INSTITUTO CONCÓRDIA DE SÃO PAULO
Escola Superior de Teologia
IRINEU DE LYON:
LIVRO V: ESCATOLOGIA CRISTÃ
Trabalho de Pesquisa apresentado ao Professor Doutro Erní W. Seibert em cumprimento à exigência da Disciplina “Teologia Patrística”
CLAUDIO R. SCHREIBER
GLEISSON R. SCHMIDT
Alunos do 3º Ano de Teologia
São Paulo, abril de 1999
SUMÁRIO
SUMÁRIO.................................................................................................................................................2
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................................3
CAPÍTULO 1.............................................................................................................................................4
1.1. Sua Vida..............................................................................................................................................4
1.2. Ensino e Obras de Irineu.....................................................................................................................4
CAPÍTULO 2. “Escatologia Cristã”: Uma Síntese Comentada.................................................................7
2.1. Introdução...........................................................................................................................................7
2.2. Primeira Parte: Da Ressurreição da Carne..........................................................................................8
2.2.1. A Cristologia de Irineu.....................................................................................................................8
2.2.2. A Redenção......................................................................................................................................8
2.2.3. “O homem é corpo, alma e espírito”: a Tricotomia de Irineu..........................................................9
2.2.4. A Ressurreição de Cristo e a Obra do Espírito................................................................................9
2.3. Segunda Parte: Triunfo de Cristo......................................................................................................10
2.4. Terceira Parte: O Reino Eterno.........................................................................................................11
CAPÍTULO 3: O Ensino da “Escatologia Cristã” e sua Aplicabilidade Hoje.........................................13
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................15
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................................16
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INTRODUÇÃO
Vimos, por meio deste trabalho de pesquisa, realizar, ao mesmo tempo, uma exposição biográfica a respeito de Irineu de Lyon, literato cristão do segundo século A.D., acompanhada da análise de seu V Livro, entitulado Escatologia Cristã. Por fim, queremos ainda proceder uma aplicação do conteúdo desta obra em nosso próprio contexto eclesiástico atual.
CAPÍTULO 1
O Autor
1.1. Sua Vida
Irineu (120/140 a 202 A.D.), considerado santo pela Igreja Romana, foi o segundo bispo de Lyon, sucedendo o mártir bispo Photinus no ano de 177 ou 178 A.D., quando ele próprio tinha aproximadamente 37 anos. Era nativo da Ásia Menor, provavelmente de Esmirna, onde em sua juventude foi pupilo de Policarpo. Sua passagem a Gália, onde caracterizou-se como um estimado presbítero da igreja de Lyon imediatamente antes da morte de seu predecessor episcopal é um dos mistérios da história[1].
Condescendente a seu título de Pacificador, como afirma Eusébio, foi Irineu que buscou estabelecer a paz entre Vitor de Roma e Polícrates de Éfeso, quando Vitor tratava da excomunhão deste. Posterior ao evento que passou à história como a “Controvérsia Oriental”, apaziguada pela Concordat entre Leste e Oeste, preparada por Policarpo e Anicetus. Vitor, bispo de Roma, com seu espírito turbulento não queria aceitar o compromisso assumido por seu antecessor. Irineu reconduze-o a um espírito católico, acalmando seu temperamento impetuoso. Que se não fosse a intervenção de Irineu, tal discórdia teria destruído a unidade da igreja, foi reconhecido até mesmo no Concílio de Nicéia, em 325.
Depois deste incidente, ocorrido nos idos de 190, Irineu desaparece da história e presume-se ter morrido em torno do ano de 202. Até Gregório de Tours ter escrito sua História dos Francos não encontramos Irineu citado como mártir[2]; tal testemunho, assim, é necessariamente suspeito, especialmente ao considerarmos o fato de que Eusébio, que teve um bom conhecimento de Irineu, não afirma nada a respeito de seu suposto martírio.
