Identidade e Missão da IELB Introdução
“A Igreja tem por fim propagar o evangelho de Jesus Cristo.” É o que diz nosso Estatuto, em seu artigo 4o. Está aí colocado o objetivo da “Igreja”. Mas que Igreja? Estamos aí falando da Igreja que confessamos no Credo: “Creio ... uma santa igreja cristã e apostólica”? Ou estamos falando da IELB?
Duas observações iniciais:
1) Em nosso Estatuto (tanto no antigo, como no recém aprovado), em todo o texto sempre há a referência à IELB; somente no artigo 4o, citado acima, fala-se em “Igreja”. Entendo que com isto estamos fazendo uma diferenciação entre IELB e “Igreja”, o que penso ser muito correto. A IELB não é a Igreja cristã confessada nos Credos. A Igreja são todos aqueles que, no mundo inteiro, crêem em Jesus Cristo – a “comunhão dos santos”. Por outro lado, ao se colocar “Igreja” no artigo que trata da finalidade da IELB (porque é o Estatuto da IELB) também estamos dizendo que a IELB não quer ser algo diferente da Igreja cristã no mundo. Ela se entende como Igreja, não de forma exclusiva. Somos Igreja de Cristo, não porque somos de uma organização chamada IELB, mas porque fomos incorporados à família de Deus por meio do batismo. Somos Igreja porque o “Espírito Santo nos chamou pelo evangelho, iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé.” (Catecismo Menor de Lutero; Explicação do Terceiro Artigo do Credo) Assim, sendo um conjunto de congregações – onde efetivamente está a Igreja, a finalidade da IELB não é outra senão a finalidade da Igreja de Cristo em todos os tempos e em todos os lugares: proclamar o Evangelho de Jesus Cristo.
2) Este assunto é tão importante que está colocado em um dos artigos irreformáveis do Estatuto, juntamente com o 3o, que fala de nosso fundamento doutrinário, a Escritura Sagrada, e sua exposição correta, as Confissões Luteranas. Não podemos mudar nossa finalidade, nosso objetivo, assim como não podemos mudar nosso fundamento doutrinário. Fazendo-o, estaríamos mudando nossa essência, estaríamos deixando de ser quem nós somos.
De fato, ao falarmos hoje sobre o “Objetivo da Igreja” entendo que o assunto está diretamente ligado (assim como o Estatuto o demonstra) ao que nós somos. Nosso objetivo está ligado à nossa identidade.
Por isso escolhi como abordagem para esta conferência uma breve análise do que considero serem peculiaridades da teologia luterana que, ao menos em tese, a IELB tem crido, ensinado e confessado nestes 100 anos. Coloco como questão básica a nos guiar na primeira parte de nossa reflexão: o que caracteriza a teologia luterana frente ao contexto religioso em que a IELB está inserida? Mais adiante trarei alguns questionamentos no que se refere a nossa aderência a estes aspectos da teologia luterana. Ao final estarei sugerindo algumas pistas para nossa caminhada como instituição que quer manter sua identidade e ser fiel ao seu objetivo.
Proponho, assim, uma investigação sobre nossa identidade! Com isto estarei enfatizando aspectos nos quais a IELB (como conjunto de comunidades que abraçam a teologia luterana) é diferente de outros grupos (denominações) cristãos. Não estou negando que haja semelhanças entre o que cremos e o que outros cristãos crêem. Mas, como já disse, meu foco será aquilo que nos distingue, que nos caracteriza.
I. O que tem a teologia luterana de peculiar e que serve como contribuição para as igrejas cristãs (inclusive as luteranas!)
Inicio com duas afirmações. Primeira, a IELB é Igreja cristã, mais propriamente uma denominação cristã – o que estabelece um contraste marcante com o contexto pagão no Brasil (Espiritismo, umbanda, religiões orientais, superstições, etc.). Neste contexto, a IELB tem uma função fundamentalmente evangelizadora. O evangelho de Jesus Cristo continua sendo escândalo e loucura para o mundo, como o foi no tempo do apóstolo Paulo (cf. 1 Co 1.18-25). Não pode haver comunhão entre luz e trevas. Em nossa identidade, pautamos nossa vida e testemunho pelo “escândalo da particularidade” – há um só caminho, uma só verdade, uma só vida: Jesus Cristo, Deus e homem, Salvador do mundo.
A segunda afirmação inicial: visto que a IELB vive em um contexto onde há outras denominações cristãs, nossa identidade nos diferencia também frente a este contexto cristão. Com muita alegria e gratidão a Deus reconhecemos com os confessores que há cristãos em toda parte onde o evangelho é “pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho” (Confissão de Augsburgo VII: 1). Graças a Deus, a Igreja cristã não está restrita às Comunidades luteranas. Por outro lado, entendemos que temos algo a oferecer de contribuição a outros cristãos.
Correndo o risco de ser incompleto (e subjetivo) nesta análise, sugiro alguns pontos em que a teologia luterana tem uma contribuição a dar no contexto cristão, alguns aspectos que nos caracterizam como Denominação cristã que somos. É importante lembrar que não estou me referindo à fé das pessoas individualmente, mas ao que a teologia luterana entende e confessa. Também é importante dizer que o que cito abaixo não são doutrinas que necessariamente só os luteranos crêem, ensinam e confessam; até porque não são doutrinas que pertencem à teologia luterana, são doutrinas da Igreja cristã. No entanto, tenho a convicção de que em cada um dos aspectos citados, a teologia luterana têm, por graça de Deus, uma clareza tal que merece ser refletida e testemunhada. Além do mais, arrisco dizer que somente a teologia luterana, conforme expressa no Livro de Concórdia de 1580, afirma ao mesmo tempo todos estes pontos importantes da doutrina cristã.
