SINGULARES
TEXTO DE REINALDO LÜDKE
Subsídios tirados do livro – capítulo - "Igreja e o desafio dos singulares
Pastor, quando você fala na família, eu fico sempre de fora!" Foi assim que uma senhora falou comigo há quase
20 anos, quando eu era pastor na cidade de São Paulo. Num primeiro momento, fiquei chateado, achando que a
observação dela era injusta. Afinal, eu sempre me preocupava em tratar todos com igualdade. Depois fui conversar com ela e perguntei
por que ela se sentia excluída quando eu falava da família, e ela respondeu: "Quando você fala na família você sempre menciona
o marido, a esposa e os filhos. Mas a minha família é diferente. Eu sou viúva".
A partir desse dia, eu passei a prestar mais atenção sempre que
falava na família. A partir das palavras dessa irmã na fé, me dei
conta de que as famílias são diferentes. A minha família era composta de marido, esposa e filhos. Contudo, na congregação, havia
várias famílias diferentes, bem como várias pessoas que eram sós, singulares. A minha discriminação não era consciente ou voluntária.
Ela era inconsciente e involuntária, mas era um tipo de discriminação ou de exclusão, por causa do modelo de família que eu
tinha em minha mente.
Por isso, vale a pena considerar esse assunto para que, como
Igreja, estejamos atentos às diversas realidades familiares, e para
que nossa linguagem sempre inclua todos na grande família da fé.
Num passado nem tão distante, o casamento fazia parte dos
planos e projetos de todo homem e mulher. A expectativa da juventude
estava voltada para o momento mágico do casamento,
para a constituição de uma nova família, para ter filhos, para não
viver só.
Contudo, na atualidade, sentimos que esses valores começam
a mudar. Em alguns países da Europa, viver sozinho é uma opção
cada vez mais presente na decisão de homens e mulheres. No Brasil
ainda não sentimos essa tendência de maneira tão forte como em
outros países, mas constatamos que os jovens pensam prioritariamente
na formação profissional, na graduação, na pós, no
mestrado e no doutorado para, depois, pensar no casamento. Os
relacionamentos entre o homem e a mulher também já não são
tão estáveis, eles são mais descompromissados. Talvez por isso,
também, menos duradouros.
Constatamos, também, que muitos estão sozinhos porque a
vida não lhes ofereceu a oportunidade de constituir família, ou
porque perderam esta condição em virtude de separações familiares,
ou por causa do falecimento de cônjuges, de pais, filhos ou
irmãos, ou, até, por questões de enfermidade, trabalho e sobrevivência.
Também precisa ser dito que muitas pessoas, mesmo
as bem casadas, ou com pais, filhos ou irmãos, estão completamente
sós. Estas e muitas outras situações formam o quadro
social dos nossos dias. Este quadro nos mostra muitas pessoas
singulares, e entre elas estão crianças, jovens, adultos, idosos,
homens, mulheres, ricos, pobres, cristãos e não-cristãos. Entre
elas também estão muitos cristãos luteranos, membros das congregações
luteranas espalhadas por todo o país. É para estas pessoas
que queremos olhar mais de perto como cristãos e como
Igreja.
São do Criador as palavras registradas em Gênesis 2.18 e que
falam do casamento: "Não é bom que o homem viva sozinho.
Vou fazer para ele alguém que o ajude como se fosse a sua outra
metade". Palavras semelhantes, não obrigatoriamente relacionadas
ao casamento, também nos são trazidas pelo sábio Salomão,
da parte de Deus, quando escreve: "Melhor é serem dois do que
um, porque têm melhor paga do seu trabalho. Porque se caírem,
um levanta o companheiro; ai, porém, do que estiver só; pois,
caindo, não haverá quem o levante. Também, se dois dormirem
juntos, eles se aquentarão; mas um só como se aquentará? Se
alguém quiser prevalecer contra um, os dois lhe resistirão; o cordão
de três dobras não se rebenta com facilidade" (Eclesiastes
4.9-12 – ARA).
A partir da Palavra de Deus também entendemos melhor o propósito
divino ao instituir o casamento e dizer: "É por isso que o
homem deixa o seu pai e a sua mãe para se unir com a sua mulher,
e os dois se tornam uma só pessoa" (Gênesis 2.24). Assim, juntos,
poderão conviver com prazer e alegria cada dia; assim poderão
constituir famílias; assim poderão se apoiar mutuamente.