1.2. Ensino e Obras de Irineu
As diversas obras que Irineu escreveu foi na sua própria língua, o grego, e dessas obras, apenas duas foram conservadas inteiras: Denuncia e refutação da falsa gnose (180-185), cujo texto completo ainda é de uma tradução muito antiga, que não tem data muito precisa. A composição deste livro ocorreu por causa de um pedido que um amigo lhe havia feito, amigo este que desejava conhecer melhor o sistema gnóstico de Valentino. No primeiro livro ele relata este sistema colocando em oposição a doutrina da Igreja. Depois coloca uma visão global do gnosticismo, começando por Simão o mágico. Após desmascarar todo o sistema gnóstico ele dedica os livros 2 a 5 à refutação. Na sua Demonstração da pregação apostólica fala, primeiramente, sobre a fé cristã (Deus, Trindade, criação e pecado original, redenção); na segunda parte segue-se uma argumentação comprobatória com base no Antigo Testamento: Jesus como filho de Davi, Cristo, Filho de Deus; a glória da cruz e o reino de Deus. Dos outros escritos conservaram-se vários fragmentos importantes, como as suas cartas.
Irineu resumiu a cristologia de sus antecessores. A redenção há de ser real, e não consiste em comunicar apenas uma gnose. Cristo se fez homem para divinizar a humanidade. Cristo por sua vitória sobre a tentação do demônio, tornou-se o antitipo de Adão. Os primeiros homens, criados a imagem e semelhança de Deus, perderam esta imagem com a queda em pecado, mas Cristo restaurou novamente esta semelhança. Irineu, assim como Justino e Tertuliano era milenarista[3]; isto podemos observar em todos seus escritos, principalmente quando fala com respeito ao Anticristo, que virá e depois de ter destruído todas as coisas deste mundo; e depois deste ter reinado por três anos e seis meses, assentado no templo de Jerusalém, o Senhor virá do alto do céu, sobre as nuvens, na glória do Pai e o lançará no lago de fogo com todos os seus seguidores; e para os justos os trará os tempos do reino.[4]
Seu episcopado foi notável por seus esforços “in season and out of season”[5] em prol da evangelização do sul da Gália. Parece-nos ter enviado missionários a outras regiões que hoje integram a França. A despeito do paganismo e das heresias, ele tornou Lyon uma cidade cristã. Mas Irineu, como vimos, ficou conhecido sobretudo devido à sua oposição à especulação gnóstica, confirmando a doutrina apostólica como herdada pela igreja. Esta doutrina era para ele a verdadeira gnwsij. MORRISON[6] cita-o, como segue:
It is therefore better and more profitable to belong to the simple and unlettered clas and by means of love to attain to nearness to God than, by imagining ourselves learned and skilful, to be found (among those who are) blasphemous (...) It is therefore better, as I have said, that one should have no knowledge whatever of any one reason why a single thing is creation has been made, but should believe in God and continue in His love than that, puffed up through knowledge of this kind, he should fall from that love which is the live of man and that he should search after no knowledge except Jesus Christ (...).
CAPÍTULO 2
“Escatologia Cristã”: Uma Síntese Comentada
A exemplo de outras obras, Irineu estruturou o seu V Livro em 3 partes, além da introdução e conclusão - esta última no capítulo 36,3: a) a ressurreição da carne: discussão e refutação da exegese gnóstica (capítulos 1 a 14); b) a existência de um só Deus Criador e Pai, comprovada por três fatos da vida de Jesus (capítulos 15 a 24); c) Deus Criador e Pai é um só: comprovação pelos ensinamentos da Escrituras sobre o fim dos tempos (capítulos 26 a 32,2)[7].
2.1. A Introdução
Nos parágrafos iniciais da Escatologia Irineu dirige o escrito ao seu “caro amigo”, destinatário dos escritos anteriores, nos quais apresenta todos os hereges e expõe suas doutrinas, refutando-as, quer sejam baseadas em seus ensinamentos próprios, quer seja sobre provas diversas. Caracteriza a Igreja como portadora da mensagem “prenunciada pelos profetas, levada à perfeição por cristo, transmitida pelos apóstolos”[8], a qual “guarda intacta em todo o mundo e apresenta a seus filhos”[9]. Expõe ainda o conteúdo e objetivo do presente escrito: trata-se da “exposição e refutação da pseudognose”[10], a qual procura trazer “argumentos tirados da restante doutrina do Senhor e das epístolas do Apóstolo”[11], com a finalidade de combater os hereges, reconduzindo-os novamente à Igreja de Deus, ao mesmo tempo em que se confirmam os neófitos na fé desta Igreja.