1 - Justificação pela fé – somos aceitos por Deus não por merecimento nosso, mas por sua graça, por causa de Jesus, por meio da fé – esta é a mensagem central da Escritura e característica fundamental da Igreja cristã. “Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). Por isso, o apóstolo anuncia: “O justo viverá por fé” (Rm 1.17); “todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3.23,24). Nossas Confissões também testemunham a centralidade desta verdade (CA IV; Ap IV; FC III). Note-se a expressão, já consagrada entre nós, e que vem de nossa “certidão de nascimento” (a Confissão de Augsburgo): “pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé”. Nossa justiça perante Deus é fruto da graça de Deus – esta graça é universal, séria e eficaz; por causa de Cristo – vemos aí a centralidade da doutrina de Cristo e sua obra – nada pode tomar este centro em nossa teologia e vida; mediante a fé - não como obra, mas como dádiva do próprio Deus, por meio do evangelho – é a confiança em Jesus, no que ele fez por nós para nos dar o perdão de todos os pecados, ao ponto de Deus não mais nos considerar pecadores condenáveis, mas perdoados e justos.
Assim como na época da Reforma, também hoje a doutrina central da fé cristã continua sendo ameaçada, manchada, deformada. Há quem sugira, no contexto cristão, que a pessoa deva participar de algo, deve fazer a sua parte, para de alguma maneira conquistar a justificação; uma maneira sutil de dizer isso é o que chamo de “teologia da decisão”: “Deus fez tudo por ti; cabe a ti decidir se aceitas ou não a Jesus como teu Salvador pessoal.” A fé acaba sendo apresentada como obra nossa, com isto desprezando a graça de Deus que em Cristo é suficiente. Ainda há os que, dentro de denominações cristãs, sustentam que Deus não quer salvar a todos, mas apenas a alguns; aos outros Deus estaria predestinando para a condenação.
A doutrina da justificação pela fé continua sendo a doutrina pela qual a Igreja fica de pé, ao confessá-la, ou cai, ao negá-la. Dela jamais poderemos nos sentir saciados, ao ponto de não precisarmos mais estudá-la. E mais, nossos irmãos, cristãos de outras denominações, precisam deste ensino, com toda a clareza. Não estou sugerindo aqui que nosso objetivo seja tornar todos os cristãos em luteranos. Estou dizendo que mesmo permanecendo em suas igrejas, faremos bem em trabalhar para que estes irmãos estejam firmemente enraizados na doutrina fundamental da fé cristã, para que não sejam abalados mortalmente em sua estrutura espiritual.
2 - Lei e evangelho – sua correta distinção e aplicação. Não me refiro aqui a “lei e evangelho” como uma doutrina específica, mas como a ferramenta pela qual a Escritura como um todo é melhor compreendida e ensinada; trata-se de uma chave para abrir as doutrinas, olhando-as não de forma estática, mas dinâmica; para perceber como as verdades reveladas “funcionam” na prática. O teólogo luterano Holsten Fagerberg observa que as Confissões Luteranas, ao tratarem de Lei e Evangelho, procuram “ajudar o leitor da Bíblia e o pregador em entender o que a Bíblia diz – freqüentemente através de passagens aparentemente contraditórias – a respeito de fé e obras, justificação por graça e vida em santidade.” Em outras palavras, a correta distinção entre lei e evangelho permite que se leia a Escritura, particularmente os seus temas fundamentais, com entendimento. Alguns de nossos pastores e professores já tiveram experiência de compartilhar com cristãos, mesmo ministros religiosos, de outras denominações cristãs, a distinção entre lei e evangelho. Os que o fizeram poderiam dar seu testemunho aqui. Algumas situações que conheço demonstraram que tal ensino é, pelo menos na prática, desconhecido ou, quem sabe, pouco valorizado, em outras tradições cristãs. E que impacto traz sobre a pregação e o ensino a correta distinção entre o juízo de Deus e a graça de Deus; entre sua acusação e a absolvição, entre a morte e a vida.
Quanta confusão há entre pregadores e ouvintes cristãos no que se refere à palavra de Deus, em sua dinâmica. Há mensagens em que o evangelho propriamente dito – do amor de Deus revelado em Jesus – nem mesmo é mencionado. A lei é usada como fonte de força, de motivação. Ao invés de se apontar para a cruz de Cristo, as pessoas são levadas a olhar para si próprios e são movidos ou pelo medo ou pelo orgulho.
Certa vez um pastor experiente afirmou, em uma palestra que assisti, que cada pastor da IELB deveria ler, ao menos uma vez por ano, o livro “Lei e Evangelho”, de C. F. W. Walther. Que revolução haveria nesta igreja – a IELB – se este ensino fosse, cada vez mais, tanto na teoria como na prática, a grande marca registrada de nossos sermões e ensino. Temos seu resumo em Português, com o título “Lei e Evangelho”. Em breve a obra completa deverá ser lançada pela Concórdia Editora.