Se, por um lado, o propósito de Deus é tão bonito, também é
verdade que o pecado, que entrou no mundo, a partir da desobediência
de Adão e Eva, separou as pessoas de Deus (Isaías 59.2) e
continua separando também as pessoas umas das outras, deixando-
as sós. Em maior ou menor intensidade todos sentem essas
conseqüências.
Quando Jesus veio ao mundo para salvar a humanidade, ele se
tornou pessoa humana para assumir o pecado e a culpa das pessoas,
mas também para estar do lado das pessoas, para ser "Deus
conosco" (Mateus 1.23) e para não deixar ninguém só. Em Cristo
ninguém está só, quer seja casado, solteiro, viúvo, separado, órfão
ou abandonado. Contudo, para nós cristãos fica a pergunta: Como
Igreja, ou como comunidade cristã, estamos vendo as pessoas que,
por alguma circunstância da vida estão sós? Proporcionamos con-
dições para que os singulares encontrem, na Igreja, a sua família e
se sintam acolhidos?
O apóstolo Paulo era um destes singulares (1 Coríntios 7.7-9).
No entanto, ele teve na Igreja a sua família.
No Antigo Testamento temos o belo exemplo de Noemi. Com
seu esposo e seus filhos ela foi morar em Moabe. Lá seus filhos
casaram e ela recebeu duas noras. Tudo ia bem até o dia em que
seu marido faleceu. Depois faleceram também seus filhos e ela
ficou só com as noras até retornar para Belém na companhia de
uma delas, Rute. Reconhecida pelas antigas amigas que perguntavam:
"Esta não é Noemi?" ela expressou toda a dor e solidão, dizendo:
"Não me chamem de Noemi, a Feliz. Chamem de Mara, a
Amargurada, porque o Deus Todo-Poderoso me deu muita amargura.
Quando saí daqui, eu tinha tudo, mas o S
ENHOR me fez voltar
sem nada" (Rute 1.19-21). E Noemi enfrentou a nova realidade.
Ela foi amparada pelo seu povo e sua nora Rute casou novamente.
Já os evangelhos relatam muitas situações em que o Senhor Jesus
foi ao encontro de pessoas que estavam sós, especialmente de
doentes e de pessoas discriminadas pela sociedade. Mas nenhum
exemplo é tão marcante quanto o encontro de Jesus com o homem
paralítico junto ao tanque de Betesda (João 5.1-18). Muitos cegos,
enfermos e paralíticos se aglomeravam ao redor do tanque, esperando
que as águas fossem agitadas, para então entrar e serem
curados. Foi ali que Jesus chegou perto do paralítico, que estava
doente há 38 anos, e lhe perguntou: "Você quer ficar curado?" Ao
que o homem respondeu: "Senhor, eu não tenho ninguém para
me pôr no tanque". Em outras palavras: Senhor, estou sozinho!
Singular
, segundo a definição do Novo Dicionário Aurélio, vem
do Latim
singulare e pode ter as seguintes definições: 1. Pertencente
ou relativo a um; único, particular, individual; 2. Que não é
vulgar; especial, raro, extraordinário: uma personalidade singular;
3. Diferente, distinto, notável.
A partir dessas definições, penso que devemos fazer uma distinção
ao abordarmos o assunto Igreja e singulares, identificando,
pelo menos, três grupos distintos:
1 – Pessoas singulares, sozinhas, porque não tiveram a oportunidade
de casar ou não quiseram casar; ou ainda porque são pessoas
separadas, viúvas ou abandonadas.
2 – Pessoas singulares, sozinhas, devido a enfermidades, idade
muito avançada, residindo em casas geriátricas.
3 – Pessoas singulares, sozinhas, mesmo vivendo em família.
Pessoas que se isolam e se retraem em razão de alguma deficiência
ou de alguma experiência negativa no passado.
Constato que aumenta, cada vez mais, o número de idosos sozinhos
nas congregações luteranas. Vários deles permanecem em
seus lares, até a morte. Outros precisam ser encaminhados para
geriatrias, quando a família não tem mais condições de atendê-los
satisfatoriamente em casa. Esta é a hora de a congregação estar do
lado de seus singulares, organizando-se para que sejam visitados
pelos pastores e pelos membros, que recebam a Santa Ceia lá onde
estão e que tenham pessoas ao seu lado que cantem com eles os
hinos que eles gostam de cantar. Na congregação onde sou pastor
atualmente, temos uma relação de 38 idosos e enfermos que não
podem mais ir ao templo. De certa forma são singulares que necessitam
do calor e da acolhida de sua congregação.