Desde o início o autor dá ênfase à gnw/sij, ao conhecimento - ênfase esta que, como veremos, confirmar-se-á nos capítulos subsequentes. Afirma ele: “Necessário será que tu e todos os que lerão este escrito o façam com grande aplicação, lendo o que foi escrito precedentemente, a fim de conhecer as teses às quais nos contrapomos”[12].
2.2. Primeira Parte: Da Ressurreição da Carne
Ireneu afirma com muita clareza aquela doutrina que hoje conhecemos como concernente às duas naturezas de Cristo: diz ele que “não teríamos absolutamente podido aprender[13] os mistérios de Deus se o nosso Mestre, permanecendo Verbo, não se tivesse feito homem”[14]. Apresenta a lembrança de Cristo como algo ainda bastante presente, e a comunhão com ele está em imitar suas ações e praticar suas palavras.
Deus mesmo predestinou os crentes à salvação[15]. Os homens, obra modelada por Deus, foram dominados - “alienados” - pela “Apostasia” - termo que pode ser entendido como referindo-se ao próprio demônio; desta forma, Cristo veio resgatar os homens desta dominação. Esta idéia de “santidade primordial”[16] do homem é essencial no pensamento de Irineu e influenciará toda a sua argumentação posterior.
Neste ínterim o autor fornece subsídios necessário para o estabelecimento de sua própria cristologia, como segue.
2.2.1. A Cristologia de Irineu
Cristo é o Verbo preexistente de Deus que se fez homem: é “Verbo onipotente e homem verdadeiro”[17] - detentor das duas naturezas, portanto. Perfeito desde antes da criação e conhecedor dos segredos do Pai, revelou-os aos homens, trazendo-lhes dons celestiais: o crescimento e a semelhança com ele em incorruptibilidade, e isto graças ao seu sacrifício vicário.
2.2.2. A Redenção
A redenção é obra sempre externa ao homem, o que deve levar-lhe à humildade diante de Deus. Por outro lado, fazendo uso de diversas citações dos escritos paulinos - principalmente da 2ª Epístola aos Coríntios - afirma que o poder de Deus manifesta-se na carne. Esta, assim, não é estranha à sabedoria divina, ainda que a vida eterna seja indubitavelmente superior à carnal.
Em todo o escrito Irineu usa claramente a linguagem filosófica corrente na época. Neste ponto, onde argumenta sobre o poder de Deus na fraqueza, isto torna-se ainda mais evidente pelo uso da imagem do Demiurgo grego para comprovar a bondade e poder do Pai[18].
2.2.3. “O homem é alma, corpo e espírito”: a Tricotomia de Irineu
Com base no Antigo Testamento - o qual chama de “Escrituras” -, no testemunho dos “presbíteros, discípulos dos apóstolos”[19] e em 1 Ts 5.23, Irineu afirma sua tricotomia. O homem natural, “psíquico e carnal”, é dotado de carne e alma - esta, inclinada para as concupiscências terrenas; aquela, do mesmo plasma no qual o Verbo encarnou-se. Já o homem espiritual - citando Paulo -, o é graças à efusão do Espírito. Assim o corpo carnal torna-se templo de Deus.
2.2.4. A Ressurreição de Cristo e a Obra do Espírito
A ressurreição de Cristo é a garantia da ressurreição dos espirituais, momento no qual o corpo terreno recebe o dom da incorruptibilidade. E o Espírito Santo é parte daquela glória prometida por Deus que serve para nos “predispor e preparar para a incorruptibilidade, acostumando-nos paulatinamente a compreender e a trazer Deus”[20]. Desta forma os homens que recebem o enxerto do Espírito de Deus não servem mais às concupiscências da carne, vivendo em tudo conforme a razão[21].
