TERCEIRO DOMINGO NA QUARESMA
Êxodo 20.1-17
23 de março de 2003
NOTAS INTRODUTÓRIAS
O livro de Hebreus descreve o acontecimento da entrega dos Mandamentos por Deus como um fato assustador (Hb 12.19-21). E o susto não foi apenas pelo volume da voz de Deus (Êx 19.19; Sl 29.3-5), mas principalmente pelas exigências da lei e a maldição resultante para quem não a cumprir (Dt 11.26-28).
Havia uma tradição de que Deus teria oferecido sua lei no Sinai a todas as nações na terra em sua respectiva língua. Os moabitas queriam saber a lei, mas quando Deus chegou ao Sexto Mandamento eles disseram: “Obrigado, nossa origem foi de adultério”. Aos descendentes de Esaú foi feita a oferta e Deus teve que parar no Quinto Mandamento. Só Israel teria tido coragem de ouvir todos os Mandamentos.
CONTEXTO
Mas será que os Dez Mandamentos são tão complicados assim? Depende da maneira como os enxergamos. Não que isso vá mudar o rigor das exigências, pois eles continuarão a denunciar os dez pecados capitais do ser humano, mas com um pressuposto mais soft, eles poderão ter um outro impacto na hora da nossa pregação.
Observando o contexto histórico, vamos perceber que ele é mais evangélico do que se pensa. Deus acaba de eleger seu povo como povo especial e santo (Êx 19.5-6). Suas palavras iniciais apontam para sua obra de libertação da escravidão egípcia (Êx 20.1-2). O começo nem exigência é, mas afirmação da bondade de Deus. E se essas palavras tivessem sido originalmente pronunciadas no Novo Testamento? “Eu sou o Senhor teu Deus, que enviei meu Filho Unigênito para vos salvar, não terás outros deuses diante de mim”. A questão parece ser mais funcional do que tratar o Decálogo meramente como lei que só acusa.
A MULTIFUNCIONALIDADE DA LEI
Quando se fala em Mandamentos, quase sempre se alude aos três controversos usos da lei. Estou convencido de que eles são antes multifuncionais, à medida que o impacto que eles causam pode diferenciar de pessoa para pessoa. Tudo depende do “espírito” do pecador. Isto não significa meramente subjetivizar a questão, mas considerar que tipo de pessoa os está ouvindo e absorvendo. A lei de Deus vai funcionar apenas como imperativo negativo naqueles que não estão em relação saudável com o Deus da Graça. A famosa frase “A Lei sempre acusa” é dirigida aos pecadores distantes de Deus. Quando o pecador está numa relação positiva com Deus, a função primordial da lei também pode ser positiva. Só os afastados de Deus é que perceberão a lei unicamente como cruéis e abomináveis exigências de Deus.
Acredito que para o velho homem a lei sempre acusará e condenará, mas não para o novo homem em Cristo. Nesse caso a lei vai até o coração devidamente filtrada e a maldição retida no sangue de Jesus Cristo (Gl 3.10-13). Para o homem sem Cristo a lei é só proibição e condenação, para o homem com Cristo a lei também é atividade do Deus Redentor.
Além disso, há um outro aspecto que julgo relevante na abordagem funcional do Decálogo. Em Cristo, o pecador poderá visualizar a bondosa e positiva preocupação de Deus também para o seu próprio bem-estar. Se Deus diz na primeira tábua que ele quer o homem todo confiando Nele, orando, invocando e dedicando-lhe tempo, é porque ele não quer que seus filhos vivam perdidos assim como ovelhas que não têm pastor. Se na segunda tábua ele pede para respeitar pais e superiores, não matar, não adulterar, não roubar, não testemunhar falsamente, não cobiçar nem o que tem vida nem coisas materiais, é porque ele quer que nossa autoridade seja respeitada, nossa vida preservada, nossa família mantida, nossos bens conservados, nossa fama e nome prestigiados e tudo que é nosso não esteja exposto aos olhos alheios. Em outras palavras, o que é negativo sem Cristo, tornam-se também positivas prescrições para viver com Cristo. A motivação à obediência não é a lei, mas Cristo.
O LUGAR DOS DEZ MANDAMENTOS NO CATECISMO DE LUTERO
Um dos motivos que causou o aparecimento do Catecismo Menor de Lutero foi o deplorável estado espiritual dos luteranos logo após o rompimento com a Igreja Católica. As ofertas eram escassas, não havia oração, não tinha estudo bíblico e nem à Santa Ceia se ia. Lutero e Melanchton ficaram decepcionados, pois o povo da igreja preferia festas a participar nos cultos e atividades da igreja. Na visitação feita às paróquias, Lutero e Melanchton descobriram uma paróquia composta de 110 famílias, mas que muitas vezes não tinha mais de três pessoas presentes aos cultos. Esse estado de ignorância não estava presente só nos leigos. Também há informações que um pastor em Elsnig mal e mal sabia orar o Pai Nosso e recitar o Credo. O evangelho havia sido restaurado, mas as pessoas se tornaram mestres em abusar da liberdade. Qualquer semelhança com algumas de nossas congregações hoje não é mera coincidência.
Lutero então lançou o Catecismo e começou com os Dez Mandamentos. Ele deu um novo arranjo às doutrinas fundamentais no catecismo. Ele começou com O Decálogo, pois sua função primária é diagnosticar a doença e dizer quem sou eu. Seu papel é fazer as pessoas reconhecerem sua enfermidade, o que se pode fazer e o que não se pode fazer, o que se deve fazer e o que não se deve fazer. Mas logo em seguida vem o remédio no Credo, o qual mostra a Graça medicinal que torna alguém justo diante de Deus. Na verdade, o plano de Lutero era despertar seu povo para o fato de que a vida cristã sob a graça de Deus não nos isenta do Decálogo, mas nos remete de volta a ele, para cumprir seus conselhos na vida cristã. Lutero vê o Decálogo no horizonte da criação, pois seu papel é instruir o uso correto de tudo o que somos e temos na criação de Deus.
SUGESTÃO PARA PREGAR O DECÁLOGO
Acredito que essa é uma oportunidade mais para conversar do que para discursar. Penso que é fundamental zipar os Dez Mandamentos numa conversa só e relembrá-los com quem já os memorizou, ensiná-los para quem os está ouvindo a primeira vez e então perceber o impacto que eles exercem na vida das pessoas que estão sentadas nos bancos da igreja. Ao invés do pregador determinar o impacto, eu sugiro apenas guiar a conversa para que os ouvintes assimilem os Mandamentos de acordo com seu estado de “espírito”. Para umas pode ser apenas condenação, mas outras poderão ir correndo ao corredor da Graça divina revelada em Cristo, lá receber graça sobre graça, ou seja, graça que não tem limites nem interrupções (Jo 1.16-17) e fazer as pazes com Deus e assim estar apto a olhar sem susto para os Mandamentos de Deus. Deus vai velar por sua Palavra.
Anselmo Ernesto Graff
Barra do Garças, MT
Nenhum comentário:
Postar um comentário