Gromiko, A.A. (1987). As Religiões da Àfrica (Trad. G. Mélnikov). Moscovo: Edições Progresso. 327 pp.
1.1. O fenômeno da estabilidade extraordinária da consciência religiosa nos países africanos explica-se como uma reação de defesa face à expansão colonialista e neocolonialista. Não sendo capazes de contrapor alguma alternativa substancial (digamos econômica ou militar), as sociedades africanas viraram-se essencialmente para os mecanismos de oposição espiritual, revitalizando fatores socialmente importantes da sua herança cultural. E entre eles, encontra-se em primeiro plano a religião "própria", concebida não só como um conjunto de ritos, mas mais amplamente, como um vasto espectro de conceitos, normas morais e formas de conduta. Mesmo quando foi possível o arreigamento no solo africano, das religiões mundiais, vindas do exterior que pouco a pouco iam relegando as crenças tradicionais para o domínio da consciência quotidiana, as sociedades africanas frequentemente mostraram-se capazes de tomar a iniciativa intelectual, gerando numerosas e diversas variantes do sincretismo religioso "herético" (5)
1.2. A consciência social marcadamente religiosa, dominante em África é um fato evidente e, hoje em dia, geralmente reconhecido... As religiões tradicionais africanas exercem uma influência notável tanto na vida quotidiana dos povos, como também em muitos aspectos da sua vida social (5)
1.3. A transformação da consciência social é um processo complexo, contraditório e, ao mesmo tempo, lento. As modificações das relações materiais não podem gerar imediatamente transformações da consciência social. Os costumes arcaicos, as concepções e crenças religiosas herdadas dos antepasados, possuem uma enorme força, e só a luta entre a velha e nova ideologia conduz, graças às leis objetivas, à vitória daquela que é condicionada pelos imperativos da nova vida material e do novo ser social. Nesta luta, que pode levar vários decênios, são inevitáveis uma determinada interação e interpenetração entre o novo e o tradicional, diversas formas de síntese, nas quais, à s vezes, o velho e o tradicional podem adquirir uma nova natureza e, vice-versa, o novo e atual podem encobrir o degradado e o caduco. (5-6)
1.4. 30% dos africanos (150 milhões) são adeptos de cultos tradicionais - animistas. No entanto estes dados não inspiram confiança uma vez que mesmo entre os africanos que formalmente adotaram o islamismo ou o cristianismo existem muitos (mesmo entre padres) que continuam a praticar diversos ritos e hábitos tradicionais, que acreditam nos espíritos, feitiçaria, magia, etc; 41% do continente (mais de 200 milhões) são islâmicos; 26% (130 milhões são cristãos). As igrejas e seitas afro-cristãs representam entidades religiosas de caráter sincrético, cujos dogmas e ritos combinam elementos do Cristianismo com os das religiões tradicionais. É bastante difícil estabelecer a sua proporção e parãmetros numéricos no continente africano. Segundo estimativas, os adeptos deste grupo de religiões constituem 3% da população africana, ou seja, aproximadamente 15 milhóes de pessoas, entre as quais mais de 40% estaõ concentradas na África Austral. Hinduísmo = 0,25% (1,1 milhão); Judaísmo - 0,1% (400 mil). Também há minorias sikhs, budistas, confucianos jainas e parses. (pp. 7-8).
1.5. As religiões tradicionais são aquelas que surgiram há muito tempo nas religiões africanas sem terem sido influenciadas pelas religiões mundiais. As religiões chama-se sincréticas quando conjugam, duma ou doutra forma as religiões tradicionais africanas e elementos do Cristianismo ou Islamismo (8)
1.6. Desde a segunda metado do século XIX foram feitas diversas tentativas, baseadas em materiais originais africanos para argumentar as teorias evolucionaistas das origens da Religião. A mais conhecida é a teoria animista do famoso cientista inglês E. B. Taylor, que preconiza que a consciência pirmitiva gerou a ideía de que todos os objetos e mesmo os seus componentes possuem uma alma própria (daí, a fé na multiplicidade dos ânimos). Segundo Taylor, o o conceito dos espíritos autônomos teria dado origem á idéia dos deuses. Os espíritos não são concebidos como entes congênitos dos objetos, mas como capazes de os encarnar. Taylor é de opinião de que, uma vez que o animismo (a fé nas almas dos antecessores) representa 'o estádio inferior da Religião', constitui portanto a sua forma mais antiga e geradora das demais (10).