A distinção entre lei e evangelho não sugere apenas que tanto a lei como o evangelho sejam necessários na pregação. Ela ainda é mais radical. Cito Walther, em sua última tese, quando diz: “... a palavra de Deus não é aplicada corretamente, quando aquele que ensina a palavra de Deus não permite que o evangelho tenha predomínio geral neste seu ensino.” Isto quer dizer que a distinção entre lei e evangelho permite e insiste que o evangelho tenha o peso maior na pregação. Esta característica luterana afirma que a mensagem cristã por excelência não é a lei, mas a boa nova do amor de Deus em Cristo, a única mensagem que salva, que vivifica, que consola e que move os cristãos para a vida piedosa no dia a dia. Esta centralidade do evangelho é afirmada no artigo específico da Fórmula de Concórdia: “Como a distinção entre lei e evangelho é luz de particular brilho, que serve ao propósito de dividir corretamente a palavra de Deus e explicar e entender apropriadamente os escritos dos santos profetas e apóstolos, devemos conserva-la com especial diligência, a fim de não serem misturadas uma com a outra essas duas doutrinas, ou para que não se transforme o evangelho em lei, com o que se obscurece o mérito de Cristo e as consciências perturbadas são despojadas de seu consolo, que de outro modo possuem no santo evangelho, quando esse é pregado genuína e puramente, e com o qual em suas maiores provações podem sustentar-se contra os terrores da lei.” (FC DS V: 1; Livro de Concórdia, p. 598)
3 - Objetividade e eficácia dos meios da graça - o fazer do Evangelho, mais do que simplesmente um informar. A teologia luterana leva a sério o que diz o apóstolo a respeito do poder e eficácia da palavra de Deus: “o evangelho é o poder de Deus para a salvação” (Rm 1.16); “a fé vem pela pregação” (Rm 10.17); “a palavra de Deus ... está operando eficazmente em vós, os que credes” (1 Ts 2.13); etc.
Gerhard Forde, teólogo luterano, em um livro que sustenta que a Teologia existe para proclamação, mostra que há dois diferentes paradigmas no que se refere à maneira como consideramos o efeito da proclamação da palavra de Deus. Um deles é o paradigma da “livre escolha”. Quando se trata da palavra de Deus como se fosse tão somente de caráter informativo, o pressuposto pode ser que a pessoa que recebe a mensagem tem agora a liberdade de escolher – por um ato de vontade ela optará ou não por aceitar a mensagem de Cristo. Esta forma de olhar o assunto é equivocada, lembra Forde, porque ignora a realidade da natureza humana, a necessidade da ação do Espírito Santo e a própria característica da palavra de Deus. Vem então o segundo paradigma, aquele que Forde está propondo: “Proclamação está mais para um sacramento do que para outra comunicação oral, como o ensinar e informar.” (p. 147) Ele argumenta: “No administrar dos sacramentos não estamos simplesmente dizendo algo, não estamos meramente trazendo informação; estamos fazendo algo ... Não estamos explicando Cristo ou o evangelho, ou descrevendo a fé, ou dando instruções sobre como alguém pode ser salvo. ... O paradigma para isto não é a existência continuada do sujeito supostamente livre, mas a morte do velho e a ressurreição do novo. Somos batizados na morte de Cristo, para sermos renascidos na novidade da vida da ressurreição na fé. Comemos e bebemos o corpo e o sangue do Crucificado e Ressurreto, proclamando sua morte até que Ele venha. A continuada existência do sujeito é, de fato, corporalmente interrompida. ... A palavra proclamada é tanto um fazer quanto o é o sacramento. A pregação, para Lutero, é derramar Cristo em nossos ouvidos, assim como nos sacramentos somos batizados nele e Ele é derramado em nossas bocas. ... A palavra proclamada não apenas explica ou informa, mas ela também dá – ela termina o velho e inicia o novo, ela leva à morte e traz para a vida. ... Sem este caráter sacramental, a palavra degenera para informação a respeito da qual o velho ser que ainda existe deve fazer algo.” (pp. 148,9) Infelizmente o paradigma da livre escolha é muito popular. A teologia luterana, porém, confessa que a palavra de Deus (particularmente, o evangelho – a boa nova da salvação em Cristo) é poderosa para realizar aquilo que promete, ou seja, criar uma nova realidade, a partir da ressurreição de Cristo, uma realidade de absolvição do pecado, vida com Cristo, aqui e na eternidade. Nossas Confissões o afirmam. No artigo V da Confissão de Augsburgo é afirmado que pelo evangelho e sacramentos, Deus “nos dá o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando lhe apraz, naqueles que ouvem o evangelho ...” (Confissão de Augsburgo V: 2; Livro de Concórdia, p. 30). E no artigo XII da mesma Confissão se diz que por meio dos sacramentos a fé é despertada e fortalecida (Confissão de Augsburgo XIII: 1; Livro de Concórdia, p. 34). Tal convicção se reflete na prática, por exemplo do batismo de crianças e na comunhão fechada na Santa Ceia.
4 – Afirmação dos princípios material e formal da teologia. A teologia luterana ensina que o centro de sua fé e teologia é o Evangelho de Jesus Cristo. A justificação do pecador, pela graça de Deus, por causa de Cristo, mediante a fé é o “principal artigo” da fé cristã e o “artigo pelo qual a igreja fica em pé ou cai” (articulus stantis et cadentis ecclesiae). O Evangelho é descrito como o Princípio material do Luteranismo. Por outro lado, a teologia luterana igualmente insiste que a única fonte, regra e norma para sua doutrina e vida é a Escritura Sagrada. Somente as Escrituras são a fonte e norma para nossa doutrina - este é o Princípio formal do Luteranismo.
Tal afirmação dupla é importante, porque coloca juntas duas verdades que não se excluem e que são harmônicas. Além disso, o contexto de outras denominações cristãs mostra dificuldades em afirmar concomitantemente os dois princípios. Dois problemas específicos se fazem notar (dos quais não estamos livres, por influência que temos, em nossa situação vivencial, de outras teologias). Por um lado, existe a chamada posição “fundamentalista” ou “biblicista”. Para esta visão, tudo o que está na Escritura é igualmente importante, de modo que o evangelho (a boa nova da salvação em Cristo) não é considerada a mensagem fundamental. Por outro lado, existe também a posição denominada “minimalista” ou de “reducionismo ao Evangelho”. Isto significa que tudo o que não é diretamente evangelho (mensagem da salvação) poderia ter sua veracidade questionada (por exemplo, o relato da criação, milagres, ordenanças bíblicas, etc.).
