Ao estudarmos a Reforma é importante que analisemos o contexto econômico e social da época e quais as influências destas questões para o movimento religioso. Nesse aspecto, estudaremos a situação dos camponeses e suas reivindicações, qual o motivo da insatisfação desta classe e contra quem estes se voltaram.
Além disso, é importante levarmos em conta o posicionamento das pessoas que estavam à frente destes movimentos - quando digo “movimentos”, me refiro à Reforma religiosa e a revolta dos camponeses – e qual a relação que existe entre ambos.
Dessa forma, procura-se caracterizar a revolta dos camponeses, como ela se desenvolveu, quais os rumos que ela tomou e como terminou. Finalmente, se pretende mostrar quais as conseqüências da derrota dos camponeses em relação à reforma.
1. a guerra dos camponeses
A guerra dos camponeses foi marcada por várias revoltas que se estenderam durante o período que vai do final da Idade Média até o século XVIII. De uma forma geral, fala-se em guerra dos camponeses, pois estes tiveram uma maior participação, contudo, também estiveram presentes nestas revoltas, pessoas de outras classes, como artesãos, artistas e religiosos.
A guerra dos camponeses alemã se intensificou em junho de 1524, na margem sudeste da Floresta negra, próximo a fronteira com a Suíça.[1] No mesmo ano também aconteceu uma revolução na Suábia, durante a qual foram escritos os Doze Artigos, uma espécie de escrito programático que reuniu as queixas das aldeias próximas a Baltringen, no sul da Alemanha. A partir destes artigos se formou a maior e mais poderosa milícia de rebelados.
No centro da Alemanha a revolta ficou concentrada em torno da cidade de Mühlhausen e contou com a participação de Tomás Müntzer.
1.1 A situação economica, social e política
A grande característica da Idade Média foi o feudalismo. A maioria das pessoas vivia no campo. Como afirma Martini,
“As relações entre senhores feudais e servos eram reguladas pelo direito clássico medieval. Através dele os servos tinham seus deveres determinados e direitos garantidos, como o da caça, pesca, acesso à madeira, à moradia e sustento vitalício na área do feudo”.[2]
Mas o Império Sacro Alemão estava passando por diversas mudanças. O crescimento do comércio, das cidades, a invenção da pólvora e da imprensa juntamente com a insatisfação dos camponeses acabou introduzindo um novo modelo econômico. Estava acontecendo a transição do Feudalismo para o capitalismo mercantil.
A classe dos camponeses foi a que mais sofreu durante a Idade Média. Ela estavam vivendo num regime de semi-escravidão. Nesse sentido, os camponeses não podiam ser vendidos para outro senhor feudal muito menos sair do feudo de forma voluntária. A lei determinava que, caso alguém nascesse camponês era obrigado ser camponês para o resto da vida, não era permitido que alguém mudasse de classe.
Além disso, os senhores feudais não estavam cumprindo seus deveres para com os camponeses, ou seja, eles não permitiam que estes caçassem, pescassem e recolhessem a lenha necessária para a sua sobrevivência. Tudo isto contribuiu para a instabilidade econômica, social e política, e causou diversos movimentos, alguns violentos.
Outra causa da insatisfação dos camponeses foi o aumento dos impostos. Segundo os camponeses, o dízimo era o imposto a ser pago, conforme o direito divino. Por isso, os camponeses protestaram contra os abusos dos príncipes, pois havia uma cobrança de impostos acima do que estipulava a “Lei Divina”. Esta cobrança excessiva constituía no grande dízimo direcionado à igreja, o dizimo ao Senhor Feudal, e o dízimo sobre as pequenas coisas.
Não fossem apenas os impostos, os camponeses ainda eram obrigados a trabalhar de graça quatro dias por semana. Tudo isso trouxe descontentamento e deixou as classes menos favorecidas revoltadas.
Este descontentamento também se direcionava ao clero e ao papado, pois estes também eram favorecidos pelo aumento dos impostos. Havia uma estreita relação entre a Igreja e o Império. O papado tinha sob seu domínio o poder econômico e político.
Foi neste contexto de insatisfação que Lutero iniciou seu movimento. É importante ressaltar a relação que existia entre a Reforma religiosa proposta por Lutero e a reforma social idealizada pelos camponeses.
Nesse sentido, percebe-se que Lutero não tinha a intenção de criar uma nova igreja, muito menos causar uma revolução social. Ele tinha em mente a restauração das verdades bíblicas. É certo também, que em seus escritos, Lutero criticou a nobreza e o clero por manter sob condições indignas as pessoas de classes inferiores. Por outro lado, ele sempre afirmou que era preciso obedecer às autoridades, pois estas eram instituídas por Deus e tinham a função de manter a ordem.