1.7. No início do século XX, o clérico austríaco Wilhelm Schmidt (186801954), membro da associação católica missionária 'Sociedade da Palavra de Deus' defendia na revista Anthropos editada em Viena desde 1906 a teoria do protomonoteísmo do especialista inglês em religiões Andrew Lang (1844-1912). Segundo esta teoria, até agora influente entre os especialistas ocidentais e africanos, o protomonoteísmo constituiu o estádio mais antigo do processo de desenvolvimento de todas as religiões. No entanto, o próprio A. Lang não logrou encontrar nos fins do século passado entre os mateirais recolhidos sobre as religiões africanas provas objeticas e evidentes deste monoteísmo por ele conjeturado. Entretanto, W. Schmidt, interpretando os dados etnográficos acumulados graças às atividades da revista e do instituto Anthropos afirmava que os africanos, tal como todos os povos do mundo, tinham inicialmente adorado um único Deus. Mais tarde, porém, esta fé asumiu forma de diversos objetos de culto. O receio das práticas de feitiçaria, dos mortos e as diferentes superstições teriam ofuscado e eclipsado a fé num só deus. Este fato deu origem ao politeísmo e a diversos desvios do verdadeiro culto... A teoria do protomonoteísmo 'visava, por um lado, elevar os africanos aos seus próprios olhos' mas, por outro, definia os cultos africanos como superstições grosseiras. Desta forma ela desviava os investigadores do verdadeiro estudo das religiões africanas (11)
1.8. No período posterior à Segunda Guerra, com o recrudescimento da luta anticolonial dos povos da África e o desmoronamento do sistema colonial, a teoria de Lang-Schmidt foi substituída por outras que revelavam um maior respeito pelo mundo espiritual dos africanos. Nas obras do missionário belga Placide Temples A Filosofia Banto, do etnólogo francês Marcel Griaule Deus d'Água. Conversações com Ogotêmmeli, do investigador alemão das culturas africanas, Jahnheinz Jahn, Muntu. Contornos da Cultura Neoafricana e noutras foram feitas diversas tentativas de descobrir nos conceitos religiosos e na mitologia dos povos africanos, nos seus rituais mágicos, cerimoniais, símbolos, ditos, etc, as concepções filosóficas , as causas e as origens das religiões... Contudo, uma análise mais atenta demonstra que estas obras apelam á mentalidade européia e, mais, têm um objetivo utilitário e pragmático: infiltrar-se na consciência tradicional 'impermeável' dos povos africanos e encontrar uma base para estabelecer melhores contatos com eles e proporcionar possibilidades de penetrar na sua 'alma', natruralmente, visando um determinado fim...
O etnógrafo francês M. Griaule, ao tomar conhecimento da riquíssima e complexa mitologia dos povos do Sudão Ocidental, chegou à conlcusão, na sua essência justa, de que ela tem uma influência enorme na vida quotidiana dos africanos. No entanto, ao exagerar a sua importância, chegou a afirmar que todo o comportamento dos africanos estaria subordianado ao mito.
Jahnheinz Jahn desenvolveu as teorias de P. Tempels, M. Griaule e do teólogo ruandês Alexis Kagamé, sustentando a exist~encia dum 'Deus ocioso' e afirmando, que todas as culturas africanas se baseiam num único fundamento religiioso expresso no conceito Ntu. O Ntu representa o 'Universo das Forças' que não pode ser objeto de adoração relgiosa. Por isso, a sua personificação mitológica também não permite contatos pessoais com o homem. Desta forma, todas as preocupações e desejos devem ser dirigidos através dos antepassados. (11-12)
1.9. A partir de meados do século XX, o estudo das religiões tradicionais passou pouco a pouco a ser assunto dos próprios africanos... Portanto, que novos elementos introduziram os autores autóctones no estudo das religiões tradicionais, e que nvas conclusões tiraram?
Uma das primeiras coisas, que salta à vista na leitura das obras de especialistas africanos contemporâneos em matéria de religião é a renúncia categórica à terminologia elaborada pela literatura ocidental. Por exemplo , B. Idowu considera que os investigadores das religiões tradicionais africanas deveriam rejeitar tais termos como 'primitivo', 'pagão', 'idolatria' e outros, por ferirem a dignidade dos africanos e não refletirem de modo algum, a realidade... B. Idowu não aceita o termo feiticismo, porque 'o feiticismo verdadeiro, isto é, a adoração do objeto e não de Deus ou do espírito projetado simbolicamente num objeto material, não existem em África'. Quanto ao conceito de animismo, o autor opina que este pode ser aplicado unicamente para refletir a união, a ligação da alma humana com o espírito divino. (13)
Seria lógico perguntar: que conceitos podem expressar a essência das religiões tradicionais africanas? Segundo B. Idowu, todas as religiões africanas podem ser definidas como monoteístas. Segundo ele, o monoteísmo africano admite o culto das forças às quais o ser supremo teria atribuído tantos poderes que, quando surgem necessidades práticas, é possível uma comunicação com elas, como com seres independentes. Convém acrescentar que B. Idowu faz acompanhara a palavra monoteísmo com o adjetivo 'difuso'.
