11. RECONCILIAÇÃO E PREDESTINAÇÃO
NAS CONFISSÕES EM CONJUNÇÃO
Já foi feita breve referência ao que as confissões ensinam sobre reconciliação e redenção. Tanto a Apologia, como a Fórmula de Concórdia entendem a reconciliação e a redenção a pretender, agora, algo que ocorreu unicamente uma vez e estava ligado à Pessoa e obra de Cristo, agora, algo que acontece aos crentes após isso ter ocorrido.(p.126) Indubitavelmente os conceitos são entendidos no primeiro sentido quando usados em conexão com "satisfação" (satisfactio) (AC II:40; IX:19) e quando é colocado aqui no tempo perfeito "foi realizado suficientemente" (satis est factum) (DS III:57s.). Estritamente falando, o conceito de imputação, que logicamente pressupõe algo que já ocorreu, está baseado nessa idéia. Por outro lado, não está necessariamente implícito na fórmula "por causa de Cristo" (propter Christum). Pois essa fórmula é aplicada simultaneamente ao perdão dos pecados e à reconciliação (AC VIII:5). Sim, o perdão dos pecados bem como a justificação são realmente identificados com a reconciliação (AC III:37,40,61; DS III:4,25,30). Isso é o que se entende quando, juntamente com Agostinho, é colocado "que Aquele que justifica é conciliado mediante a fé" (justificatorem fide conciliari) (AC II:106) ou "que somos reconciliados pela fé" (nos fide reconciliari) (VI:59). De maneira semelhante quando a reconciliação é designada como o que é prometido, ela aparece como algo a ser realizado. (p.127)
Realmente, no sentido das confissões o conceito de reconciliação tem de ser admissível ou necessário em ambos os sentidos. Ademais, isso também pode ser extraído dos escritos particulares dos autores das confissões. A relação entre a obra histórica de Cristo, da reconciliação, e a reconciliação com Deus por nós experimentada no tempo presente deve ser entendida como análoga à relação entre a "justiça de Cristo" (justitia Christi) e a "justificação" (justificatio). Assim como a "justiça de Cristo" (justitia Christi) não pode ser deixada de lado, assim a obra histórica da reconciliação não pode ser desprezada (p.127) Com respeito à última, bem como à primeira, é dito que "recebemos a reconciliação mediante a fé" (reconciliationem fide accipimus) (AC III:38) ou que "somos reconciliados com o Pai e recebemos remissão de pecados quando somos erguidos pela confiança na misericórdia prometida por causa de Cristo (reconciliamur Patri et accipimus remissionem peccatorum, quando erigimur fiducia promissae misericordiae propter Christum) (II:81). Com respeito à justiça de Cristo, que é idêntica com a sua perfeita obediência, a Fórmula de Concórdia afirma que ela é "a mais perfeita satisfação e expiação pela raça humana" (perfectissima pro humano genere satisfcatio et expiatio). Mas ao mesmo tempo ela chama essa obediência de nossa "justiça" (justitia) (DS III:57). No sentido das confissões, portanto, é, em concreto (in concreto), a mesma coisa em ambas as instâncias: a obra histórica de Cristo, da reconciliação, é idêntica com a sua perfeita justiça. E, além disso: a reconciliação a Deus por mim recebida é idêntica à justificação. Contudo, deve-se distinguir conceitualmente em ambos os casos, visto que os conceitos "justiça" e "justificação" consideram Deus como Aquele que exige; os conceitos "reconciliação" (reconciliatio), "propiciação" (propitiatio), "aplacar" (placatio) e "Mediador" (mediator) consideram-no Aquele que foi ofendido; os conceitos "redenção" (redemtio) e "libertação" (libertas) consideram a condição que resulta para nós. Se alguém desejasse colocar esses três grupos de conceitos numa seqüência lógica, é auto evidente que a lógica o levaria a assinalar o último lugar ao terceiro grupo. Quando a Apologia, ocasionalmente, também deixa os primeiros dois seguirem um ao outro - "porque nós, tendo sido reconciliados, somos reputados justos" (quia econciliati reputamur justi) (II:86) - isto tem sentido somente quando naquele momento ela pensa na obra histórica da reconciliação em conexão com o termo "tendo sido reconciliados" (reconciliati). Se isto é aceito, a reconciliação e a justificação estão em relação uma com a outra assim como o passado com o presente. Se, por outro lado, a Apologia entende a reconciliação como um ato ocorrendo no tempo presente, ela alguma vezes diz "perdão dos pecados e reconciliação" (remissio peccatorum et reconciliatio), outras o inverso - uma prova que entre justificação e reconciliação, neste sentido, não existe qualquer seqüência lógica. (p.128)
