João aparece algumas vezes nos primeiros capítulos e então desaparece. Ao passo que os outros apóstolos são apenas mencionados esporadicamente - como no próprio relato do dia de Pentecostes -, alguns leigos como Estevão, Filipe, Barnabé, Silas e Ágabo desempenham papéis de destaque. Ademais, o título sugere uma narrativa de heroísmo e de conquistas humanas. Perguntamos: escolheria Lucas um título que sugeriria a grandeza humana?[5]
Atos não constitui uma biografia de Pedro, Paulo ou de qualquer outro apóstolo. Na verdade, este livro relata a história de homens apenas porque eram instrumentos no nascimento, crescimento e triunfo da Palavra do Senhor, através da sua igreja, no mundo. Tal dinâmica, como sabemos, é sistematizada como opera ad extra própria do Espírito Santo. E é exatamente isto que o excerto do capítulo 2 propõe-nos: de seu contexto imediato extraímos que os apóstolos “todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem” (versículo 4).
Ainda, Atos dos Apóstolos deve ser considerado “uma continuação retilínea do Evangelho de Lucas, com o Cristo exaltado como sua figura dominante”[6]. Ora, é exatamente este mesmo Cristo exaltado aquele apresentado no discurso de Pedro: confirma-nos isto passagens tais como “ao qual (Cristo), porém, Deus ressuscitou” (versículo 24), “porque não deixarás minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo (Cristo) veja corrupção” (27), “ressurreição de Cristo” (31) e “a este Jesus Deus ressuscitou” (32).
Na realidade foi Irineu, em torno do ano 190 A.D., o primeiro a usar o título abreviado de “Atos dos Apóstolos”, talvez seguindo a indicação já existente no Cânon Muratoriano, o qual afirmava que “os atos de todos os apóstolos foram escritos em um livro”[7]. Daí deduz-se que o livro, juntamente com o evangelho de Lucas, não tenham recebido um título de seu autor; na verdade, foram acrescentados posteriormente.
2.2. As Fontes de Lucas
A questão das fontes que teriam sido usadas por Lucas na compilação do livro tem sido cuidadosamente investigada, principalmente por aqueles que não admitem-no como autor de Atos. Estes entram em inúmeras conjeturas que, a rigor, não têm como ser verificadas. Deve-se notar que a despeito de tais tentativas, o admitir-se Lucas como autor da obra simplifica todo esta investigação.
Lucas mesmo presenciou grande parte dos fatos relatados em Atos como testemunha ocular. Isto é-nos atestado pelas várias seções de “nós” existentes no livro. Com relação aos fatos que não presenciou, pode facilmente obter informações com testemunhas oculares como Barnabé, Silas, Timóteo, Tito, Ágabo e outros. Quanto à primeira parte do livro - e é esta exatamente que nos interessa - e mesmo à manhã de Pentecostes, ele pode ter obtido informações de irmãos de Jerusalém[8] como Tiago, os anciãos, Maria e, talvez, do próprio Pedro. Deve ter tido oportunidade especial para colecionar tais testemunhos durante a prisão de Paulo em Cesaréia, quando certamente ficou também ao lado deles nas horas vagas e aproveitou as oportunidades de entrevistar muitas testemunhas em torno e dentro de Jerusalém - já que Cesaréia ficava próxima de lá. Admite-se também que possa ter consultado fontes escritas, tanto gregas como aramaicas.[9]
2.2.1. Os Discursos em Atos
Um terço do livro de Atos compõe-se de discursos. Destes, um é de Estevão, um de Tiago, sete de Paulo, vários outros mais curtos e de diversos oradores, e seis de Pedro. O discurso registrado dos versículos 14 a 36 do capítulo dois é o segundo destes - o primeiro, registrado nos versículos 16 a 22 do capítulo precedente, foi proferido por ocasião da assembléia que escolheu Matias como substituto de Judas.
Tais discursos sofreram muitos ataques quanto a sua historicidade. Especialmente Martim Dibelius acusa o autor de Atos de tê-los inventado.
Afirma Dibelius que os discursos não devem ser entendidos como um relato de fatos para uma audiência específica, mas foram feitos para seus leitores a fim de fundamentar a sua teologia. Assim, o autor de Atos seria antes um teólogo ou pregador e não um historiador. Os que negam a veracidade dos discursos em Atos fundamentam-se principalmente sobre o método empregado pelos historiadores gregos, que muitas vezes colocavam na boca de seus oradores seus próprios pensamentos, conforme depoimento do próprio Tucídides, que confessou a dificuldade de reproduzir os discursos palavra por palavra e se permitia a liberdade de fazer os oradores dizerem o que, em sua opinião, eles deveriam ter dito naquela situação. O autor de Atos teria seguido este mesmo método e, portanto, teria composto os discursos nos termos em que deveriam ser proferidos nas respectivas ocasiões.
Bertil Gaertner criticou este ponto de vista. Ele diz que os discursos em Atos são breves e não foram elaborados estilisticamente como os modelos do grego clássico. Acima de tudo, existe a probabilidade de que Lucas foi muito mais influenciado pelo modelo dos discursos do Antigo Testamento do que pelo modelo do grego clássico. Na concepção hebraica, a ‘historiografia torna-se uma divina interpretação do curso dos acontecimentos’. É este ponto de vista religioso da história que deve ser básico para a compreensão dos discursos em Atos.[10]
Convém neste ponto ressaltar que mesmo entre os gregos havia vozes que discordavam do método de Tucídides. Entre estes encontra-se o historiador Políbio, do segundo século a. C., o qual condenou tal livre invenção de discursos por parte dos historiadores, defendendo a máxima precisão no registro dos discursos, ainda que muitas vezes fosse difícil transmitir as palavras exatas que haviam sido proferidas. A despeito disto, o historiador fiel procurava ao menos conservar o sentido exato do que foi dito.