5 - Visão realista do ser humano - simul iustus et peccator – ao mesmo tempo pecador e justo – 100% pecador em si mesmo; 100% justo por causa de Cristo. Tal visão é realista: evita tanto o desespero de uma vida confrontada apenas pela lei; evita também o orgulho de se pensar que, sendo cristãos, passamos a ser pessoas melhores em nós mesmos. Isto também é importante para a ética cristã. Luteranos ensinam uma ética que parte da perfeição que temos em Cristo; não uma ética que está em busca da perfeição. Uma ética que evita o perfeccionismo e que não coloca o cristão no céu antes do tempo, mas o traz ao chão, para viver de forma encarnacional.
Há quem diga que os luteranos têm normalmente pouco a dizer – e agir – no que se refere à santificação. Talvez haja um tanto de verdade nisso, se examinarmos nossa prática. No entanto, a teologia luterana é rica na abordagem da vida cristã. O foco, porém, é diferente daquele presente em outras denominações cristãs. Harold L. Senkbeil, pastor luterano nos EUA, escreveu um livro com o sugestivo título: “Santificação: Cristo em Ação”. Segundo ele, a ênfase luterana na ação de Deus por meio da Palavra externa (que está, portanto, fora de nós, na palavra e sacramentos) não está em oposição, pelo contrário, dá a melhor base para a nova vida em Cristo. Segundo ele, para Lutero, “paradoxalmente, quanto mais externa for a base para a salvação, tanto mais interiores seus resultados. Na medida em que as promessas objetivas de Deus em Cristo são enfatizadas, nesta medida os frutos subjetivos do evangelho crescem na vida cristã.” Senkbeil exemplifica isto com a explicação de Lutero ao 2o artigo do Credo, no Catecismo Menor.
6 - Os dois regimentos. Deus governa o mundo de duas formas. Por um lado, com o evangelho Deus traz seu reino da graça, cria a Igreja e oferece gratuitamente a vida eterna, que já se inicia aqui pela comunhão com Deus, através da fé. Mas Deus também se manifesta através do poder neste mundo, em que Ele, por meio de instituições humanas, mantém a ordem, evita o caos, fomenta a vida, a paz, o bem-estar da criação. O reconhecimento de que os cristãos vivem sob o duplo reinar de Deus leva ao entendimento da santidade das vocações nas ordens criadas por Deus. Isso significa que como cristãos não estamos tão somente pensando no dia em que iremos para o céu.
Harold Senkbeil, já mencionado acima, discute as implicações da encarnação de Deus, em Cristo, para a vida de santificação. Ele lembra que no 5o século da era cristã, um homem chamado Nestório, foi acusado de ensinar “dois Cristos”, um divino e um humano. Senkbeil sugere que os cristãos em nossa época têm especial dificuldade de relacionar as coisas celestes e as terrenas. Com freqüência se cai na tentação de separar o humano do divino, de modo que apenas coisas ditas espirituais passam a importar aos cristãos. Coisas deste mundo, terrenas, materiais são consideradas como de pouca importância. A alternativa, então, é tentar cristianizar o ambiente em que se está, para nele viver com um pouco mais de tranqüilidade. Ao invés de ser transformados pela renovação da mente (Rm 12.2), estes cristãos tentam transformar a terra em um céu. Temos exemplos disso também no Brasil, entre evangélicos. Fala-se de comprar produtos cristãos, em lojas cristãs, de comerciantes cristãos; fazer consertos com profissionais cristãos; votar em um candidato cristão, ouvir apenas música cristã, olhar programas cristãos na televisão, etc. Senkbeil faz a pergunta: não estamos com isso sugerindo um novo movimento monástico, de nos isolarmos do mundo, criando nosso mundinho cristão? Não será esta uma negação prática da encarnação? Senkbeil sugere positivamente que ao invés de criarmos um muro em volta de nós, como indivíduos ou como igreja, que assumamos um papel ativo no mundo real, “aproveitando as oportunidades” (Cl 4.5). Vivemos cada dia na certeza de que Deus tem um trabalho para nós aqui no mundo. Por um lado, como testemunhas do evangelho, pelo qual o Espírito Santo faz o reino vir aos corações. Por outro lado, temos um compromisso de participação naquelas instituições que estão aí para preservar a vida e valorizar a criação de Deus. Lembro a família, o governo, o trabalho, a escola. Estes são lugares em que os cristãos têm muito o que fazer e viver sua vida diária, para o bem do próximo.
7 - A distinção entre o ministério e o sacerdócio. Todo o cristão é sacerdote de Deus, podendo receber a palavra e os sacramentos e servir a Deus, como indivíduo e em conjunto com os irmãos na Igreja; aqueles que são chamados ao ministério (pastoral) estão no ofício instituído por Deus, para servir à Igreja com o evangelho, anunciado e repartido nos sacramentos.
Pelo batismo todos os cristãos são sacerdotes de Deus. Assim, têm acesso a Deus e dele recebem dons preciosos através da palavra e sacramentos. Este fato libera os crentes para servirem a Deus e ao próximo, sem precisarem se preocupar em, com este serviço, buscarem mérito perante Deus. Fagerberg mostra que as Confissões Luteranas enfatizam a vida cristã na vocação, isto é, no chamado que cada crente tem para exercer seu sacerdócio. Na igreja medieval o ideal colocado para a vida cristã era a vida monástica, longe do mundo. Os luteranos, porém, mostraram que a vida cristã se dá em meio às instituições, como o governo civil, a ordem política e o casamento, onde é preciso que “cada qual, de acordo com sua vocação, mostre, em tais ordenações, amor cristão e obras verdadeiramente boas.” Assim, a vida no sacerdócio agradável a Deus não se dá no exercício de funções que o ministro tem ao seu cuidado, através do chamado, mas pelas funções que recebemos especialmente na família e na sociedade.