Dogmáticos posteriores ainda tratam o conceito da "reconciliação" (reconciliatio) e os conceitos de "expiação" (expiatio) e "satisfação" (satisfactio) - designados como sinônimos desde Johann Gerhard - somente sob o título "As Obras de Cristo". Apenas "redenção" (redemptio) geralmente aparece de novo na área da escatologia. Onde aqueles conceitos novamente são mencionados dentro da assim chamada "ordem da salvação" (ordo salutis), invariavelmente designam o ato histórico.(p.128) O fato que os dogmáticos dividem o ofício sacerdotal de Cristo nas funções de "satisfação" (satisfactio) e "intercessão" (intercessio), e com a segunda também designam a atividade reconciliadora de Cristo como algo que é feito no tempo presente, pode ser considerado uma espécie de equivalente.85 Evidentemente, Lutero e as confissões também estão familiarizados com o conceito bíblico de "intercessão" (intercessio).86 Porém, no caso dos dogmáticos - como resultado do lugar que dão a essa doutrina no seu arranjo total - pode parecer como se eles não soubessem como fazer uso adequado dela para a relação direta da fé em Deus. Realmente, pode-se observar na literatura do mesmo período que na era da ortodoxia a compreensão de reconciliação como um ato simultâneo ainda não foi perdida.87 (p.129)
Numa carta a Brenz, Melanchthon dá a seguinte explicação para a omissão da doutrina da predestinação na Apologia: "Em toda a Apologia, evitei aquela longa e intrincada discussão da predestinação. Sempre que eu falei como se a predestinação seguisse a nossa fé e obras. E eu o fiz deliberadamente, pois não queria perturbar consciências com aqueles intrincados labirintos." (In tota Apologia fugi ilam longam et inexplicabilem disputationem de praedestinatione. Ubique sic loquor, quasi praedestinatio sequator nostram fidem et opera. Ac faciohoc certo consilio; non enim volo conscientias perturbare illie inexplicabilibus labyrinthis) (CR 2,547) (p.129) A razão apresentada não é inquestionável, especialmente quando o leitor da carta admite que ele apresentou a doutrina da salvação como se a predestinação seguisse nossa fé e obas. Este "como se" (quasi) tornou-se nefasto para o desenvolvimento subseqüente da doutrina de Melanchthon, e Lutero o teria sancionado arduamente. (p.130) Por outro lado, a razão de Melanchthon concorda perfeitamente com o conceito de Lutero enquanto a preocupação é com o perigo às consciências. Ele igualmente ter-se-ia igualado ao conceito de Lutero se Melanchthon tivesse falado sobre o perigo para a fé. Mesmo assim, Melanchthon não estava distante do oportunismo pedagógico. Contudo, o ponto em que isso se tornou perigoso foi a doutrina da conversão. Realmente, ele também travou a sua batalha contra o determinismo da "anankee" (compulsão) dos Estóicos ao apontar as implicações libertinistas (CR 7,331). No entanto, a discussão sempre retornante com esse oponente lembra que desde o princípio, mesmo tão remotamente como os Loci de 1521, ele estava em perigo de tratar a predestinação primeiro e principalmente como um problema da filosofia de vida (Weltanschauung). Todo aquele que se encontra em falta com a sua doutrina filosófica da liberdade e contingência após 1532, não louvaria o que ele ensinou sobre a predestinação após 1527. Do ponto de partida da fé evangélica, uma posição era tão insustentável como a outra. Pois ambas tinham o mesmo ponto de partida - o mesmo que tornou Zwinglio o precursor do Iluminismo. A sentença das "Lucubrações" (Lucubratincula) de 1521 - "que de nenhuma outra fonte existe conforto mais certo do que da predestinação" (non aliunde certius esse solatium ut ex praedestinatione) (CR 21,15) - foi consistente com a outra doutrina da salvação do mesmo ano apenas quando, assim como em Lutero, a doutrina da predestinação se tornou um enunciado auxiliar que - evidenciada em si mesma de uma maneira totalmente diferente - pôde apoiar a certeza da salvação contra a dúvida que Deus também é desejoso e capaz de fazer as suas promessas tornarem-se verdadeiras. No entanto, a certeza da predestinação pode realizar esse serviço somente quando é certeza da eleição. (p.130) Portanto, estava em exata conformidade com a posição de Lutero quando nas edições posteriores dos Loci, Melanchthon restringiu aquele "conforto" (solatium) à certeza da eleição (CR 21, 453; 920). Mas se alguém tem algum direito para falar de um "conforto" (solatium) obtido por essa doutrina, não pode estar fora de lugar examinar-se o efeito dessa doutrina sobre a consciência a partir do outro lado também, como Melanchthon o fez na carta a Brenz, anteriormente mencionada. A paz de consciência, que é o assunto importante aqui, não é a segurança falsa do sinergismo - assim como não seria a falsa segurança de uma crença fatalista na salvação.