A esta altura é relevante observar que Irineu caracteriza com bastante clareza as opera ad extra das três pessoas da Santíssima Trindade, conferindo ao Pai a obra da criação, ao Verbo a redenção e a participação naquela, e ao Espírito “de Deus” ou “do Filho” a obra da santificação do homem. Quanto ao status de cada pessoa, contudo, o Espírito Santo parece por vezes ser subordinado à vontade do Pai e do Verbo - particularmente deste último, decorrente da ênfase dada à obra de Cristo.
A carne é capaz tanto de corrupção como de incorrupção, mas uma destas afasta a outra. Assim, tanto quanto a morte, o Espírito Santo também pode apoderar-se do homem carnal e impingir-lhe vida. E é a mesma carne terrena que ressuscita para a eternidade, mas para a vida apenas a carne daqueles que não vivem como se tivessem só carne e alma, mas também o Espírito de Deus. Refutando os “hereges” que ensinavam diferentemente - a saber, que “a carne e o sangue não herdarão a vida”[22] - recorre à obra de Cristo: “Se, com efeito, a carne não devia ser salva, o Verbo de deus não se teria feito carne e, se não se devia pedir conta do sangue dos justos, o Senhor não teria tido sangue”[23]
2.3. Segunda Parte: Triunfo de Cristo
Os vínculos que nos sujeitavam a morte, que era o pecado cometido por Adão e Eva, foram quebrados quando Cristo veio, concebido na virgem Maria, e levou os nossos pecados com ele no lenho da cruz. Eva foi afastada de Deus pela fala de um anjo, por transgredir a sua Palavra, Maria, no entanto, recebeu a boa nova pela boca de um anjo e trouxe Deus em seu seio, obedecendo assim a Palavra.
Os hereges são estúpidos, na verdade não sabem nada de Deus. Colocam outros deuses em lugar do Deus criador, outros negam a Jesus, dizem que não é Deus e que foi gerado por José, e assim por diante.
Os que abandonam as doutrinas da Igreja, pensam que estão nos caminhos certos, sendo que estão na verdade num caminho totalmente errado. Pensam que são mais que o próprio Deus verdadeiro. É Deus que faz o homem ver, ouvir e falar. A igreja é o paraíso plantado neste mundo, portanto pode comer de todas as árvores deste paraíso, alimentando-se de todas as Escrituras divinas, mas sem intelecto orgulhoso.
Cristo nos livrou da morte eterna. Venceu o inimigo, e isso foi anunciado quando Deus disse à serpente: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela; esta te esmagará a cabeça e tu lhe ferirá o calcanhar”. E este seria aquele, semelhante a Adão, que devia nascer de uma virgem. O inimigo não teria sido vencido com justiça se o homem que o venceu não tivesse nascido de mulher, pois foi por meio de uma mulher que este inimigo dominou o homem. Assim, como pela derrota de um homem nossa raça desceu à morte, pela vitória de outro chegamos à vida.[24]
Cristo então provou ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Jejuou quarenta dias, e teve fome, como qualquer homem normal também teria, provando ser verdadeiro homem. E conseguiu vencer a três tentações do Diabo, provando assim ser o verdadeiro Deus. Afastou de si Satanás definitivamente, pois ele foi derrotado pela lei.
Deus é um só, só a ele devemos servir, isso ele provou quando, por intermédio de um homem venceu o inimigo pela lei. O verbo de Deus é o mais forte de todos, pois venceu o adversário. Por isso devemos servir a Deus, não tentando-o, mas tendo o sentimento de humildade perante todas as coisas.