8 - Valorização da tradição, sem canonizá-la - os luteranos se vêem na linha da Igreja cristã de todos os tempos, e não como uma nova igreja. Na conclusão aos primeiros 21 artigos de doutrina, a Confissão de Augsburgo afirma: “... essa doutrina se fundamenta claramente na Sagrada Escritura, e além disso não é contrária nem se opõe à igreja cristã universal, e, na verdade, tampouco à Igreja Romana, quanto se pode coligir dos escritos dos Pais, pensamos também que os nossos oponentes não podem estar em desacordo conosco nos artigos acima indicados.” (CA Conclusão aos Artigos I-XXI, 1 – Livro de Concórdia, p. 39,40). E ao final dos artigos onde havia controvérsia, a mesma CA novamente garante: “Relatamos apenas aquilo que julgamos necessário aduzir e mencionar, a fim de que daí se pudesse tanto melhor perceber que, em doutrinas e cerimônias, entre nós nada se recebeu que seja contra a Sagrada Escritura ou a igreja cristã universal. Porque deveras é público e manifesto havermos evitado, diligentissimamente e com a ajuda de Deus (para falar sem vanglória), que se introduzisse, alastrasse e prevalecesse em nossas igrejas qualquer doutrina nova e ímpia.” (CA Conclusão 5; Livro de Concórdia, p. 62). Note-se o empenho em mostrar que os luteranos não estão fundando uma nova Igreja. Por isso, valorizam a palavra dos pais, ainda que reconheçam que eles se enganaram muitas vezes. Nem por isso, ignora ou despreza o valor da tradição. A Escritura Sagrada, porém, é a única fonte e norma de doutrina, pela qual todos os escritos dos pais são julgados (FC Epítome Da Suma 1; Livro de Concórdia, 499).
Há quem possa questionar se os luteranos “ielbianos” de fato testemunham, confessam e ensinam o que acima foi observado. Também faço esta pergunta. Mais adiante quero compartilhar uma tentativa de resposta a ela.
II. Duas questões para uma análise crítica
1) Tais características – nossa identidade – servem ou atrapalham o objetivo da igreja? O que somos combina com o que temos a fazer? Roberto Bellarmino, teólogo católico romano do final do século XVIII, acusou os luteranos de não desenvolverem uma atividade missionária séria. Segundo ele, os luteranos “não converteram pagãos ou judeus à fé, mas apenas perverteram cristãos.” Enquanto isso, argumenta Bellarmino, os católicos converteram a muitos, no século XVI, nas colônias do novo mundo (especialmente América Latina). Seria esta uma acusação válida ainda hoje? É claro que há exemplos na História das Sociedades missionárias luteranas, que iniciaram missões em diversos lugares do mundo. Mas a pergunta que fazemos é se nossa teologia é apropriada para uma prática missionária arrojada! Minha convicção é que a teologia luterana, que abraçamos, é a mais apropriada para o trabalho que temos a fazer – porque é biblicamente correta e, sobretudo, porque é evangélica. Arrisco dizer mais: mesmo quando os luteranos deixam de ser tão enfáticos como deveriam, no que se refere à obra missionária, a teologia luterana, se corretamente confessada, é missionária em si!
Se é verdade que nossa identidade corresponde ao que a Escritura pronuncia a respeito da Igreja de Jesus, então não devemos temer estar no caminho errado. As aparências podem até mesmo indicar o contrário. Pode parecer que não haja espaço para denominações religiosas com características doutrinárias fortes, como a IELB. Afinal, vivemos em tempos de pluralismo religioso, tempos de tolerância e de fomento ao ecumenismo. Penso que, de fato, é preciso que a IELB se dedique mais à questão do diálogo ecumênico. É uma triste realidade que no mundo o paganismo está crescendo, seja pelas seitas orientais, seja pelo islamismo; no Brasil, principalmente, pelo espiritismo de diversas formas. Os cristãos precisam dialogar; não podemos nos excluir disso. Naturalmente, por respeito à palavra de Deus, todo diálogo precisa ser pautado pelo estudo da Escritura. Acordos só podem ser feitos a partir da confissão comum da mesma fé. Parece-me que estamos longe de chegar a acordos assim com outras denominações; mas isto não nos deveria impedir de seguir em frente no diálogo, digo novamente, em busca da confissão comum da fé.
Mas a questão aqui é outra. Nossa identidade de maneira nenhuma nega a unidade da Igreja, que confessamos no Credo. Afinal, esta unidade, que é objeto de fé, não de constatação visível, é produzida pelo evangelho – a boa nova da salvação em Cristo. A identidade da IELB é evangélica; tem seu centro no Cristo Salvador. Não devemos temer que esta identidade possa prejudicar o objetivo missionário da Igreja. Este não é o caminho mais fácil. Mas é o correto.
Talvez seja por demais óbvio o que direi agora, mas o digo assim mesmo. Ao longo deste estudo, tenho insistido que temos um tesouro dado por Deus – na doutrina pura do evangelho – que podemos (e devemos) compartilhar com outros cristãos – isso sem mencionar aqueles que ainda não são cristãos e que precisam urgentemente conhecer a verdade salvadora. Bem, se isto é verdade, então estou sugerindo que a IELB seja uma denominação muito aberta e pronta ao diálogo com outras denominações cristãs. Afinal, como iremos compartilhar com outros uma mensagem se não conversarmos com eles. Este é um assunto controvertido entre nós. Há exageros tanto de um lado como do outro – os extremos são sempre perigosos. Mas creio que há espaço para um maior diálogo com outros cristãos. Perseverança na doutrina e apego às Confissões não implica isolacionismo, mas o desejo sincero de testemunhar a verdade que cremos, com humildade, amor e firmeza. Não creio que devêssemos ter como meta imediata fazer acordos e protocolos, mas estudar a palavra de Deus, orando para que o Espírito Santo use esta palavra e edifique sua Igreja.