1.2 os doze artigos
Trata-se de um manifesto que continha as principais queixas dos camponeses, a partir das quais se formou a maior e mais poderosa milícia de rebelados. Pode-se resumir assim os doze artigos:
“1) aborda o direito de cada comunidade de eleger e demitir seu pastor; 2) trata da abolição do pequeno dízimo e da revisão do destino do grande dízimo; 3) questiona o sistema de servidão a partir do sacrifício de Jesus, que, com seu sangue, conquistou a liberdade para todos; 4) defende o direito de caça e pesca para os pobres; 5) defende o direito à lenha; 6) reclama a retribuição por trabalhos compulsivos; 7) fala do direito de não serem sobrecarregados pelos senhores, embora admita o dever de prestarem eventuais serviços; 8) reclama dos tributos que pesam sobre os bens que alguns camponeses possuem; 9) exige que se pare de modificar constantemente os regulamentos que determinam os castigos aos servos; 10) condena a apropriação indevida de áreas de pastagem que pertencem à comunidade; 11) quer abolir o imposto sobre herança que pesa sobre viúvas e órfãos; 12) manifesta a decisão de revogar os artigos que eventualmente sejam contra a vontade divina.”[3]
É certo que todas estas reivindicações eram justas e necessárias para que os camponeses pudessem viver de forma digna. Por outro lado, Lutero não deixou de criticar os camponeses, pois estes afirmavam estar agindo em nome do evangelho. Apesar disto, pode-se perceber que critérios bíblicos estão presentes em quase todos os artigos.
Nesse sentido, deve-se ter em mente que estes camponeses estavam lutando pelos seus interesses e utilizavam passagens da Bíblia para criticar o clero e os príncipes. Contudo, eles não estavam preocupados se estavam utilizando o nome de Deus de forma indevida, o que eles queriam era se mostrar contrários à classe dominante e conquistar seus direitos.
Os artigos mais significativos certamente são aqueles que dizem respeito ao dízimo. O segundo artigo trata desta questão e admite que se cobre o dízimo, contudo, afirma que o dinheiro deve ser destinado, segundo a vontade da comunidade, ao sustento do pastor e amparo aos pobres. Isto com certeza preocupou os príncipes e o clero, pois eles eram mantidos pelo dízimo.
Lutero critica duramente este artigo afirmando que através deste os camponeses queriam apoderar-se de algo que não lhes pertencia, além de estarem desrespeitando as autoridades. Diz também que, se os camponeses quisessem ajudar os pobres deveriam fazer isto com seus próprios recursos.[4]
O terceiro artigo também foi alvo das criticas de Lutero. Ele questionou a afirmação da liberdade dizendo que isto significa transformar a liberdade cristã em coisa meramente carnal. Dessa forma, “Um escravo pode muito bem ser cristão e gozar de liberdade cristã, tal como um prisioneiro ou enfermo é cristão, mas não é livre... pois o reino secular não pode subsistir onde não houver desigualdade das pessoas...”.[5]
Portanto, é evidente que os interesses dos camponeses eram meramente sociais, ou seja, eles estavam lutando para resolver suas questões de sobrevivência e seus problemas de ordem material. Para tanto, utilizaram como base a Escritura e afirmaram estar sob esta autoridade para exigir tais mudanças. Por isso, Lutero se manifestou de forma tão severo as suas afirmações.
2. lutero e os camponeses
Lutero não tinha em mente uma revolução social, ele apenas queria restabelecer as verdades bíblicas há muito tempo esquecidas pela igreja da época. Por outro lado, as suas afirmações contribuíram para que as manifestações das classes desprivilegiadas tomassem forma. Assim, de certa forma, Lutero teve um papel catalisador, ele não era a causa, mas, ainda assim, equivaleu a um sopro vigoroso sobre o fogo que se alastrava.[6]
Diante das diversas situações irregulares praticadas na Igreja, Lutero protestou e deixou sua opinião em diversos escritos.
Muitas vezes há confusão entre o objetivo de Lutero e o dos camponeses. Lutero pretendia restaurar as verdades esquecidas pela igreja da época. Nesse sentido, criticou o papado e o seu poder político, por escravizar os fiéis com impostos e obras, e principalmente, por privar as pessoas do doce Evangelho. Lutero escreveu “Do cativeiro Babilônico da Igreja”, em 1520, questionando o direito da igreja ao manter cativos seus fiéis.
