Domingo de Ramos – 16/03/2008
Isaías 50.4-9(10)
Graça e paz da parte de Deus nosso Pai
e de Jesus Cristo nosso Senhor.
Estimados no Senhor:
Isaías 50 é um dos chamados cânticos do Servo do SENHOR – os quais antecipam, como profecia, que o Messias, antes de vir em glória, passaria pela chamada “grande tribulação” (Daniel 12.1), a tribulação do remanescente fiel. Isaías foi o profeta que anunciou que o remanescente fiel se reduziria a apenas uma pessoa, o Servo do SENHOR (Is 51.2; Is 52.13; Is 53.4).
Os escribas anunciavam que a vinda do reino de Deus, a chamada restauração de Israel, viria somente depois de que a fidelidade do povo fosse provada durante a grande tribulação (Apocalipses judaicos: Ap de Enoque, Ap de Baruque, Ap de Esdras, Salmos de Salomão, etc.). Aguardavam a vinda do Messias para depois da tribulação, para o chamado resto ou remanescente fiel do povo de Israel. Os capítulos finais de Isaías anunciam, por meio de quatro cânticos sobre o “Servo do SENHOR”, que o Messias, ele próprio, seria o remanescente fiel, que, em lugar do povo, tomaria em seus próprios ombros a grande tribulação, a saber, a tentação de Satanás e o sacrifício da própria vida nas mãos de inimigos e de apóstatas, como oferta pelo pecado.
Somente então, tendo passado pela grande tribulação, tendo vencido as forças do mal, o poder de Satanás e o flagelo da morte, o Messias seria glorificado, e o reino de Deus viria. É por isso que, quando Pedro procura dissuadir Jesus de passar pela tribulação, Jesus o repreende como porta-voz de Satanás, porque não poderia trazer a redenção sem passar pela tribulação (Is 53). Essa tribulação, cristo experimentou no Getsêmani, nos flagelos nas mãos da guarda do templo, da guarda de Herodes e da guarda de Pilatos, e quando, pregado na cruz, gritou as palavras do Salmo 22: Eli, Eli, lama sabactani? Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste [abandonaste]? (Sl 22.1; Mt 27.46).
Se não entendemos isto, não podemos entender as palavras da Epístola de hoje (Fp 2.5-11):
Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus,
Pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.
Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.
O povo não errou ao receber Jesus em Jerusalém como Messias, Filho de Davi e Rei de Israel, mas o povo não entendia que havia chegado a hora da grande tribulação, a hora do cálice amargo, a hora em que o Filho do Homem haveria de ser levantado na cruz (Jo 3.14), e levar sobre si a maldição e o castigo para tornar-se fonte de bênção e de paz (Is 53.6; Gl 3.13,14).
Muitas vezes dizemos que o povo judeu esperava um mero libertador político que os livrasse das mãos dos romanos. Isso é verdade, a libertação política era, para eles, um aspecto da obra do Messias. Mas esperavam também a ressurreição dos mortos e o reino glorioso de Deus sobre a terra (Cf. At 1.6; Jo Jo 11.24).
Ao receber Jesus como Messias, esqueciam-se, porém, que a exaltação do Messias não se daria antes da grande tribulação, anunciada pelo profeta Daniel e pelos cânticos do Servo do SENHOR em Isaías: a tribulação que o Messias, como remanescente fiel, experimentaria em lugar de toda a humanidade e não só do povo de Israel, o enfrentamento das forças demoníacas mas também o castigo da lei de Deus: se pecares, certamente morrerás (Gn 2.17).
Jesus recebeu o cântico do povo como anúncio de que a hora da glorificação havia chegado: a glorificação de Deus por meio do sacrifício de sua própria vida em favor dos pecadores e a glorificação do Servo de Deus pela ressurreição ou exaltação. Se as crianças fossem proibidas de cantar o Salmo Real, o salmo da entronização do rei de Israel – Hosana ao Filho de Davi, bendito o que vem em nome do Senhor – as próprias pedras cantariam, porque a hora havia chegado (Mt 21.15,16; Lc 19.40).
Todas as peregrinações a Jerusalém, através dos séculos, nada haviam sido senão prenúncio dessa hora – a hora em que o descendente de Eva enfrentaria a serpente, em que seu calcanhar seria ferido, mas o mesmo calcanhar viria a esmagar a cabeça da serpente, retirando-lhe o poder de acusação contra a humanidade. Todo o sangue dos sacrifícios de cordeiros derramado e aspergido sobre o povo durante séculos nada era senão sinal da morte redentora do Servo do SENHOR, do Cordeiro de Deus, Cordeiro imolado, mas também Cordeiro vencedor, como é apresentado no Apocalipse, como aquele que foi morto mas que vive e reina poderoso sobre tudo e sobre todos, diante de quem todo joelho se dobrará e toda língua confessará que é Senhor, para a glória de Deus Pai.