Mas se os africanos crêem realmente num Deus único, então de que Deus se trata? 'Verdadeiro' ou 'nativo'? Parece que os próprios analistas africanos ainda não chegaram a uma conclusão final a este respeito: o Deus dos seus antecessores é o Criador de todo o Universo ou, por razões objetivas, é diferente do Ser Supremo dos brancos? (14) ... 'A África conhece um único Deus: Supremo e Universal - afirma B. Idowu num dos seus artigos programáticos - Apesar de possuir nomes diferentes, asumir diversas formas e comunicar-se de distintas maneiras, para os povos africanos Ele é sempre o mesmo Deus, o Alfa e o ômega de tudo o que existe'. Partindo desse postulado, foram determinadas as tarefas concretas do estudo das religiões tradicionais afircanas. Proclamou-se a necesidade de reconnstituir e descrever minuciosamente os cultos e crenças tradicionais. No entanto, toda esta atividade, no essencial, estava subordinada a um objetivo fundamental: demonstrar o monotéismo original dos africanos. (15)
1.10. Contudo, as religiões africanas não se esgotam com a fé em Deus. E este fato reconhecem mesmo os defensores mais ferrenhos da idéia do monoteísmo original africano. Segundo B. Idowu, a base estrutural das religiões tradicionais africanas é constituída por cinco componentes: a fé em Deus, divindades e espíritos, o culto dos ancestrais, as práticas da magia e da medicina. Uma classificação quse idêntica sugerem J. Mbiti e os investigadores ocidentais G. Parrinder e E. Dammann. (15)
1.11. Como se sabe, muitos povos africanos - os iorubas, fons, bambaras, gandas, etc - conheceram uma organização social ainda anterior à do Estado. Com a unificação das tribos em grandes comunidades étnicas e com a estratificação social cada vez mais intensa, verificou-se também uma diferenciação das imagens fantásticas. Daí surgiu a forma de religião chamada politeísmo. O ponto de vista dos autores africanos é diferente. As divindades são somente as formas da revelação de Deus, afirma Mbiti. Elas derivam diretamente de Deus e fora Dele não podem ter uma existência independente. Com o passar do tempo, escreve B. Idowu, os homens habituaram-se a apelar a Deus por intermédio das divindades. E esta sua funçaõ intermediária conduziu à conclusão errada de que os africanos não se comunicam com o próprio Deus. L. Muga (Quênia) acusou os cientistas ocidentais de terem designado, de forma incorreta, os 'intermediários' (leia-se divindades) com a palavra 'deuses' e o próprio Deus com o termo de 'Deus Supremo' que, segundo ele, dá a entender deste modo que os africanos, além do Deus Supremo, possuem outros deuses inferiores. 'Esta interpretação, opina L. Muga, é falsa e deve ser corrigida' (16)
1.12. Outros antropólogos autóctones são mais brandos ou mais severos com os estudiosos ocidentais. Mas há os que não perdoam a ambos. Um destes é o poeta e pubilista Okot p'Bitek. Ele critica os antropologistas sociais do Ocidente talvez mais severamente que B. Idowu. Mas, ao mesmo tempo, não tem piedade dos seus colegas africanos. 'Os antropologistas e missionários ocidentais - escreve - igualmente como Danquah, Idowu, Mbiti, Busia, Abraham, Kenyatta e Senghor são contrabandistas intelectuais. Eles propõe-se a introduzir noções metafísicas gregas no pensamento religioso africano. As imagens livrescas das divindades africanas com todos os atributos do Deus cristão são essencialmente obra dos próprios investigadores das religiões africanas. Estas divindades alteradas são absolutamente irreconhecíveis para os habitanes da África rural' (17)
Okot p'Bitek realça que a cosmologia africana, os conceitos do Homem e do seu lugar no mundo se encontram nos mitos, no sistema moral, nos ritos e nas crenças intimamente ligadas à vida quotidiana. 'As religiões dos africanos são o seu modo de vida' - observa. Segundo ele, as culturas africanas representam um fenômeno absolutamente único, sem analogias, e, por conseguinte, inacessível aos processos e métodos de pesquisas elaborados fora do continente africano. Para os estranhos a cultura africana era e continua a ser uma coisa em si e só pode tornar-se acessível, uma 'coisa para nós' aos investigadores de origem africana, porque eles fazem parte dessa cultura.
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