QUINTO DOMINGO APÓS EPIFANIA
7 de fevereiro de 1999 Isaías 58.5-9a
Contexto
Na Bíblia Almeida Revista e Atualizada, Isaías 58 aparece com o título de "Observância devida do jejum". Também poderia levar o título de "O jejum que agrada a Deus". Diante disso, o pregador poderia bem perguntar: "Se ainda não é Quarta-feira de Cinzas, por que ocupar-me com o jejum"? Na verdade, o texto de Isaías 58 é lido hoje porque rima tematicamente com Mt 5.13-20, o evangelho do dia. Em particular, os conceitos de luz e justiça em Is 58.8 rimam com Mateus 5. Acima de tudo, então, o que se tem aqui é uma mensagem de Epifania: "romperá a tua luz", e "a glória do SENHOR será a tua retaguarda".
A perícope inclui a parte final de um parágrafo, o v.5, e metade de outro, vv.6-9a. Existe um belo clímax na metade do v.9, onde o Senhor diz: "Eis-me aqui"! Assim, pode-se muito bem encerrar a leitura ali mesmo. Agora, por que não ler toda a primeira parte do capítulo, começando em 58.1? A leitura não se torna demasiado longa e tem-se um contexto muito mais adequado.
Aliás, o contexto maior da perícope é Is 58 a 66. É uma seção em que promessas de futuro glorioso aparecem lado a lado com severas advertên-cias de juízo. É a alternância de lei e evangelho. O capítulo 58 então é basicamente lei. O tema é anunciado em Is 57.21: "Para os perversos, diz o meu Deus, não há paz". Será um desafio pregar este texto de modo a não impor aos ouvintes um jejum de evangelho.
Texto
O texto abre-se no v. 1 com uma chamada a que o profeta faça soar sua voz como a trombeta ( HSJÍfêí no original). O povo tem pecado. Não se trata de falta de religiosidade. O versículo 2 mostra que é tudo menos um povo secularizado. Eles têm prazer em se chegar a Deus. A primeira parte do v.3 dá a entender que o jejum foi transformado em forma de barganha. O povo se queixa que Deus faz pouco caso. Deus responde (3b-4) que o jejum está associado à injustiça. No v.5 o foco parece se ampliar para toda e qualquer pessoa, pois faz-se referência a "o homem" (). Ao mesmo tempo o discurso fica muito mais individualizado, pois passa-se da segunda pessoa do plural ("vós") à segunda pessoa do singular ("tu").
No todo, o texto tem uma cadência poética, que é muito bem reproduzida em Almeida. Liberdade, que por certo seria um tema caro a um povo às voltas com o exílio, é apresentada com quatro imagens diferentes em Is 58.6. O acúmulo de imagens tem um raro efeito retórico.
Igualmente importante é notar a tensão entre aquilo em que o povo "tem prazer" (v.2) e o que Deus escolheu e lhe é aceitável (v.5). (No v.3, o que é traduzido por "vossos próprios interesses" é uma palavra que tem a mesma raiz hebraica do verbo "ter prazer" e pode ser traduzido por "buscais o vosso próprio prazer"). A rigor, o jejum era algo auto-imposto. Deus havia prescrito um jejum anual (Lv 16.29) e só. O povo decidiu ter prazer no jejum. Deus redefine o jejum e aponta para a prática da justiça social, que é outra forma de falar do amor ao próximo. O que importa não é o que o povo gosta ou prefere, mas o que Deus escolhe e lhe é aceitável. Como reflexão, vale acrescentar que a luta de Lutero, em seu tempo, foi muito semelhante a isso. Há quem tenha feito a observação de que ainda hoje em muitas igrejas ditas evangélicas o que a igreja decide (e que não passa de adiáforo, como, por exemplo, certos comportamentos) se torna obrigatório o que é "obrigatório" por ser instituído por Deus (como, por exemplo, os sacramentos) se torna opcional ou adiáforo. Mas, quem mora em casa de vidro não deve brincar com pedras, ou seja, tampouco nós estamos totalmente imunes ou sem culpa neste departamento.
Igualmente importante para compreender a linguagem do profeta é no-tar que, ao invés de enfatizar o caminho da integridade ("Não há nada errado em se jejuar, desde que esteja acompanhado de amor ao próximo"), o profeta enfatiza o caminho da alteridade ("Não isto, mas aquilo"). Temos a mesma linguagem, apenas mais ofensiva por envolver os sacrifícios, em Oséias 6.6: "Pois misericórdia quero, e não sacrifícios". Para bem entender os profe-tas, não se pode esquecer a dimensão retórica de tais afirmações. Evita que se incorra na lei do pêndulo, ou seja, passar-se de um extremo ao outro. Na busca de nova espiritualidade, Israel esqueceu-se do próximo. No afã de engajar-se a favor do próximo, facilmente perde-se a busca de Deus.
Reflexão homilética
Tratando-se de um texto do Antigo Testamento, nem sempre é fácil encontrar passagens paralelas ou relacionadas com o texto em estudo. Segue uma lista. Para a questão do jejum, conferir Zc 7 a 8, bem como Jr 14.12. A imagem da glória do Senhor como retaguarda, no v.8, é um eco do êxodo: Êx 13.21-22; 14.19; 16.10; Is 52.12. A restauração descrita em ter-mos de uma repentina irrupção de luz no alvorecer aparece também em Os 6.3-5 e Sf 3.5. O texto como um todo encontra eco nas palavras de Jesus em Mt 25.31-46.
Ao se pregar o texto, é fundamental que, além de permitir que o evangelho seja o ponto alto (e este aparece nos vv.8-9), não se confunda lei e evangelho. No caso presente, a confusão pode resultar da apresentação da lei como pré-requisito do evangelho. Se fizeres justiça, o Senhor te respon-derá. Aliás, ao se ler o texto é esta a impressão que fica: comportamento certo desencadeia a promessa. (Notar o duplo "então", v.8 e 9). O contexto, no entanto, sugere uma outra interpretação, em particular Is 59.1,2: "Eis que a mão do Senhor não está encolhida, para que não possa salvar... Mas as vossas iniqüidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vos-sos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça". Em outras palavras, a ação salvífica de Deus está sempre voltada para o seu povo; o pecado do povo é que impede que ela se concretize.
Para manter a perspectiva correta, nada melhor do que lembrar o ma-gistral resumo que Lutero fez da condição cristã: "O cristão é livre de tudo e de todos; o cristão é servo de todos". O estar em Cristo nos liberta da preocupação de querermos nos chegar a Deus (v.3). Não há necessidade de jejuns ou quaisquer outras obras nossas. Qualquer tentativa de "subornar" a Deus será abominável a ele. Em Cristo, temos a liberdade de sermos epifânicos. Nossa luz, que é sempre luz refletida, pode romper como o sol nascente e nossa justiça, que é sempre recebida (cf. Mt 5.20), vai adiante de nós. À nossa frente, à nossa volta, na nossa retaguarda irá a glória do Se-nhor, que é sua presença salvífica.
Dr. Vilson Scholz St. Louis, USA
Igreja Luterana, 1998 Vol 2, pag 220