Volto a enfatizar o ponto de vista colocado no ponto acima: nossa identidade confessional é muito apropriada para que sejamos, de fato, uma Igreja missionária e ecumênica (no melhor sentido desta palavra).
2) Uma questão um pouco mais crítica e, talvez, dolorosa: somos de fato o que pretendemos ser? Ou seja, estamos realmente preservando nossa identidade? Se o que foi dito até aqui retrata com fidelidade elementos centrais do que significa ser cristão luterano, resta a pergunta se estas características realmente se evidenciam em nossa prática como IELB.
Novamente quero assumir o risco de fazer uma avaliação, muito pessoal e, por isso, subjetiva. Com todo o respeito por esta Igreja, que eu amo e à qual pertenço por convicção, preciso dizer que temos algumas áreas nas quais penso estarmos em perigo de negar nossa identidade, se não de maneira formal, mas na prática de nossas ações.
Parece-me que há entre nós um tríplice perigo: 1) falta de clareza quanto ao que somos e cremos; 2) reação apática ou até mesmo de aprovação diante da influência de um contexto estranho a nossa identidade; 3) convicção enfraquecida de que nossa identidade é boa e merece ser preservada, conservada e propagada.
Gostaria de mencionar apenas algumas áreas que parecem indicar que temos problemas com nossa identidade.
Instrução de confirmandos – existem diversos roteiros (manuais) produzidos por pastores da IELB. Vejo isto, por um lado, como algo positivo, pois mostra a preocupação dos colegas em atingir os confirmandos com um ensino aplicado a eles, no seu contexto e para sua idade. Aí os pedagogos têm bastante a nos ajudar. Preocupa-me, porém, que em algumas situações, o Catecismo Menor do Dr. Martinho Lutero deixe de ser o roteiro básico deste ensino. Li há alguns dias a respeito de um professor luterano de um Seminário americano (não da nossa igreja) que diz que em suas aulas – de História da Reforma Luterana – exige que seus alunos memorizem todo o Catecismo Menor! Ele argumenta: “Jovens pastores devem ter na boca as palavras que estão no coração do povo luterano” (James Nestingen; Luther Seminary). Elas estão nos nossos corações e mentes, ainda hoje?
Culto, liturgia e hinódia – quero dizer de imediato, que sou adepto da idéia de que o culto deve ser um momento belo, bem elaborado, alegre, vivo, motivador. Quero também dizer que tenho a convicção de que a liturgia tradicional luterana é tudo isso! E incluo aqui os hinos de nosso hinário. Vejo com muita preocupação adotarmos cânticos de outras tradições cristãs, sem a preocupação em um estudo mais detalhado do conteúdo. Temos muita gente talentosa em nossa IELB – músicos, pastores, jovens (com suas bandas). É preciso incentiva-los, apóia-los e também lembrar-lhes de que a teologia luterana merece ser refletida no que cantamos. Para refletirmos, pergunto: quantos de nossos cânticos contemporâneos trazem textos edificantes a respeito de temas importantes da doutrina – batismo, Santa Ceia, absolvição, por exemplo?
Pregação – o sermão. O Presidente da IELB, pastor Carlos Walter Winterle, tem manifestado preocupação com o assunto, em correspondência aos pastores. Este foi o assunto dos concílios da Igreja no ano passado. Por que será? Temos dificuldades neste assunto de tão grande importância para a vida da Igreja. Lembrando que nossa tendência natural é sermos legalistas, se não tivermos um cuidado muito grande, se não estivermos atentos e não formos críticos conosco mesmos – falo como pastor – nossos sermões tenderão a ser legalistas: falando mais do que as pessoas devem fazer, deveriam deixar de fazer, deveriam estar fazendo ... do que Deus fez, faz e fará por nós, neste mundo e na eternidade.
Ministério e sacerdócio universal. Há um intenso debate, que não é de hoje, na Igreja cristã como um todo, a respeito da relação entre o ministério e o sacerdócio. A IELB não ficou de fora. Vejo que temos alguma confusão a respeito, especialmente por causa de exageros de um ou de outro lado. Temos problemas de relacionamento. Por um lado, parece haver ainda, em alguns lugares, o chamado “pastorcentrismo”, ou seja, tudo centralizado no pastor; pouca participação dos congregados, domínio por parte do pastor, que impõe sua maneira de ver as coisas (que não significa necessariamente a maneira bíblica, mas sua, pessoal) sobre a congregação. Por outro lado, há tendências de tratar o ministro da palavra como um empregado da congregação, a quem se trata simplesmente como um empregado, sem se levar em conta as implicações do ministério ser estabelecido por Deus e exercido a partir de um chamado divino, ainda que mediato através da congregação.