E é exatamente esta a atitude que encontramos em Lucas: valendo-se ou não de fontes, ao reproduzir discursos como este, de Pedro, pode ter feito alterações em palavras e pormenores, mas as idéias e pensamentos manteve certamente fiéis ao sentido intencionado do orador. Ainda mais se, de fato, tenha recorrido a registros escritos, como vimos.
Outro argumento a favor da reprodução fiel dos discursos em Atos é o caráter da teologia primitiva que lhes é atribuído. Especialmente C. H. Dodd frisou o fato de que tais continham o quérigma primitivo dos cristãos. Ora, se é assim, caem por terra as tentativas de enquadrá-los como portadores de uma teologia posterior, mais desenvolvida. Lucas ateve-se fielmente ao que foi dito pelos oradores, refletindo o pensamento deles correspondente à situação histórica em que falavam.
Por fim, todos os discursos de Atos enquadram-se perfeitamente às suas respectivas audiências. Hale[11] afirma que nos discursos de Lucas se acha o pior de sua linguagem, gramaticalmente falando, e isso devido a sua fiel aderência tanto quanto possível às palavras do falante - algumas em tradução do aramaico - ou a suas fontes. Podemos concluir, dessa forma que o conteúdo do discurso de Pedro no dia de Pentecostes registrado por Lucas - assim como os demais - é historicamente fiel, embora não corresponda exatamente às ipsissima verba por ele proferidas, já que Lucas enquadrou-as em seu estilo e linguagem próprios.
2.3. Propósito e Conteúdo da Obra
Apesar da dificuldade de se encontrar o propósito de um escrito bíblico, é possível apontar, na maioria das vezes, um propósito que lhe seja fundamental entre os tantos outros que, desta forma, seriam propósitos secundários.
O Professor Paulo Frederico Flor[12], em seu Manual de Isagoge do Novo Testamento, destaca que o propósito fundamental do livro de Atos é teológico e consiste no desejo que Lucas tem de mostrar o impacto do Cristo ressuscitado e exaltado sobre o mundo inteiro, congregando o novo povo de Deus entre todas as nações da terra. A oposição que lhe fazem - isto é, ao evangelho - tanto judeus como gentios não impede que tal impacto seja progressivo, sendo focalizado especialmente na rota de Jerusalém a Roma; nesta surgem congregações sobre congregações que confessam que Jesus Cristo é o Senhor. Como em seu evangelho Lucas relata todas as coisas que Jesus começou a fazer e ensinar, este seu segundo livro é a continuação da história do Cristo ressuscitado e exaltado através de seus mensageiros evangelistas. Os fatos narrados não intencionam ser uma história completa da igreja, mas uma contemplação do passado que mostre aos cristãos helenistas daquele tempo a solidez dos ensinamentos recebidos (Lc, 1.4) pela tradição oral[13].
Já se tornou evidente através do estudo da perícope realizado até agora que este propósito justifica-se totalmente nela. Como vimos, a ênfase do discurso de Pedro no dia de Pentecostes recai sobre a exaltação de Cristo e a necessidade que todos os homens têm de achegar-se a ele para a sua salvação - mesmo aqueles homens que antes o haviam crucificado. Em seu contexto imediato vemos o impacto gerado por esta pregação: compungiu-se o coração dos ouvintes, a ponto de perguntarem a Pedro e aos demais apóstolos o que seria necessário fazerem (versículo 37); como este informara-lhes que seria necessário arrependerem-se e serem batizados (38) quase três mil pessoas foram batizadas naquele mesmo dia (39). E a seguir (versículos 42 a 47) Lucas demonstra que não só o seu arrependimento para uma nova vida fora verdadeiro, mas também perseveraram na doutrina dos apóstolos (42), unindo-se naquilo que podemos chamar de a primeira comunidade cristã pós-Pentecostes.
Seguindo-se a divisão tradicional do livro em seis sessões, tal qual o próprio autor sugere (1.1 -6.7; 6.8 - 9.31; 9.32 - 12.24; 12.25 - 16.5; 16.6 - 19.20 e 19.21 a 28.31), marcando assim passos diferentes do progresso da Palavra do Senhor no mundo, vemos que nosso texto encaixa-se perfeitamente, quanto a seu conteúdo, na ênfase de sua primeira sessão. Aceitando-se ainda a sugestão do professor Paulo Flor[14], podemos afirmar que ela aborda a atuação da Palavra de Deus em Jerusalém, cheia do Espírito Santo, criando e sustentando lá uma igreja que vence tensões internacionais e cresce apesar da oposição vinda de fora. E Atos 2 retrata exatamente o início desta igreja.