(p.130) Pelo contrário, é pretendida a consciência que está reconciliada pela fé em Cristo. Essa liberdade de consciência se fundamenta sobre - ou é - a certeza da fé, e todos os seus componentes têm a marca da realidade. Contudo, se a doutrina da predestinação é entendida de uma maneira tal que confronta o crente com a questão se ele está predestinado para a salvação ou para o desastre, o mais importante daqueles componentes, a saber, a vontade de Deus sobre o crente, ainda carrega o agouro da potencialidade. No entanto, a dúvida, não a fé, é consistente com a vontade de Deus como uma potencialidade. Portanto na Apologia, que não é um sistema de dogmática mas foi escrita para o propósito de estabelecer a base da certeza evangélica da salvação, Melanchthon tem boa razão para declinar de incluir uma doutrina auxiliar que poderia gerar dúvida. (p.131)
Brenz adotrou o pensamento de Lutero a partir de um outro ângulo. A sua carta de fevereiro de 1526 a Bernhard Griebler foi obviamente escrita por causa da forte impressão causada pelo escrito de Lutero contra Erasmo.88 Brenz corrobora a sentença que "todas as coisas no céu e sobre a terra passarão por causa da compulsão da constrangedora majestade ou, se eu deveria falar mais simples, toda-extensiva vontade ativa de Deus e não por causa da sua própria escolha ou liberdade" (alle ding im himel und auff erden auss not des zwingenden almechtigen, Oder so Ich deutlicher reden sol, althetlichen willen und nit auss agener chur oder freyheit geschehen). Numa disposição supralapsariana ele enfatiza que Deus "antes da criação do mundo estabeleceu em secreto conselho e chegou a uma decisão com respeito aos homens, ordenou alguns para a salvação, os outros para a maldição; e, assim como lá está ordenado, assim necessariamente deve continuar; nenhum camundongo morde fora uma linha" (vor erschaffung der Welt ein heimlichen Rat besessen und uber all menschen beschlossen, Ein parthey zur selikait verordnet, die ander zu verdamnus, und wie es darin verordnet ist, also muss es not wegen furtgeen, da bayst jm kein mauss ein faden ab) (28) Mas ele continua: "Nós, no entanto, não somos capazes de entender esse conselho" (Wir sein aber des Rats unser verstentnus nach nit vehig). Por que não? Pois uma coisa, a nossa inaptidão para entender se eleva a uma falta de conhecimento da base final da vontade divina. "Mas como tudo isso acontece e qual é a razão..por quê...não é possível para qualquer homem pensar ou dizer; dever-se-ia antes obedientemente manter em reverência essas coisas secretas, ocultas e crer que são justas e sábias, do que entregar-se a penosa investigação" (Wie aber solichs alles zugee und was die ursach...warumb...ist keinenm menschen muglich zugedencken oder zureden, Sonder solche heimliche verborgne ding meher gehorsamlich anzubeten und als gerecht und weys zu glauben, denn sorgfeltiglich zu forschen) (27) (p.131) Está clara a alusão à "adoração" (adoratio) ao Deus oculto de Lutero. Mas, então, Brenz continua: "Segundo o meu costume, chamo esse assunto de secreta chancelaria divina" (Ich nenne diess stuck meiner gewohnheit nach die heimlich gotlich Cantzlei). Nessa chancelaria, o Pai, o Filho e o Espírito Santo tomam conselho um com o outro e emitem sua decisão sobre as duas divisões da humanidade. Contudo, não podemos compreender a linguagem secreta da chancelaria. Ela precisa "ser transferida e mudada para a nossa língua materna" (in unser mutersprach transferirt und verendert). Esse propósito é servido pelo envio do Filho, o "Verbo", cuja "obra é dar informação sobre a Sua vontade àqueles que aguardam perante a chancelaria por uma decisão com respeito à salvação ou condenação" (vor der Cantzel eins beschaids warten, der selickait oder verdamnus halben, seines willens zu verstendigen hat) (28). Ele fala a língua da humanidade. Essa língua coloca indubitavelmente: "Creia, e você será salvo. Faça o bem, e você será socorrido (behalten). Se você não crer, será condenado" (29). Sim, segundo à palavra revelada de Deus, ele pode e deseja redimir até mesmo uma pessoa rejeitada que se arrepende e, inversamente, esquecer-se da justiça de um justo se aquela pessoa confia na sua própria justiça. Por isso o Espírito Santo deixa "a língua permanecer segundo a sua maneira e espécie mas, por ela ensina a crer e a reverenciar a inalterável vontade de Deus, que a razão não pode captar e a fala do homem não pode expressar" (die sprach pleyben in ir weys und art, aber darunter zu glauben und anzubeten den unwandelbarlichen willen gottes, der mit vernunfft nit mag erlangt noch mit menschlicher red gefasst werden). (p132)