Também temos problemas de clareza quanto às funções. Nós, pastores, precisamos volta e meia reler nosso chamado e a cerimônia litúrgica de ordenação ao ministério. Pregar a evangelho, administrar os sacramentos, perdoar e reter pecados, ensinar ... enfim, ser um servo da Palavra – aí está a nossa função. Quanto aos sacerdotes reais, por vezes parece que exercer o sacerdócio é ter tarefas durante o culto – fazer leituras, orações, até mesmo sermão. Podemos conversar a respeito da possibilidade de que isto ocorra, sem problemas. No entanto, precisamos saber que não é isso o exercício do sacerdócio universal. Somos sacerdotes para viver nossa fé sobretudo no mundo, a começar em nossa família. Antes de querermos dirigir cultos (para o que alguém foi legitimamente chamado) precisamos zelar para que a Palavra de Deus tenha livre curso em nosso lar. Indo além, somos sacerdotes na escola, no trabalho, no clube, lá entre os nossos amigos, no exercício de nossa cidadania. Parece-me que aí nossa presença forte, convicta, marcante ... se faz cada vez mais necessária. Temo que por vezes estejamos querendo substituir nossa atuação – fundamental – como sacerdotes no mundo, pela nossa atuação em tarefas específicas no culto – o que pode ser visto como um acréscimo, uma parte, mas jamais o exercício do nosso sacerdócio.
III. Algumas sugestões sobre o que precisamos fazer
1 – “Volta às fontes!” É preciso um estudo continuado, sério e profundo das Escrituras. Ela são nossa fonte básica para fé, doutrina e vida (lembrando que a palavra de Deus não apenas informa, mas faz o que promete). Além de estudarmos as Escrituras, porém, é importante o conhecimento da História da Igreja (não simplesmente da IELB, mas da Igreja cristã no mundo), para conhecermos os desafios que nossos pais enfrentaram, que são muito semelhantes aos que se colocam diante de nós. Além disso, faz-se sempre mais necessário um estudo comprometido com as Confissões Luteranas – onde nossa identidade está expressa. O que temos aí não contradiz, nem acrescenta à verdade bíblica, mas nos dá as “lentes” pelas quais lemos as Escrituras, e que nos diferenciam de outros grupos religiosos, também dos outros grupos cristãos. Não queremos com isso estufar o peito com orgulho, dizendo como somos diferentes! Não é esse o ponto. Queremos, sim, lembrar que temos, como luteranos, uma contribuição a dar, também a nossos irmãos de outras denominações cristãs. Não nos consideramos a única Igreja com cristãos no mundo. Mas estamos convictos de que a doutrina que professamos é correta, porque fundamentada na Escritura e centralizada na pessoa e obra de Jesus, o Salvador do mundo, o Senhor da Igreja.
Vale a pena ouvir o que tem a dizer o teólogo luterano Edmund Schlink, no prefácio à tradução inglesa de seu monumental Teologia das Confissões Luteranas, infelizmente ainda não editado em Português: Este livro teve sua origem no período de provação e perseguições às quais os cristãos na Alemanha estiveram expostos enquanto os Nacional-Socialistas estiveram no poder. De uma maneira nova e urgente, esta situação clamava por uma confissão de fé corajosa e firme, fazendo frente ao estado totalitário e sua visão de mundo. Aqui se tornou evidente a grande ajuda e força para o ato de confissão de hoje que nos é trazido pelas confissões da Igreja antiga e da Reforma. Tentações e heresias assumem novas formas à medida em que a História se desenvolve, mas o Cristo que nos salva e que somos chamados a confessar continua sendo o mesmo. Por esta razão, o ato de confessar [a fé] por parte do indivíduo e a Confissão da Igreja andam lado a lado, ainda que cada indivíduo em sua própria época precise usar palavras novas para confessar o mesmo Cristo. A Confissão da Igreja, no entanto, nunca é simplesmente a confissão dos contemporâneos, ou seja, da comunhão dos irmãos; ela é sempre a confissão dos pais. Pois através de todas as transformações das épocas e em meio a toda a multiplicidade de seus testemunhos atuais, a Igreja sempre permanece uma e a mesma.”
2 - Clareza quanto a nossa razão de ser. Por que somos Igreja de Deus aqui no Brasil? Para que estamos aqui? É preciso sempre mais parar de olhar para nossos próprios umbigos, e olhar para o mundo, no qual estamos e ao qual Deus nos envia. Nossos projetos como Sínodo precisam estar voltados à missão de Deus – a salvação do mundo. Nenhuma congregação pode fazer seu planejamento e conduzir suas atividades, sem levar em conta o amor de Deus pelo mundo.
Uma pergunta que precisamos sempre fazer ao planejarmos as atividades da congregação, distrito, Sínodo é esta: o que temos em mente – a manutenção de nossa estrutura, ou a propagação do evangelho ao mundo? Fui membro por dois anos de uma congregação que tinha uma “Declaração de missão” muitas vezes mencionada publicamente e expressa em todos os boletins informativos; ela dizia: “Proclamar o evangelho de Jesus Cristo e demonstrar o amor de Deus uns aos outros, para a comunidade e para o mundo”. Lembro que a cada ano programações eram feitas com o propósito de ressaltar os três contextos mencionados – a congregação, a comunidade, o mundo. Missionários eram lembrados, por oração e ofertas; projetos evangelísticos eram abraçados fora do país e entre pessoas menos atingidas pelo evangelho no próprio país; etc.
Temos nós, em nossas congregações, clareza quanto a qual é nossa missão? Os congregados sabem a razão bíblica e evangélica para termos uma congregação local ali onde estamos?
3 – Uma leitura correta da realidade. Estamos no Brasil, no século XXI. Isso diz muita coisa. Não estamos nos EUA, no século XIX. Não estamos na Alemanha, no século XVI. Estamos no Brasil, no século XXI. Isso não pode e não deve mudar em absolutamente nada o que cremos, ensinamos e confessamos. Mas certamente deve dizer algo sobre que assuntos temos diante de nós, alguns dos quais não existiam no tempo de nossos pais. Precisamos perceber que problemas estão diante de nós e exigem nossa resposta, nossa ação, nossa participação.