CAPÍTULO 3
At 2.14a, 22-32 em seu Contexto Imediato:
Aspectos Isagógicos Particulares
3.1. A Descida do Espírito Santo e o Dom de Línguas
Do primeiro versículo de Atos 2 somos informados de que, ao cumprir-se o dia de Pentecostes - 50 dias depois da crucificação e 10 após a ascensão de Jesus -, os discípulos estavam reunidos “no mesmo lugar”, ou seja, no mesmo lugar onde, alguns dias antes, havia acontecido a escolha do substituto de Judas Iscariotes, Matias (capítulo 1, versos 15 a 26). Naquele ambiente, ouve-se repentinamente um som do céu como de um “vento impetuoso”, o qual encheu o local (verso 2), e aparecem distribuídas ente eles línguas como de fogo, pousando uma sobre cada um dos presentes (verso 3)[15]. Com isto, todos ficaram “cheios do Espírito santo, e passaram a falar em outras línguas, segundo Espírito lhes concedia que falassem”. É o cumprimento da promessa que Cristo fez no momento da sua ascensão, relatada pouco antes, no versículo 8 do primeiro capítulo: “mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas”[16]. De forma mais recuada, como veremos a seguir, trata-se do cumprimento de uma profecia vetero-testamentária proferida por Deus por intermédio do profeta Joel. E este “falar em línguas” pode referir-se tanto ao carisma da glossolalia, freqüente na igreja primitiva[17], ligada a manifestações de transe extático, como no antigo profetismo israelita[18], ou, ao que nos parece mais provável, ao falar nas línguas dos povos presentes àquela ocasião, descritos nos versículos 9 a 11[19]. Afinal, o mesmo Cristo prometera a seus discípulos que - entre outras coisas - também falariam “em novas línguas” (Mc 16.17). Estas “novas línguas” não seriam línguas por eles inventadas, mas sim, línguas que até então ainda não conheciam. Lucas nos informa que eles falavam em “outras línguas”. Também estas não eram línguas por eles inventadas, mas sim, línguas que até agora não conheciam nem falavam. O que significava isto é explicado pelo que segue nos versículos 6 (“...cada um os ouvia falar na sua própria língua”) e 11 (“...os ouvimos falar em nossas próprias línguas as grandezas de Deus”). Por estes versículos constatamos que não se tratava de línguas desconhecidas entre os homens, inexistentes na terra, e que, devido a isso, precisariam ser interpretadas mediante um dom milagroso de Deus: o dom da interpretação de uma língua não existente. Portanto, estas línguas eram desconhecidas daquelas que as falavam, mas eram conhecidas daqueles que as ouviam.
Assim, podemos afirmar que este dom de línguas prosseguiu até que o seu máximo efeito fosse atingido, ou seja, causar impacto a todos os visitantes de outras nacionalidades presentes àquele Pentecostes. Então o Espírito cessou de falar pelas bocas dos discípulos[20], “mas Pedro...” (versículo 14). A expressão “com os onze” afirma tão somente que Pedro, naquele momento, fora o porta-voz dos discípulos. Além disso, deve-se notar que Matias estava junto com eles. Matias havia sido recentemente escolhido como apóstolo “substituto” de Judas Iscariotes, o traidor. Ora, a função de apóstolo, numa ampla definição, pressupunha algumas “exigências” básicas: primeiro, que o indivíduo tivesse sido chamado pelo próprio Cristo, passando algum tempo em sua companhia, aprendendo dele o evangelho do Reino, e segundo, que dele mesmo tivesse recebido a incumbência de transmitir este evangelho.[21] Ora, quanto a Pedro e aos outros dez estes pré-requisitos estão claramente preenchidos mas: e quanto a Matias?
3.2. Matias - o Décimo-Segundo Apóstolo
Lemos no versículo 15 do primeiro capítulo de Atos: “Naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos irmãos (ora, compunha-se a assembléia de umas cento e vinte pessoas)”. “Aqueles dias” são aqueles compreendidos entre a ascensão de Jesus e o Pentecostes. Pela quantidade aproximada de “irmãos” presentes a esta assembléia mencionados por Lucas - cento e vinte - é difícil deduzir-se o local exato em que ela estaria acontecendo[22]. No entanto, podemos afirmar que o assunto da substituição de Judas deva ter sido discutida ao menos entre os onze, antes de ser posto em pauta na assembléia de todos os irmãos. Durante aqueles quarenta dias - entre a ressurreição e a ascensão - Jesus não havia apontado nenhum substituto para Judas; no entanto queria ele que os apóstolos fossem em número do doze: “The fact that the number of apostles must be twelve according to the choice Jesus had originally made which matched the tweleve patriarchs and the twelve tribes of Israel and the twelve thrones waiting them to judge these twelve tribes, was taken for granted”[23].
Mesmo assim, os onze decidiram não agir sozinhos: esperaram até que fosse possível congregar o maior número possível de irmãos e discutir a questão entre eles. Agindo assim, ao contrário do que muitos afirmaram desde o período patrístico, os apóstolos não quiseram constituir-se em uma ordem superior. Consideravam-se todos irmãos, tendo cada um seu lugar e tarefa no Reino de Deus.
A eleição realizada naquela ocasião é, segundo Halley[24], a primeira declaração a respeito do cumprimento de uma profecia vetero-testamentária em Atos. De fato, dos versículos 16 a 21 depreendemos que o suicídio de Judas já havia sido predito através do salmista nos Salmos 69, verso 25, (“Fique deserta a sua morada, e não haja quem habite as suas tendas”) e 109, verso 8 (“Os teus dias sejam poucos, e tome outro seu encargo”). Esta vacância, contudo, deveria ser preenchida, segundo a vontade expressa de Cristo. Mas a pessoa que a ocupasse, isto é, que ocupasse o colégio apostólico, teria de ser, segundo Pedro “dos homens que nos acompanharam todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós, começando no batismo de João até o dia em que dentre nós foi levado às alturas; um destes se torne testemunha conosco da sua ressurreição”. Ora, percebemos aqui claramente a concordância entre esta definição de Pedro e aquela dada pelo Professor Paulo Frederico Flor, supracitada.