Por isso, o cântico do Servo em Isaías termina dizendo: “Aquele que andou em trevas, sem nenhuma luz, confie em o nome do SENHOR e se firme sobre o seu Deus” (Is 50.10).
Jesus mostrou a todos o caminho da salvação: no meio da tribulação, buscar socorro somente em Deus; nas trevas confiar somente em Deus; diante do acusador, ter somente Deus como advogado.
Essa é a verdadeira doutrina da justificação, não uma idéia ou teoria de que Deus não se importa com nossos pecados e que nos declara justos mesmo quando permanecemos em nossos pecados. Essa idéia ou teoria, que alguém já chamou de “graça barata” (Dietrich Bonhoeffer, Discipulado), não é bíblica, nem mesmo luterana, porque a justificação de Deus nós só a experimentamos quando estamos no meio da tribulação, quando o acusador nos mostra as portas abertas do inferno à nossa frente, quando estamos nas trevas do desespero, quando o pecado nos pesa na vida e na consciência, quando o pavor da morte nos assombra.
A doutrina da justificação é, em Isaías e todos os profetas, em Paulo e todos os apóstolos e também em Lutero (ver Regin Prenter, Spiritus Creator), a doutrina do conforto que o pecador encontra somente em Deus quando é tentado ao desespero, quando o diabo não tenta com a sedução para o pecado, mas quando o diabo tenta como o acusador, quando enfrentamos a nossa hora de tribulação, quando bebemos o nosso próprio cálice de amargura, quando não nos reconhecemos senão como pecadores perdidos e condenados, ou como Paulo afirmou, quando nos reconhecemos como o maior dos pecadores (1 Co 15.8,9; 1 Tm 1.15).
“Perto está o que me justifica; quem contenderá comigo? (...) Eis que o SENHOR Deus me ajuda quem há que me condene?” - afirma o Servo do SENHOR em Isaías 50.8 e 9. Sua confiança está em Deus, somente em Deus, por isso afirma: “não serei envergonhado” --não serei confundido, não serei decepcionado. Cristo é a Rocha firme, o castelo forte, quem sobre esta pedra constrói sua esperança não será jamais envergonhado (1 Pe 2.6). As acusações e zombarias do mundo passarão, serão consumidos como pano velho pela traça: “Eis que todos eles se envelhecerão como um vestido, e a traça os comerá” (Is 50.9), mas o Servo do Senhor não será envergonhado.
Essa é a doutrina da justificação, que não está separada da vida de luta do cristão no mundo, das tribulações desta vida. Esta é a doutrina bíblica da justificação, como oramos no Pai Nosso: “Venha o teu reino, dá-nos o pão cotidiano, perdoa-nos as nossas dívidas, não nos conduzas à tribulação, livra-nos do acusador” (paráfrase).
A doutrina da justificação é consolo para os tentados, somente para os tentados. Quem jamais lutou contra o acusador, e este é sentido do nome hebraico, Satanás – o anjo acusador, que acusa os filhos de Deus diante do próprio trono de Deus, que acusou Jó de ser justo porque não era tentado (Jó 1.6), quem nos tempos depois do Exílio Babilônico, acusou Josué e Zorobabel de não serem dignos de liderarem o povo de Deus (Zc 3.1 e seguintes). O anjo acusador, que lutou contra o arcanjo Miguel, para reter o corpo de Moisés na terra, quando Miguel veio buscar Moisés para junto de Deus (Judas 9). Porque o acusador temia que intercessão de Moisés em favor do povo de Deus continuasse no céu junto a Deus, como havia ocorrido na terra (Nm 11.2; .
Não Moisés, mas Jesus, o Cordeiro Vencedor, é nosso advogado e intercessor junto ao Pai:
“Temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro...
Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo...
E nisto conheceremos que somos da verdade, bem como, perante ele, tranqüilizaremos o nosso coração; pois, se o nosso coração nos acusar, certamente, Deus é maior do que o nosso coração e conhece todas as coisas.” (1 Jo 2.1,2; 3.8b; 19,20).