No Paraíso podia-se comer todas as frutas do Jardim, menos a da árvore do fruto do conhecimento do bem e do mal, foi isso que Deus disse a Adão e Eva no começo. O diabo, quando descobriu isso induziu Eva a que comesse dessa fruta, dizendo que era mentira o que Deus havia dito, disse que na verdade os olhos dos dois seriam abertos e eles seriam como deuses também. Comeram e desobedeceram as ordens de Deus, e essa desobediência que atraiu a morte sobre todos. Sendo assim, o homem depois que se separou de Deus considerou como inimigos até os parentes e assim começou toda a desordem, homicídios e outros males. Então, o justo juízo de Deus se aplica a todos os homens sem exceção, e da mesma forma.
Na verdade o verdadeiro Deus envolve os seus seguidores, e mesmo assim, enquanto alguns se unem a Deus e buscam a sua luz, outros se afastam dessa luz e se separam de Deus., e os que estão com Deus (a sua direita) serão chamados para o reino do Pai, e os que estão a sua esquerda serão mandados para o fogo eterno, pois eles mesmos escolheram este caminho.
Muitos surgirão para tentar seduzir os homens e assim tentarão fazer com que muitos se afastem de Deus (Anticristos), sendo que muitos seguirão a estes e se afastarão de Deus, sendo condenados depois, mas os que permanecerem firmes em Deus terão a recompensa com Deus o Pai. O numero desse Anticristo será 666, recapitulando em si toda a mistura do mal que se desencadeou antes do diluvio em conseqüência da apostasia dos anjos, ou seja, na besta que há de vir, haverá recapitulação de toda a iniquidade e de todo o engano, para que todo o poder da apostasia que fora recolhida nela, seja lançada na fornalha ardente. Sendo assim, João nos deu a conhecer o número dela, para que estejamos atentos a sua vinda, sabendo quem é.
2.4. Terceira Parte: O Reino Eterno
Os hereges dizem que este mundo já é o inferno, e assim, quando eles morrerem irão para um lugar que está acima dos céus, e até do próprio criador, deixando o seu corpo aqui na terra, para irem junto com a mãe ou pai que eles mesmos inventaram. Se estas coisas fossem verdades, porque o Senhor haveria de ter ressuscitado no terceiro dia? Poderia logo ter morrido e subido para junto do Pai, abandonando o seu corpo aqui na terra. Mas, ressuscitando e subindo ao céu com corpo e tudo, mostrou que isto também aconteceria com os seus discípulos. Assim, nós também devemos esperar o momento da nossa ressurreição, e sendo ressuscitados, serão levados para junto com o Pai, os que ele julgar justos. Os que são pela fé são abençoados juntamente com Abraão, que teve fé quando Deus prometeu a herança da terra a Abraão e a sua posteridade.
Até Isaías profetizou sobre estes tempos, quando disse que tudo será em harmonia, o lobo pastará com o cordeiro e o leopardo com o cabrito. Deus é rico em todas as coisas e é preciso que quando o mundo for restabelecido em seu estado primeiro, todos os animais selvagens obedeçam ao homem, sejam-lhe submissos, e voltem ao primeiro alimento que Deus lhes deu,, assim como estavam submetidos a Adão antes da sua desobediência e comiam dos frutos da terra.[25] Todas as promessas feitas pelo Pai, não se dirigem somente aos profetas e aos pais, mas a todas as Igrejas de todas as nações.
Concluindo tudo isto, é indicado um só Pai, o que modelou o homem, aquele que prometeu a herança da terra, que a concederá na ressurreição dos justos e cumprirá as promessas no reino de seu Filho. Também, único é o Filho, que cumpriu a vontade do Pai.[26]
CAPÍTULO 3
O Ensino da “Escatologia Cristã” e sua Aplicabilidade Hoje
Ao estudarmos a “Escatologia”, obra apologética de Irineu, pudemos observar com clareza suas tendências milenistas. Este pressuposto inicial já deve servir de advertência quando queremos tratar de sua aplicabilidade ou contextualização para os dias atuais. Sua obra é válida, como veremos a seguir, em vários pontos doutrinários. Contudo, o fato acima citado deve levar-nos a depurar seus ensinos de tal forma a aproveitarmos apenas aquilo que de fato expressa uma pura doutrina cristã ortodoxa, imaculada de opiniões que reflitam uma exegese inadequada do texto bíblico.