Tendo dois nomes propostos - os de Matias e “José, chamado Barsabás” - os irmãos reunidos submeteram a escolha final não uma apreciação que partisse deles mesmos, mas sim que expressasse a genuína vontade de seu Senhor: “e orando, disseram: Tu, Senhor (...) revela-nos qual deste dois tens escolhido” (versículo 24), “e os lançaram em sortes, vindo a sorte a recair sobre Matias, sendo-lhe então votado lugar com os onze apóstolos” (versículo 26). A prática de “lançar sortes” é antiga, registrada na literatura grega desde o período de Homero, e comparável ao que encontramos no livro de Levítico, capítulo 16, verso 8: “Lançará sorte sobre os dois bodes: uma para o Senhor, e a outra para o bode emissário”.
3.3. O Pentecostes
Uma das três grandes festas judaicas - a segunda. As outras duas eram a Páscoa, com origem bem conhecida, e a Festa dos Tabernáculos ou festa da colheita, celebrada em setembro no equinócio, dia 23 de setembro, com duração de uma semana (veja-se, para tanto, Lv 23.34; Dt 16.13; Zc 14.6). Os judeus adultos que moravam na Judéia deviam anualmente participar das três festas em Jerusalém. Os judeus da Dispersão participavam ao menos de uma delas por ano, viajando por esse motivo à sua “cidade santa”. Entre as três, Pentecostes era a preferida dos peregrinos, devido ao clima ameno nesta época, que possibilitava o pernoite ao ar livre[25].
O Pentecostes no qual ocorreram os fatos acima descritos marca o aniversário da igreja cristã, e data dos anos 30 ou 33 de nossa era. Ocorreu, como vimos, 50 dias depois da crucificação de Jesus e 10 após sua ascensão. Pensa-se que esse Pentecostes caiu no primeiro dia da semana[26].
Sobre o Pentecostes, lemos no New Bible Dictionary[27]:
In LV. xxiii. 16 LXX reads pentekonta hemeras for the Hebrew hamissim yôm, ‘fifty days’, refferring to the number of days from the offering of the barley sheaf at the beginning of the Passover. On the fiftieth day was the Feast of Pentecost. Since the time elapsed was seven weeks, it was called (...) ‘feast of weeks’ (Ex. xxxiv. 22; Dt. xvi. 10). It marks the completion of the barley harvest, which began when the sickle was first put to the grain (Dt. xvi. 9), and when the sheaf was waved ‘the morrow after the sabath’ (Lv. xxiii. 11). It is also called (...) ‘feast of harvest’, and (...) ‘day of the first-fruits’ (Ex xxiii. 16; Nu. xxviii. 26). The feast is not limited to the times of the Pentateuch, but its observance is indicated in the days of Solomon (2 Ch. viii. 13), as the second of the three annual festivals (cf. Dt.xvi.16).
The feast was proclaimed as a ‘holy convocation’ on which no servile work was to be done, and at which every male Israelite was required to appear at the sanctuary (Lv xxiii. 21). Two baked loaves of new, fine, leavened flour were brought out of the dwellings and waved by the priest before the Lord, together with the offerings of animal sacrifice for sin - and peace - offerings (Lv. xxiii 17-20). As a day of joy (Dt xvi. 16) it is evident that on it the devout Israelite expressed gratitude for the blessings of the grain harvest and experienced heart-felt fear of the Lord (Je. v. 24). But it was the thanksgiving and fear of a redeemed people, for the service was not without sin- and peace-offerings. and was, moreover, a reminder of their deliverance from Egypt (Dt xvi. 12) as God’s covenant people (Lv. xxiii. 22). The ground of acceptance of the offering presuposes the removal of sin and reconciliation with God.
In the inter-testamental period and later, Pentecost was regarded as the anniversary of the law-giving at Sinai (Jubilees i. 1 with vi. 17). the Sadducees celebrated it on the fiftieth day (inclusive reckoning) from the first Sunday after Passover (taking the ‘sabbath’ of Lv. xxiii. 15 to be the weekly sabbath); their reckoning regulated the public observance so long as the Temple stood, and the Church is therefore justified in commemorating the first Christian Pengecost on a Sunday (Whit Sunday). The Pharissees, however, interpreted he ‘sabbath’ of Lv. xxiii. 15 as the Festival of Unleavened Bread (cf. Lv. xxiii. 7), and their reckoning became normative in Judaism after AD 70, so that in the Jewish calendar Pentecost now fallls on various days of the week..
Os cristãos, a partir daquele Pentecostes, “apropriam-se” da festa para ser o dia da promulgação do Evangelho e da recepção das primícias da colheita mundial do mesmo Evangelho. Na verdade, o Pentecostes assinala o estabelecimento formal do novo Israel pelo dom do Espírito Santo.
3.4. A Audiência Presente
Jesus, no evangelho segundo João, capítulo 16, versos 17 a 24, fala a respeito da inauguração da época do Espírito Santo. E agora, esta época está sendo de fato inaugurada, numa poderosa manifestação milagrosa do Espírito santo, com o som como de um vento impetuoso, e com línguas como de fogo pousando sobre cada um dos apóstolos, com a primeira proclamação pública da ressurreição de Jesus, proclamação esta feita para representantes do mundo inteiro, judeus e prosélitos ao judaísmo reunidos em Jerusalém para celebrar o Pentecostes, vindos de todas as terras do mundo que então se conhecia.