Nesse sentido Lutero apoiou a revolta dos camponeses, contudo, exortou à prudência e moderação. Segundo Lienharc, Lutero procurou exercer a cura d’almas para com pessoas pertencentes aos dois partidos em questão, num esforço para que a revolta não tomasse direções violentas.[7] É certo que algumas reivindicações dos camponeses eram justas, pois eles realmente estavam vivendo num regime semi-servil.
Por isso, os camponeses viram em Lutero um líder e inspirador. Eles perceberam que as reformas sociais poderiam se tornar realidade se alguém tão corajoso como Lutero estivesse à frente das revoltas.
As atitudes de Lutero contribuíram para isto: em primeiro lugar ele havia escrito ao Papa Leão X criticando o papado; a seguir, afixou as 95 teses e pregou contras as indulgências; e finalmente, quando acusado de herege, recebeu a Bula de excomunhão, reuniu um grupo de pessoas dentro da Universidade de Wittemberg e em ato público queimou este documento, demonstrando assim a sua coragem.
Além disso, Lutero escreveu: “À nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão”, de 1520. Neste documento, Lutero critica os príncipes e afirma sobre os direitos da autoridade secular, dos seus limites e do desempenho cristão como autoridade.
Em seu escrito “Da Liberdade Cristã”, Lutero enfatizou a questão da liberdade e ao mesmo tempo servidão ao próximo. Esta servidão, por sua vez, era caracterizada pelo amor. Ele também advertiu os pastores para que pregassem contra a usura: “Comércio e Usura”, de 1524.
Tudo isso colaborou para que o poder econômico e político se desestabilizassem ainda mais. O descontentamento dos camponeses era notável. Estes viram em Lutero um aliado na luta por melhorias sociais e econômicas. Segundo Martini,
“pode-se dizer que Lutero tentou fazer a ponte entre partes em litígio: Igreja/príncipes, representando o poder eclesiástico e secular, e a população. Era um confronto que vinha se acentuando há séculos. No entanto, a articulação tentada por Lutero produziu um resultado inverso: acelerou o confronto direto.”[8]
Apesar disto, Lutero nunca incentivou a guerra, nem qualquer manifestação ou desordem que pudesse trazer algum dano a alguém. Ele sempre aconselhou tanto os camponeses quanto os nobres a que resolvesse as questões de forma pacífica, como é próprio dos cristãos.
3. Derrota dos camponeses e as conseqüências para a reforma
Várias são as razões da derrota dos camponeses. A falta de um líder foi uma destas causas. As diferenças que existiam entre os camponeses e o fato deles não terem nenhuma preparação para a guerra tornaram-se causa imediata da derrota.
Além disso, os camponeses eram facilmente enganados pelos oficiais das tropas inimigas. Várias vezes, em momentos decisivos, quando era certa a vitória dos camponeses, os líderes das tropas oficiais faziam propostas de mudanças e melhorias, contudo, tudo isso era apenas pretexto para salvar-se das mãos dos camponeses. As mudanças, por sua vez, nunca ocorreram.
Outro fator que contribuiu para a derrota foi o fato dos camponeses não terem armas suficientes para a luta nem uma organização para a batalha.
Assim, segundo Martini,
“...os camponeses partiram para uma batalha suicida. Foram incendiados por um líder fanático – ao ver o arco-íris no firmamento Münzer divisou o apoio de Deus aos camponeses - , tornando-se uma massa desgovernada, enraivecida, privada dos recursos e estratégias mais elementares para uma batalha.”[9]
As intenções de Tomás Münzer eram boas, contudo, ele não tinha senso de liderança e impulsionou os camponeses a que agissem de foram radical, se negassem à prestação de serviços e ao pagamento dos tributos feudais. Dessa forma, em pouco tempo a manifestação assumiu proporções violentas. O fanatismo e o ódio passaram a dirigir esta classe a dar forma ao movimento. Os camponeses incentivados por este líder, e em vista das suas necessidades, começaram a saquear, destruir castelos e conventos, matar e estuprar em nome de Cristo.
Em vista disto, Lutero retirou o seu apoio, inclusive, e o que parece estranho, ele incentivou os príncipes para que acabassem com estas manifestações de forma rigorosa, mesmo que fosse por meio da espada.