Da mesma forma aumenta o número de pessoas que se isolam.
A sociedade competitiva leva para isso. A Igreja precisa estar bem
atenta e identificar os que estão se retraindo e ficando sós. Uma
desilusão, um desentendimento, um fracasso profissional, uma
doença ou uma depressão podem levar muitos a ficar sós e a não
querer o convívio da família da fé. É fundamental que todos encontrem
acolhida na Igreja. Para tanto, precisamos transformarnos
em congregações que vão ao encontro das necessidades das
pessoas.
Acho que não é exagerado afirmar que a Igreja cristã é uma
Igreja de singulares. A Igreja de Cristo, bem como cada congregação
cristã, é constituída de pessoas singulares, de pessoas individuais
e especiais. Além disso, hoje, ao olhamos a composição da
congregação cristã, precisamos obrigatoriamente também pensar
em indivíduos.
Contudo esse não é o nosso foco principal nesta reflexão. Queremos
focalizar aquelas pessoas, membros das congregações que,
por opção ou por circunstâncias da vida, não vivem dentro de um
ambiente familiar com cônjuge, com pais, filhos ou irmãos, mas
vivem sozinhas; bem como aquelas pessoas que, na congregação,
estão sozinhas, desacompanhadas de suas famílias.
Estas pessoas estão identificadas? Elas são acolhidas e valorizadas como membros da família da fé? Como elas são integradas
no trabalho da Igreja? Ou elas são olhadas como pessoas anormais ou diferentes?
Num passado, nem tão distante, eu defendia a proposta de
criar grupos de singulares dentro das congregações, visando a
integração deles no grupo, bem como proporcionar oportunidades
de atuação. Esses grupos podem ser bons e interessantes quando
se trata de comunhão cristã ou intercâmbio com outras congregações.
Contudo, a experiência tem mostrado que é melhor
organizar o trabalho e envolver os membros nas diferentes áreas
de trabalho da congregação, a partir dos seus dons e dos interesses
pessoais e não de sua condição familiar. Nessa visão de congregação
desaparece, ou ganha menos destaque, a condição familiar
e é mais valorizada a pessoa com os dons que Deus lhe deu,
independente se ela é casada, solteira, viúva ou divorciada.
Tenho a convicção pessoal de que Deus olha para cada um dos
seus filhos como sendo singulares, especiais e únicos na sua Igreja.
A cada um, individualmente, Deus quer usar, de acordo com os
dons que lhe deu.
Muitos singulares, independente de idade ou sexo, têm na congregação
cristã, talvez, seu mais significativo ambiente familiar.
Não faz muito tempo, alguém me disse, referindo-se à congrega
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ção: "Aqui é a minha casa". Muitos singulares buscam na congregação
o seu confidente, o ombro amigo, alguém que os compreenda,
porque toda pessoa tem necessidade de repartir alegrias e
dores.
Qual é a postura da congregação, do pastor, do líder de departamentos
e grupos em relação aos singulares? A congregação está
vendo e valorizando sua participação? Está dando oportunidades
para que possam compartilhar suas necessidades e alegrias e
para que possam encontrar plena realização, servindo na Igreja
de Cristo?
Certamente muitos conceitos precisam ser mudados. Muitas
atitudes novas precisam ser tomadas. Não existem fórmulas prontas
a esse respeito, contudo, de modo geral, algumas atitudes e
iniciativas são necessárias e, a meu ver, giram em torno das cinco
palavras abaixo descritas:
1) A congregação precisa
conhecer seus membros e também
sua condição familiar (se são pessoas casadas, se estão integradas
em famílias, se são singulares, se vieram de outras cidades, se
têm problemas).
2) A congregação precisa
identificar cada pessoa no seu ambiente
familiar, social e cultural. Cada pessoa traz consigo uma história,
uma realidade familiar e social que não pode ser desconsiderada.
Quando Noemi voltou com sua nora para Belém, sua nova
condição de viúva ficou clara para todos.
3) A congregação precisa
acolher seus membros do jeito que
eles são, e na condição familiar, social e espiritual em que se encontram.
4) A congregação precisa
integrar seus membros no convívio
da família da fé. Essa integração é mais significativa quando a congregação
está organizada em grupos, departamentos e comissões
menores, onde há mais convivência e compartilhamento da vida
cristã.
5) A congregação precisa
oportunizar trabalho e realização para
todos. A meu ver, isso acontece na medida em que se conhece,
identifica, acolhe e integra cada um, individualmente, na família
da fé.
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