Um fenômeno como este relatado por Lucas tem, assim, antecedentes muito mais profundos. Trata-se das várias dispersões a que o povo de Israel foi submetido bem como da emigração voluntária dos judeus de sua pequena terra para o mundo inteiro, fenômeno este que, como em tempos mais recentes, já se verificava também naquela época. As condições econômicas, a pobreza da terra e a inclinação do judeu para o comércio foram a causa de constantes emigrações, que resultaram então nessa mescla de línguas e povos aos quais os judeus se alinharam. Por trás disso estão cinco etapas da grande dispersão dos judeus antes de Cristo.
A primeira grande deportação dos judeus ocorreu em 722 a.C., quando as dez tribos do Reino do Norte (Israel) foram levadas para a Assíria (2 Rs 17 e 18). Esse judeus nunca mais voltaram a se organizar como povo; foram completamente absorvidos pelos povos dominadores. É historicamente provável que restos das dez tribos “perdidas” tenham ido para muito além da Assíria, espalhando-se praticamente pelo mundo inteiro, especialmente na direção leste, penetrando no interior da Ásia. A segunda atingiu as duas tribos restantes do antigo Israel, o Reino de Judá, ou Reino do Sul. Isto se deu no ano de 586 a.C., quando Nabucodonosor, rei da Babilônia, levou para o cativeiro grande parte do que ainda restava dos judeus, especialmente a elite intelectual. Como sabemos, apenas um restante dos deportados voltou depois dos setenta anos do grande cativeiro babilônico, liderados por Esdras e Neemias, os quais reconstruíram Jerusalém e o templo, formando o novo povo de Israel.
Além destas duas dispersões - quase totais - houve mias três que merecem ser lembradas. Tiveram lugar depois da volta do resto dos judeus da Babilônia. A primeira destas deu-se no terceiro século a.C., em conseqüência do domínio egípcio sobre a Palestina. Não foi tanto uma deportação quanto uma emigração de judeus cativados pela secular e mui desenvolvida cultura egípcia. Este grupo, - formado especialmente por intelectuais - radicou-se na grande cidade de Alexandria, a qual tornou-se, ao lado de Atenas, a segunda metrópole da cultura helênica Ali, os judeus helenizaram-se.
No segundo século a.C., na época dos Macabeus, a Palestina caiu sob o domínio sírio. Nesta ocasião muitos judeus emigraram para o norte. Radicaram-se especialmente em Antioquia da Síria, a capital, e chegaram até a Cilícia, onde, em Tarso, estabeleceu-se uma forte colônia judaica. Tanto Antioquia quanto Tarso são-nos conhecidas a partir dos relatórios de Lucas em Atos: Antioquia tornou-se, mais tarde, sede da primeira igreja missionária do mundo cristão; dali também partiram Paulo e Barnabé, os primeiros missionários comissionados diretamente pela igreja. Tarso celebrizou-se através de Paulo. Os judeus foram inclusive ainda mais para o norte, estabelecendo colônias e congregações sinagogais em todas as cidades da Ásia Menor, nas províncias romanas da Ásia, Galácia, Ponto e Bitínia. Desta forma, tanto a religião quanto a cultura judaica exerceram influência sobre seus conterrâneos.
Por fim, a terceira leva de judeus que foi para o estrangeiro, a princípio não o fez voluntariamente. Quando Pompeu, aquele que posteriormente formou - com Júlio César e Crasso - um dos primeiros triunviratos do futuro Império Romano (a partir de 60 a.C.), conquistou a Palestina, levou de Jerusalém e de outras partes do país conquistado muitos escravos. Mais tarde a maioria deles foi alforrriada. Estes, bem como seus filhos, espalharam-se por todo império, fundando colônias judaicas em muitos lugares. Chegaram, como veremos, mesmo à longínqua África do Norte (Líbia e Cirene) Uma parte destes judeus voltou para a Palestina, onde também formaram congregações sinagogais separadas (At 6.9). Nos dias de Cristo havia mais de 150 colônias judaicas fora da Palestina, espalhadas por todo o Império Romano. E é destas colônias judaicas que saíam milhares de peregrinos rumo às grandes festas religiosas em Jerusalém - inclusive aqueles presentes ao nosso Pentecostes.
Segundo Lenski[28] - cuja tradução adotada em seu Commentary on the New Testament não confere literalmente com a tradução de Almeida -, a lista das nacionalidades ali representadas, presente nos versículos 9 a 11, está arranjada em três grupos: 3 + 8 + 3; o grupo de oito divide-se em quatro pares. Temos, assim,
Parthians and Medes and Elamites; and the Jews inhabiting Mesopotamia and Cappadocia. Pontus and Asia, both Phrygia and Pamphilia, Egypt and the parts of Libya, those along Cyrene; and temporary residents, Romans, both Jews and Proselytes, Cretes and Arabians, we hear them telling with our own tongues the great things of God.
As nações mencionadas descrevem um grande círculo em torno da Terra Santa, partindo do leste e girando a oeste, dali ao norte e terminando no sul. Ainda segundo Lenski, “those in the second group (Mesopotamia to Cyrene) were Jews; but the third group consisted of ‘both Jews and proslytes”[29]. Tal disposição torna simétrico o agrupamento das nacionalidades. “Ásia” aqui está referindo-se à grande província da qual Éfeso era a capital. Desta forma o primeiro grupo cita nações, o segundo, territórios ou regiões, e o terceiro, nações novamente.