A despeito disto, vale-nos o seu ensino a respeito da humanidade de Cristo. Sabemos ser um ensino muito próprio para a sua época, tendo em vista o combate às heresias gnósticas e docéticas - ou pseudo-docéticas - que na época afloravam no seio da Igreja. Atualmente tal ensino foi em certo ponto reforçado pela teologia liberal ao estudar o “Jesus histórico”, de tal forma que mesmo para os teólogos não-ortodoxos têm clareza quanto à humanidade do Salvador. Mas vale-nos a ênfase dada por Irineu ao fato de Cristo ter sido verdadeiramente homem sem deixar de ser o Verbo preexistente de Deus. As Confissões Luteranas mesmo o citam:
Por causa dessa união e comunhão pessoais da natureza divina e da humana em Cristo, cremos, ensinamos e confessamos também, de acordo com nossa singela fé cristã, o que se diz da majestade de Cristo segundo a sua humanidade à destra do poder onipotente de Deus, e o que daí se segue. Tudo isso nada poderia nem poderia subsistir, se essa união e comunhão pessoais das naturezas da pessoa de Cristo não existisse realiter, isto é, de fato e de verdade[27]
No entanto, não devemos abandonar o conceito das duas naturezas de Cristo em Irineu, haja visto que há tendências “demitologizantes” da divindade de Cristo ainda correntes em nossa moderna teologia[28].
Vale-nos ainda o ensino de Irineu para, dentro de nossa ortodoxia, refutar os ensinos errados - e muito atuais - concernentes à Santa Ceia. Novamente, os confessores luteranos citaram-no com o intuito de refutar doutrinas erradas quanto à verdade escriturística. Lemos na Fórmula de Concórdia
Confessam[29], segundo as palavras de Irineu, que neste sacramento há duas coisas, uma celeste, a outra terrena. De acordo com isso, mantém e ensinam que com o pão e o vinho o corpo e sangue de Cristo estão verdadeira e essencialmente presentes, são oferecidos e recebidos. E ainda que não crêem numa transubstanciação, isto é, numa transformação essencial do pão e vinho no corpo e sangue de Cristo, e também não mantém que o corpo e sangue de Cristo são inclusos no pão localiter, isto é, localmente, ou que em alguma outra maneira são permanentemente unidos com ele à parte do uso do sacramento, concedem, todavia, que pela união sacramental o pão é o corpo de Cristo, etc.[30]
A despeito de sua doutrina quiliasta, é ainda de grande valia o consolo que Irineu oferece aos cristãos em vista da certeza da glória eterna, como vimos no capítulo anterior. Na “Escatologia” ele expressa uma certeza irredutível da vitória final de Cristo e do gozo eterno de seus fiéis no reino prometido. Tal consolo é sempre válido, também para os cristãos. Ainda, a conexão que faz entre o Antigo e Novo Testamentos, este como cumprimento daquele, e a igreja como detentora e anunciadora do cumprimento das promessas de Deus, particularmente de sua promessa principal, a salvação promovida por Cristo.
Contudo, alguns pontos de sua exegese devem aguçar ainda mais nosso cuidado. Sua interpretação alegorizante expressa uma exegese incompleta, a qual devemos, como dissemos acima, depurar. Tais problemas são encontrados quando traça comparações entre Eva e Maria, Adão e Cristo, entre outras.
Assim, é com cuidado e rigor analítico que devemos estudar a obra de Irineu. O mesmo zelo com o qual o fizeram os confessores; apenas fazendo uso disto é que poderemos extrair os ensinos que nele estejam biblicamente corretos, citá-los e aplicá-los quando se fizerem necessários.