Tudo isto só pode ser entendido sob os acontecimentos e atitudes dos camponeses, que através de uma reação violenta, e o que mais deve ter causado indignação para Lutero, utilização do nome de Cristo, justificando as suas atitudes. Lutero expressou sua opinião com relação a isto em “Contra as Hordas de Ladrões e Assassinos dos Camponeses”, de 1525.
Lutero escreve:
“Não há nada mais venenoso, de mais nocivo, de mais diabólico do que um rebelde... Toda autoridade, mesmo pagã, tem direito e poder, de punir tais celerados: porque é por isso que ela é detentora da espada e é ministra de Deus contra aqueles que cometem tantas ações maldosas, Romanos 13.”[10]
Mesmo assim, os camponeses estavam ludibriados por Müntzer a conquistar os seus direitos de qualquer forma, inclusive através da espada.
Conforme Dreher,
“Levaram oito pequenos canhões, mas nada de munição! Ao invés da munição, Müntzer ordenou que os camponeses ostentassem uma espada e uma grande bandeira de seda branca. Sobre a bandeira estava desenhado o arco-íris, sinal da aliança de Deus com os eleitos.”[11]
Isto aconteceu na Batalha de Frankenhausen, em 25 de maio de 1525. Nesta batalha morreram aproximadamente cinco mil camponeses e seis soldados das tropas dos príncipes. Sem dúvida, isto demonstra a sua ignorância militar e política.
A derrota dos camponeses trouxe conseqüências negativas para a Reforma. A impressão que muitos tiveram de Lutero foi a de um traidor, de um articulador, pois a principio Lutero se mostrou favorável aos camponeses e depois se demonstrou contrario ao movimento revolucionário.
Segundo Lienharc pode-se dizer que o herói de uma nação inteira já não passava de chefe de um partido.[12] Nesse sentido, o apoio antes demonstrado pelos camponeses com relação à reforma, agora já havia se revertido em oposição.
conclusão
O movimento da Reforma esteve rodeado de grandes transformações econômicas e sociais. Os movimentos sociais estabelecidos durante este período direcionaram o movimento da Reforma, conduzido por Lutero.
Dessa forma, é importante ressaltar que Lutero estava determinado a restaurar as verdades esquecidas pela igreja da época. Também é certo que ele não concordava com as condições impostas aos camponeses. Além disso, Lutero criticou o papado e os nobres, acusando-os de principais causadores da revolta.
Apesar de tudo isto, Lutero sempre exortou contra a violência e afirmava que todas as questões deveriam ser tratadas pacificamente com ordem e amor. Nestes termos, entende-se porque ele assumiu uma posição contrária ao que havia proposto inicialmente, ou seja, condenou as atitudes violentas dos camponeses, em especial à pessoa que havia estimulado os camponeses a tais atos, Tomás Münzer.
As conseqüências da derrota dos camponeses abalaram o movimento da Reforma de forma significativa. Lutero perdeu o apoio dos camponeses e foi considerado um mero líder de um partido político. Contudo, ele não parou de lutar para restaurar a verdade novamente.
Nesse sentido, percebe-se a mão de Deus agindo em favor da sua igreja. Através de vários movimentos, finalmente a reforma aconteceu. Isto só foi possível porque Deus estava dirigindo tal movimento.
bibliografia
BAITON, Roland H. Martin Lutero. Cupsa: México, 1989.
DREHER, Martín N. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. v. 3. São Leopoldo: Sinodal, 1996.
LIENHARD, Marc. Martim Lutero: Tempo, Vida e Mensagem. Sinodal:1998.
LUTERO, Martinho. Guerra dos camponeses. Obras selecionadas. Vol 6. São Leopoldo: Sinodal. p.270-360.
MARTINI, Romeu R. e GROSS, Eduardo. Movimento da Reforma e Contexto Latino-Americano. Série Ensaios e Monografias – Nº 3. São Leopoldo: Sinodal, 1993.
Sumário
[1] Martinho Lutero, Obras selecionadas, v.6, p.274.
[2] Romeu R. Martini, Movimento da Reforma e contexto latino-americano, 1993, p. 6.
[3] Ibidem, p. 10.
[4] Martinho Lutero, op. cit., p. 325.
[5] Ibidem, p. 326.
[6] Marc Lienharc, Martim Lutero: Tempo, vida e mensagem, 1998, p. 358.
[7] Ibidem, p. 362.
[8] Romeu Martini, op. cit., p. 9.
[9] Ibidem, p. 13.
[10] Marc Lienharc, op. cit., p. 364.
[11] Martin N. Dreher, A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma, 1996, p. 91.
[12] Ibidem, p. 369.