O Egito é aqui citado juntamente com as “regiões da Líbia nas imediações de Cirene”. Simão, o qual carregou a cruz de Jesus, era cireneu. Josefo (in Antiguidades Judaicas, 14,7,2) cita uma interessante passagem de Strabo que mostra quão numerosos era os judeus não apenas no Egito mas também em Cirene. O terceiro grupo, assim como o segundo, apresenta residentes temporários em Jerusalém: romanos, cretenses e árabes. Contudo não podemos afirmar que tais tenham vindo a Jerusalém apenas para a festa: Lucas mesmo cuida em afirmar que estes “homens piedosos de todas as nações debaixo do céu” “estavam habitando em Jerusalém” (versículo 5), isto é, apenas por um certo tempo.
Parece-nos que o aposto “tanto judeus como prosélitos” (11) pertença apenas aos romanos, e não também aos “cretenses e árabes”. Os judeus distinguiam entre dois tipos de prosélitos: os “prosélitos do portão”, os quais não eram submetidos à circuncisão, observavam apenas os sete mandamentos contra a idolatria, blasfêmia, desobediência aos magistrados, assassinato, fornicação ou incesto, roubo ou furto, comer de sangue (segundo Gn 9.4), e eram restritos na participação dos cultos. O segundo grupo era o dos “prosélitos da justiça”, gentios que tornaram-se completamente judeus. Aqui Lucas parece estar referindo-se a estes últimos.
A respeito desta passagem Lenski conclui, afirmando que de toda esta exposição
we must retain the idea of order. All these disciples did not shout together in a Babel of foreing languages, but one spoke here, antother there, and each was understood by the nationality whose language he spoke. The foreign-born Jews heard what was spoken, understood what was said. From the account it cannot be ascertained wheter one disciple spoke more than one foreign language. Nor can we determine whether the disciple himself understood what he uttered and coud have translated it into Aramaic. This speaking was also not preaching the gospel to this crowd. Peter did the preaching. The tongues were just what Paul states in I Cor. 14.22, a sign to those who did not believe and, as he further states, one that should be followed by prophesying (preaching) even as Peter also presently began to preach and to explain this sign to all these Jews[30].
3.5. As Profecias: Lucas sobre o Antigo Testamento
Abundantes são as citações do Antigo Testamento presentes no livro de Atos. Num opúsculo de 39 páginas - segundo a edição de Almeida - encontramos aproximadamente 75 delas. Além das citações verificadas, o livro oferece verdadeira rede de alusões, reminiscências e vagos lembretes. Os livros mais citados, como era de se esperar, são os da Lei e dos Profetas, seguidos dos Salmos davídicos; os livros históricos são bem pouco explorados; já os poéticos e sapienciais, excetuando-se o saltério de Davi, não o são em absoluto.[31]
Em certo sentido, o discurso de Pedro no dia de Pentecostes é tipicamente um discurso de reformador “fundador de seita”[32] - quando o termo é entendido contextualmente em seu próprio sentido. O verdadeiro judaísmo preconizado por Lucas e Pedro inclui os judeus tradicionais e também todos os representantes das nações pagãs que respondem ao chamado de Deus. A visão do Israel de Lucas (Pedro) é aberta mas em continuidade com a tradição bíblica. Lucas não vê de modo algum um povo novo surgir a partir das nações. O que o marca não é tanto a experiência da entrada dos pagãos na igreja. O que mais o impressiona é a continuidade com o passado. Para ele a missão há de interpretar-se a partir dos profetas, sobretudo Isaías e Joel. Os profetas anunciaram que representantes das nações viriam unir-se com o Israel dos judeus e tinham o direito de formar parte também de Israel. Os prosélitos preparam essa vinda dos representantes das nações.
A missão de Lucas é, assim, a realização das profecias. O Espírito derramado é o Espírito anunciado pelos profetas para os últimos dias. Não é a experiência da vivência que é a fonte da teologia. Esta é apenas confirmação das profecias.
O que chama a atenção no discurso de Pedro é naturalmente a sua audácia quando assume um papel de chefe de Israel, um papel semelhante ao papel dos antigos profetas. Não se importa com o que podem pensar os chefes tradicionais do povo. Instala-se no lugar deles sem pedir licença a ninguém. Fala para o povo de Israel inteiro; potencialmente, fala como porta-voz e líder de uma futura “nova igreja”, separada da igreja tradicional[33].
3.5.1. O Conteúdo do Discurso de Pedro
Observações preliminares ao discurso de Pedro já foram feitas no segundo capítulo deste trabalho. Quanto ao seu conteúdo, o discurso é o testemunho sobre Jesus, que é a base da fé e da identidade das comunidades lucanas. Aí estão os textos usados nas disputas com os judeus, os argumentos invocados contra as autoridades judaicas da época. Literariamente Lucas adapta esse conteúdo às duas circunstâncias que motivam o discurso: é preciso que o discurso explique o fato de Pentecostes e seja o modelo do discurso de testemunho face ao judaísmo.
Muitos autores perguntaram-se a propósito das raízes históricas do discurso. Haveria no discurso elementos arcaicos de uma teologia primitiva que viria realmente de Jerusalém dos primeiros tempos? Não é fácil mostrá-lo. O mais provável é que a própria teologia de Lucas, sendo muito mais conservadora do que a de Paulo[34], conservou expressões e estruturas de fato arcaicas. Mas um cristianismo mais arcaico manteve-se naturalmente nas comunidades em que os judeus formavam um grupo importante. O arcaísmo na doutrina é sinal do judeu-cristianismo, ou cristianismo judaico. Daí rebate-se também a tentativa de incluir-se em tal discurso uma suposta tendência “adopcionista”: Pedro, falando por meio de Lucas e suas fontes legítimas, estava ainda imaculado com relação a tais idéias.