CONCLUSÃO
Tornou-se ponto claro e pacífico, após o estudo da “Escatologia Cristã” de Irineu, que tal obra, ao mesmo tempo em que expressa uma teologia ainda mais pura que aquela que sucedeu a todas as controvérsias no campo da interpretação após o “fechamento” do cânone bíblico neo-testamentário nos idos do terceiro século, contém também elementos que mereçam ser melhor analisados, com cautela. Expressa uma fé viva, primordial, característica de uma igreja missionária que buscava firmar-se diante de um mundo pagão, também em termos de doutrina e ensino, mesmo que para isso tenha que refutar com veemência os ataques dos inimigos da fé cristã. Por isso é uma apologia. E é por todos esses motivos que devemos hoje fazer dele o mesmo uso que fizeram os confessores, a saber, na medida em que seus ensinos expressam a verdade bíblica, a verdade cristã.
BIBLIOGRAFIA
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ROBERTS, Alexander, DONALDSON, James. The Apostolic Fathers. Translation of The Writings of the Fathers down to A.D. 325. Grand Rapids: Eerdmans Publishing Company. Volume I. 1985. Pp. 310-11.
[1] JURGENS, Willian A. The Faith of the Early Fathers. Volume 1. Collegeville: The Liturgical Press. 1970. P. 84.
[2] Crê-se, com base em Gregório, que Irineu teria padecido “like a true shepherd, with thousands of his flock, in teh massacre (A.D. 202) stimulated by teh wolfish Emperor Severus”. ROBERTS, Alexander, DONALDSON, James. The Apostolic Fathers. Translation of The Writings of the Fathers down to A.D. 325. Grand Rapids: Eerdmans Publishing Company. Volume I. 1985. P. 310.
[3] ALTANER, Berthold. STUIBER, Alfred. Patrologia. Vida, Obras e Doutrinas dos Padres da Igreja. Paulinas. São Paulo, 1972
[4] IRINEU de Lião, I, II, III, IV e V Livros. Série Patrística. São Paulo: Paulus. 1995., p. 600
[5] Id., ibid.
[6] MORRISON, I. “Norm and Rule of Doctrine Before Reformation”, in Concordia Theological Monthly, vol VII, novembro de 1936 (11): 830.
[7] IRINEU de Lião. op. cit., p. 516 (nota).
[8] Id., ibid.
[9] Id., ibid.
[10] Id., ibid.
[11] Id., ibid.
[12] Id., p. 518. O grifo é meu.
[13] Mais uma vez, a ênfase recai sobre o conhecimento e o aprendizado.
[14] Id., ibid.. O grifo é meu.
[15] Id., p. 519.
[16] Pressuposto segundo o qual os homens eram originalmente bons e que, uma vez corrompidos por Satanás, podem ser novamente trazidos , por Cristo, a esta santidade natalícia. Vemos, desta forma, que a doutrina do pecado original como exposta mais tarde por Agostinho ainda não estava clara no pensamento de Irineu.
[17] Id., p. 520. Ainda sem o referir nominalmente - chama-os de “estultos” -, Irineu refuta de forma clara os docéticos de seu tempo.
[18] Veja-se, para tanto, p. 527.
[19] Id., p. 528.
[20] Id., p. 535.
[21] Ao que parece, Irineu aqui demonstra influências recebidas da filosofia platônica, quando prega a moderação da vida como meio de se alcançar o Bem Supremo, a no,hsij, e/ou da tetrapharmakon de Epicuro, que em termos semelhantes pregava a moderação e justa medida na vida em contato com a natureza.
[22] Irineu demonstra quão errada estava sua exegese, ao tomar a citação paulina isolada, descontextualizada. Caracteriza-os como um lutador principiante, o qual, “lutando com outro, lhe agarra com todas as forças uma parte do corpo e é justamente derrubado por ela e ao cair pensa ter ganho a luta por se ter agarrado tenazmente ao primeiro membro que encontrou, além do tombo leva o ridículo (...)”. Id., p. 550.
[23] Id., p. 554.
[24] Id. p. 573
[25] Id., p. 608
[26]Id., p. 618
[27]LIVRO DE CONCÓRDIA. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. (Tradução de Arnaldo Schuller). São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/ Concórdia. 4ª edição, 1993. P. 638.
[28] Como Bultmann.
[29] Os adeptos do reformador Bucer.
[30] LIVRO DE CONCÓRDIA, p. 612.