A morte e ressurreição de Jesus são, para nós, conforto e salvação quando compreendemos que por nossos pecados Jesus morreu e pela nossa justificação ressuscitou, como Paulo escreve em Romanos 4. 25: “[Jesus, nosso Senhor] foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação.”
Se Jesus não tivesse morrido por nossas transgressões, não teríamos a remissão dos pecados; se Jesus não tivesse ressuscitado, não o teríamos como nosso Advogado junto ao Pai, que nos justifica perante o trono de Deus, e que intercede por nós junto ao Pai.
Se o acusador temia a presença de Moisés junto ao trono de Deus, como intercessor, que poderá fazer contra nós que temos Jesus Cristo, o Servo Justo, o Remanescente Fiel, como nosso Intercessor e Advogado?
“Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo? [isto é, quem nos separará do amor do Messias?] (Romanos 8.31-35a; cf. Hb 8.1,2).
Não foi Moisés quem deteve o acusador. A Lei de Moisés, ao contrário, tornou-se instrumento de acusação, com disse Jesus aos judeus de seu tempo: “Não penseis que eu vos acusarei perante o Pai; quem vos acusa é Moisés, em quem tendes firmado a vossa confiança” (Jo 5.45; cf. Hb 10.3: “Mas nesses sacrifícios cada ano se faz recordação dos pecados”). Quem deteve o acusador foi Jesus, o Cordeiro Vencedor, “o Leão da tribo e Judá, a Raiz de Davi” (Ap 5.5), com lemos no Cântico do Cordeiro em Apocalipse 12:
“Agora, veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo [Messias], pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus. Eles, pois, o venceram, por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida.” (Ap 12.10,11).
Se diante do trono de Deus o diabo perdeu seu lugar de acusador, também de nosso coração e de nossa consciência o acusador deve ser expulso, porque Deus é maior do que nossa consciência e nosso coração. Os mártires, na tribulação sob a perseguição romana, mantiveram a confissão de fé em Cristo, e morreram justificados – isto é, absolvidos e inocentados por Deus. Glorificaram a Deus com seu martírio no mundo, mas foram recebidos por Deus na glória, que será revelada no dia final. A justificação, para os mártires, não foi uma teoria acerca da salvação, mas uma experiência concreta, a acusação do mundo e do diabo não lhes removeu a confiança em Cristo como Advogado junto ao Pai.
Na primeira carta aos Tessalonicenses, Paulo adverte os cristãos de que a fé salvadora vence a tentação e a tribulação:
“enviamos Timóteo, nosso irmão, e ministro de Deus no evangelho de Cristo, para vos fortalecer e vos exortar acerca da vossa fé; para que ninguém seja abalado por estas tribulações; porque vós mesmo sabeis que para isto fomos destinados; pois, quando estávamos ainda convosco, de antemão vos declarávamos que havíamos de padecer tribulações, como sucedeu, e vós o sabeis. Por isso também, não podendo eu esperar mais, mandei saber da vossa fé, receando que o tentador vos tivesse tentado, e o nosso trabalho se houvesse tornado inútil.” (1 Ts 3.2-5).
Essa passagem é um exemplo prático porque devemos orar o Pai Nosso: porque a fé salvadora é a fé que se comprova como fé no meio da tribulação e da tentação, na hora em somos acusados pelo tentador de indignos da salvação, indignos de nos chamarmos de filhos de Deus neste mundo, na hora em que não temos onde mais buscar ajuda e socorro senão na misericórdia de Deus, na bondade de Deus. Nessa hora, quando nenhum conforto e ajuda nos restar, quando o mundo desaparecer e as portas do inferno se abrirem para nos tragar, então experimentamos a justificação, o poder do perdão dos pecados, o poder da graça de Deus, o poder do evangelho. Nessa hora, teorias se esvanecem e somente a verdadeira fé em Cristo como nosso Salvador pode nos livrar e nos confortar. Então, podemos dizer: “Perto está o que me justifica!” Não estamos sozinhos na luta contra o tentador e acusador, temos Advogado, Jesus Cristo, o Justo, nosso Salvador.
Ainda que o mundo se transtorne ao nosso redor e contra nós, podemos dizer com Jesus e com os mártires cristãos: “Perto está o que me justifica!” Sim, perto, diz Paulo em Romanos 10.9,10, perto do coração e perto da boca, pois “Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo. Porque com o coração se crê para a justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação.”
“Perto está o que me justifica!”, Jesus Cristo, meu defensor perante o trono de Deus.
Amém.
Luisivan Vellar Strelow
Congregação Evangélica Luterana da Esperança
Brasília, DF