A resposta à indagação da audiência ali presente vem da parte de Pedro nos termos do cumprimento da profecia de Joel, capítulo 2, versos 28 a 32, reproduzida nos versículos 17 a 21 deste capítulo. Pedro afirma que os homens que viam falando em línguas não estavam de fato embriagados, sendo aquela “a terceira hora do dia” (ou seja, nove horas da manhã; versículo 15); do contrário, sobre eles foi derramado o Espírito de Deus, prometido por Deus para “toda a carne”: filhos e filhas, jovens, velhos, servos e servas (versículos 17 e 18). Tal manifestação fazia parte dos “prodígios em cima no céu e sinais em baixo na terra” (19) que precederiam o “grande e glorioso dia do Senhor” (20), a fim de mostrar a todos o único meio de salvação: “invocar o nome do Senhor” (21).
Com isto claro, Lucas (Pedro) começa o anúncio de Jesus pela memória da sua vida terrestre e do seu ministério de enviado do Pai. A vida de Jesus foi um apelo de Deus ao seu povo. Os sinais de Jesus mostravam que Deus estava com ele. Daí apresentá-lo como “o nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós, com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou entre vós como vós mesmos sabeis” (22).
Depois de seu ministério, a morte. Tal morte é vista aqui como fato histórico com responsabilidades históricas. É verdade que Deu sabia tudo de antemão e permitiu que tudo acontecesse. Desse modo a tradição cristã torna o fato mais compreensível: como compreender que Deus tenha sido vencido pelos homens? Deus teria perdido todo o poder? Não, na verdade não: Deus tinha tudo previsto e a tudo permitido. Essa previsão de Deus, no entanto, não inocenta a responsabilidade dos homens: Judas, os judeus e os romanos (23). Lucas, assim, permanece fiel à interpretação da morte de Jesus que deu no seu evangelho.
E a ressurreição é a reposta de Deus ao homicídio dos judeus. Desfaz o plano dos adversários. A morte aqui (versículo 24) é personificado como em Sl 17.5-6, 114,3, 2 Sm 2.6 e Jó 39.2. Deus anula os esforços da morte. E tudo isto é, mais uma vez, explicado pelas Escrituras. É o que segue na citação davídica do Salmo 16, versículos 8-11, reproduzida aqui nos versos 25 a 28. É mais uma profecia que se cumpre. Jesus não poderia ser dominado pela morte, pois a Escritura assim o atesta.
Os versículos 25 e 26 referem-se à vida terrena de Jesus. Deus sempre estivera ao seu lado. No evangelho de Lucas a proteção de Deus ainda é mais visível do que nos outros evangelhos[35]. Já os versículos 27 e 28 descrevem sua morte e ressurreição. Jesus morreu, mas ainda não foi abandonado; a ressurreição exprime isto. Cristo não conheceu a corrupção da morte.
Os judeus mostravam o túmulo de Davi na colina Sul da cidade, dentro dos muros de Jerusalém. O túmulo sobreviveu às destruições do ano 70 e somente foi destruído no fim da insurreição de Bar Kokba (132-5 A.D.). No tempo de Lucas ela ainda existia, mas certamente Lucas não tinha conhecimento dele[36]. Usa, porém, textos de polêmica tradicional com os judeus. Está claro que Lucas não cria os seus argumentos de Escritura, mas procura-os no tesouro de tradição oral que circula entre os cristãos. A este texto do Salmo 16 estava ligada na tradição a referência ao túmulo de Davi (29).
Para todos os judeus estava claro que Davi é o autor de parte considerável dos Salmos, e que era profeta. Desta forma, os Salmos têm valor profético. Além disso, consta nos livros dos Reis que Davi tinha recebido promessas de um sucessor e que o Messias seria um dos seus sucessores. Lucas atém-se à tradição judaica que quer que o Messias seja filho de Davi (30). Esta tradição devia ser a mais popular já que todas as fontes do Novo Testamento se referem a ela[37]. Para os fariseus, os quais acreditavam na ressurreição no fim dos tempos, o texto do Salmo 16 poderia valer para qualquer judeu piedoso: Deus não os abandonaria na região dos mortos (no Hades, em grego), e não conheceriam a corrupção definitiva. Lucas, contudo, personifica mais uma vez a profecia na ressurreição de Cristo, já no terceiro dia após sua morte (31).
Por fim, a repetição da proclamação da ressurreição introduz a menção do testemunho: “do que todos somos testemunhas” (32) A palavra viva aplica e concretiza a letra da Escritura. Esta intervém nas mãos e nas citações dos apóstolos.
[1] ALAND, Barbara et allii. The Greek New Testament. Stuttgart: Deutsche Biblegasellschaft. 4ª ed., 2ª reimpressão, 1994. Pp. 411-4.
[2] A BÍBLIA SAGRADA. ANTIGO E NOVO TESTAMENTO. Edição Revista e Atualizada no Brasil - 2ª Edição. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil. 1993. Pp. 127-8 (Novo Testamento).
[3] FLOR, Paulo Frederico. Manual de Isagoge do Novo Testamento I. Escola Superior de Teologia do Instituto Concórdia de São Paulo. [s.ed.], 1996. P. 38.
[4] BÍBLIA SAGRADA. Petrópolis: Vozes/Santuário. 33ª ed., 1982. P. 1301.