Há questões difíceis para tratarmos, a partir da palavra de Deus. O que diremos sobre os temas éticos candentes de nossa época, envolvendo a definição da vida e a manipulação genética, por exemplo? O que temos a dizer sobre a multidão de desempregados no Brasil (também em nossas congregações), sobre os que não têm onde morar, sobre as crianças de rua? Não tenho respostas sobre o que temos de dizer sobre cada um destes e de outros temas. Mas creio que não podemos nos omitir de discutir, estudar, debater tais questões e agir concretamente, sob o risco de nos tornarmos uma Igreja que fala da verdade eterna, mas que parece não tocar na vida diária das pessoas. A encarnação de Cristo leva à “encarnação” da Igreja, se posso dizer assim.
4 – Sermos auto-críticos, sem sermos auto-destrutivos. Como em muitos outros aspectos da vida, temos uma tendência ao exagero e a atitudes extremadas. Novamente reconheço que estou sendo bastante pessoal neste caso. Posso eu mesmo estar exagerando na minha análise, mas arrisco-me a, assim mesmo, compartilhar alguns pensamentos. Analisarei com carinho e de bom grado as correções que me forem propostas em relação ao meu posicionamento.
Por vezes temos uma postura triunfalista, como se tudo o que fizéssemos fosse o melhor e impossível de ser questionado, criticado e melhorado. Tornamo-nos arrogantes, orgulhosos, vaidosos, por colocarmos o foco do louvor no lugar errado. Quando alguém nos faz uma crítica, ficamos irritados, nos sentimos desvalorizados e desmotivados. Acabamos pensando que os que criticam o fazem por maus motivos e, por isso, nem mereceriam ser ouvidos.
Por outro lado, também corremos o risco de sermos por vezes tão severos conosco mesmos, ao ponto de quase negarmos o que somos. O que fazemos é sempre ruim; nossas instituições são lentas, fracas, indecisas; nossas diretorias e comissões são incompetentes; nossas congregações estão paradas; nossos pastores são relaxados e preguiçosos; não fazemos missão; não nos preocupamos com as necessidades materiais das pessoas; nossos cultos são frios e parados; nossas publicações perdem em qualidade para as de outras denominações; etc. Olhamos para o lado e parece-nos que os outros são melhores do que nós em tudo isso – eles cultuam melhor, pregam melhor, trabalham mais, decidem melhor, se organizam, etc.
Acredito que pode haver alguma verdade nisso. Temos algo a aprender com outras denominações cristãs. Não vejo problema nisso. O problema é nos tornarmos tão negativos, que acabemos exagerando e deixando de ver e reconhecer as coisas muito boas que temos. E aqui não me refiro somente aos aspectos que citei acima – as contribuições teológicas que a teologia luterana tem a oferecer. Refiro-me também à prática presente em nossa Igreja. Temos excelente literatura, que serve de referência para outras Igrejas. É pouca? Pode ser; então vamos melhorar, mas não deixemos de reconhecer o que temos. Nossos líderes são reconhecidos positivamente em encontros interdenominacionais. Poderiam ser melhor preparados? Pode ser; quem sabe devemos investir mais no seu preparo! Mas o fato é que pessoas de outras Igrejas reconhecem nossos líderes – direção de Igreja, líderes de comissões, representantes da Igreja em encontros – como tendo algo a oferecer de positivo, de construtivo. Nosso culto traz consigo a riqueza da tradição litúrgica da Igreja cristã, tem um balanço correto de lei e evangelho, está centralizado no amor de Deus em Cristo e tem dado espaço para contribuições contemporâneas. Poderia ser melhor? Talvez. Então vamos estudar nosso culto, com carinho, mas não vamos despreza-lo. Outras denominações cristãs que apelaram para o “Louvorzão” e para um culto sem ordem litúrgica estão refletindo sobre sua prática e algumas estão voltando atrás, valorizando mais o estudo da tradição cristã.
Cuidado: não estou aqui propondo que saiamos daqui hoje com o peito estufado de orgulho, por sermos “tão bons”. Lembramos com o apóstolo o alerta: “Quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (1 Co 4.7) Estou sugerindo, sim, que sejamos realistas e, por isso, críticos. Precisamos ser os nossos maiores críticos. Isso significa que estamos dispostos a aprender, a repensar, a ouvir o que outros têm a nos dizer, a voltar – como disse acima – às fontes, para renovar nossa prática. Mas não podemos ser destrutivos. É preciso valorizar o que temos, com carinho e com gratidão a Deus. E com o sentimento de que somos devedores de compartilhar, repartir o que temos.
Conclusão
Certa vez ouvi que uma boa pergunta já traz consigo a resposta, ou ao menos uma indicação da resposta correta. O tema que me foi proposto dizia: “CRISTO PARA TODOS – O OBJETIVO DA IGREJA”. Se a pergunta era: “Qual o objetivo da Igreja?” a resposta já estava expressa: “Cristo para Todos”. De fato, não é outro o objetivo, a finalidade, a razão de existir da Igreja neste mundo, também a razão de existir da IELB. Estamos vivendo o tempo de Epifania – a manifestação do Salvador ao mundo. Um dos episódios mais belos relatados pela Escritura – a vinda dos magos – serve de referência para este período. O Salvador traz na sua pessoa e obra algo tão precioso, o que há de mais precioso no universo, que é digno de ser compartilhado com o mundo inteiro. Ele veio pelo mundo inteiro. Sua manifestação é manifestação do amor de Deus pelo mundo. A Igreja não pode ter outra perspectiva, outra finalidade, outro objetivo, do que manifestar, em seu testemunho, em sua ação, em sua vida o Salvador Jesus ao mundo. Ontem, hoje e sempre Ele é o mesmo: nosso Redentor e do mundo inteiro. Amém.
Gerson Luis Linden
São Leopoldo, RS