[5] FLOR, op. cit., p. 38.
[6] Id., ibid.. O grifo é meu.
[7] Id. ibid.. O grifo é meu.
[8] Quanto a estes “irmãos de Jerusalém”, Lucas mesmo relata em At 2, versículo 1, que, como veremos a seguir, na manha de Pentecostes estavam reunidos cerca de 120 irmãos, em companhia dos apóstolos, os quais tomaram parte na manifestação miraculosa que o Espírito Santo operou na ocasião: “e apareceram, distribuídas entre eles, línguas como de fogo, e pousou uma sobre cada um deles” (versículo 3). Ora, esta grande quantidade de irmãos deve ter fornecido subsídios suficientes para que Lucas compilasse seu relato a respeito do Pentecostes. É sabido que personagens como Tito e Timóteo não estavam ainda reunidos aos cristãos àquela época; quanto a Barnabé, Silas e Ágabo e Pedro, não nos atrevemos a afirmar cabalmente que estivessem presente no local; contudo, seguimos a sugestão do Professor Paulo FLOR, op. cit., p. 40.
[9] Id., p. 40.
[10] Id., ibid. O grifo é meu.
[11] HALE, id., p. 41.
[12] Id., p. 42.
[13] BÍBLIA SAGRADA, op. cit., p. 1301.
[14] FLOR, op. cit., p. 42.
[15] “Notemos que na tradução deste versículo aparece o substantivo “línguas” no plural, enquanto que o verbo - tansliterado - ekáthisen, sentou-se, pousou, está no singular. O texto original transmite-nos a impressão de que o fogo veio numa espécie de cacho que, ao tornar-se visível, ramificou-se, distribuindo-se desta maneira - o mesmo fogo - em forma de línguas sobre cada um dos reunidos. Deve-se notar, no entanto, que não se tratava de fogo comum, como conseqüência de combustão de matéria, conhecido na terra. Não eram “línguas de fogo”, mas sim “línguas como de fogo”. Aqueles que viram o fenômeno certamente pensaram que se tratava de fogo. Visto, no entanto, se tratar de um sinal, de um fenômeno sobrenatural é evidente que o “fogo” não poderia ser natural.” ROTTMANN, Joahannes H. Atos dos Apóstolos no Contexto do Século XX. Estudos e Reflexões. Volume I: Atos 1-5. Uma Publicação do Departamento de Comunicação da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Porto Alegre: Concórdia. 1979. P. 63. O grifo é meu.
[16] Veja-se também Mt 28.19, Mc 16.15 e Lc 24.47-48.
[17] Para tanto, veja-se At 10.46; 11.15; 19.6; 1 Co 12-14.
[18] Para tanto, veja-se Nm 11.25-29; 1 Sm 10.5-13; 19.20-24; 1 Rs 22.10. Tal carisma, contudo, era interpretado como embriaguez pelos não-iniciados no cristianismo, motivo pelo qual Paulo repetidas vezes adverte os cristãos contra os perigos do álcool.
[19] BÍBLIA SAGRADA. Op. cit., p. 1303.
[20] LENSKI, op. cit., p. 69.
[21] FLOR, Paulo Frederico. Exegese de Gálatas. Estudo não-publicado administrado na disciplina “Exegese do Novo Testamento II”, na Escola Superior de Teologia do Instituto Concórdia de São Paulo, setembro a novembro de 1998.
[22] LENSKI, op. cit., p. 38. Conhecemos dois lugares onde os discípulos reuniam-se em Jerusalém. O primeiro deles era aquele “cenáculo”, de propriedade de um discípulo anônimo, onde Jesus, com seus discípulos, celebrou sua última ceia e instituiu a Santa Ceia. Este era “espaçoso, mobiliado e pronto” (Mc 14.15). É bem possível que os discípulos, mesmo após a ascensão, se reuniam exatamente neste cenáculo, de lembrança tão íntima para eles. Posteriormente, para os seus cultos, os cristãos encontravam-se também numa outra casa - e certamente não apenas nesta - a saber, a casa de Maria, mãe de Marcos, e que está especialmente ligada à história de Pedro (At 12.12ss). O mais provável e correto, ao que nos parece, é pensar no cenáculo, mencionado um pouco antes por Lucas, como sendo o lugar dos acontecimentos do Pentecostes.
[23] Id., ibid..
[24] HALLEY, Henry H. Manual Bíblico. Um Comentário Abreviado da Bíblia. São Paulo: Vida Nova. 5ª ed., 3ª reimpressão, outubro de 1987. P. 494.
[25] ROTTMANN, op. cit., p. 62.
[26] Id., p. 493.
[27] DOUGLAS, J.D. The New Bible Dictionary. Grand Rapids: Eerdmans Publishing Co. 1ª ed., 2ª reimpressão, 1964. P.964. O grifo é meu.
[28] LENSKI, op. cit. p. 66.
[29] Id., ibid.
[30] Id., p. 68.
[31] DELARUE, Georges. Os Atos dos Apóstolos. Infância da Igreja. São Paulo: Paulinas. 1970. Pp 119-21.
[32] COMBLIN, José. Comentário Bíblico. Atos dos Apóstolos. Vol I: 1-12. Petrópolis: Vozes/Imprensa Metodista/Sinodal. 1988. P. 94.
[33] Id., p. 96.
[34] Id., p. 97.
[35] Id., p. 100.
[36] Id., p. 101.
[37] Veja-se, para tanto, 2 Sm 7, 12-13 e Sl 132.11.