Aqui, a despeito de toda a dependência de Lutero, já estão em evidência modificações significativas. Em primeiro lugar, Brenz não possui o profundo terror de Lutero quanto à idéia da predestinação. A enormidade de uma possível "rejeição" (reprobatio) supralapsariana obviamente não é de todo sentida. Para Lutero, o medo de que ele próprio poderia ser enumerado entre os que são rejeitados recua totalmente entre a horrível idéia da natureza demoníaca de um Deus que, em virtude de sua habilidade superior, força criaturas a uma relação culpada da qual ele, então, tira um direito a infligir-lhes tortura cruel. Se essa idéia não pode estar separada de uma doutrina geral da predestinação, seu ensino deve estar sempre submetido à fé no Deus revelado em Cristo. Em Brenz tudo isto é minimizado. A fé se liga à revelação porque a decisão secreta na chancelaria divina nos é desconhecida, não porque é inimaginavelmente horrível. Faltoso é o que Lutero considera o vínculo direto entre o "Deus oculto" (Deus absconditus) e o Deus irado (Deus iratus). Faltoso, também, é o conhecimento de que toda a busca por uma resposta ao por quê - a busca que leva à doutrina da predestinação - parte da fome que a "razão" (ratio) possui para a inter relação entre causa e efeito (Kausalitätshunger) - a fome que, nesta forma, afinal, encontra-se, a princípio, em oposição à fé. (p. 132)
Num certo sentido, o artigo XVII da Fórmula de Concórdia é uma síntese das linhas de pensamento de Melanchthon e Brenz que foram indicadas. Em princípio, poderia parecer estranho que a Fórmula de Concórdia atribui à doutrina da predestinação qualquer posição independente em sua doutrina da salvação. Aqui se pode desconsiderar totalmente a questão se isso foi exigido pelas tensões confessionais do momento na história. Com Lutero, esse assunto poderia ser atribuído aos predestinarianos do Oriente: "Deve-se tratar ou do Deus oculto, ou do revelado" (Aut disputandum de Deo abscondito aut de revelato) - nada sabemos do primeiro, e portanto nossa teologia pode ocupar-se unicamente com o último. Já as razões para a adoção desse artigo de modo nenhum foram meramente externar em sua natureza, como se talvez somente as sentenças escriturísticas tivessem necessitado esta ação. Uma confissão não pode ser uma teologia Bíblica. Nem pode ter o fator decisivo uma mera reverência ao Lutero de 1525, muito embora esse artigo revele o mesmo retorno a Lutero que se vê no artigo sobre o livre arbítrio. Pois em sua disputa contra V. Strigel mesmo Flacio, o protagonista de todo esse retorno, esperava evitar de passar um juízo sobre o escrito "Do Servo Arbítrio" (De servo arbitrio).89 Não, os redatores da confissão devem ter sentido uma compulsão interna para estabelecer a sua doutrina da predestinação. E eles não deixam nenhuma dúvida sobre onde encontraram essa doutrina. Para eles, ela possuía significado decisivo. Tudo o que "pertence à nossa redenção, chamado, justificação e salvação" está, "segundo a Escritura, contido (comprehenduntur) na doutrina da eleição eterna de Deus para o relacionamento filial (Kindschaft) e a salvação eterna" (DS XI:13-24). (p.133)
Por outro lado, houve aqui uma restrição. O fundamento da doutrina da salvação deve ter um ponto de partida diferente. A confissão cita a introdução de Lutero à epístola aos Romanos (1522) com a sua admoestação de se observar o arranjo dessa epístola: "primeiro Cristo e o Evangelho, do qual obténs conhecimento de teu pecado e da Sua graça; então luta contra o pecado; finalmente, quando, segundo Rm 8, quando se é atribulado (in Anfechtung kommt), deve-se aprender do capítulo nove ao onze quão confortadora é a eleição (DS XI:33; cf. Edição de Erlangen 63,135. Livro de Concórdia, trad. Arnaldo Schuler, POA, Concórdia/Sinodal, 1980, p.666). Agora, em parte alguma Lutero falou em abarcar toda a doutrina da salvação na doutrina da predestinação.(p.133) Segundo a sua compreensão, de maneira alguma lhe era possível fazê-lo. Aqui é atribuído à predestinação um significado que parece ir além de tudo o que Lutero, Brenz, Amsdorf e Flácio - sem mencionar Melanchthon e seus adeptos - já ensinaram a respeito dela. (p.134)
Mesmo a partir disto, segue-se que a Fórmula de Concórdia persegue o problema todo a partir de um ponto de vista diferente daquele que Lutero tinha em seu escrito contra Erasmo. E não somente isto. Ela entende a predestinação como algo diferente. O conteúdo do "conselho e propósito de Deus (consilium et propositum Dei) é a Sua decisão que a raça humana seja redimida e reconciliada a Deus mediante a fé; que o mérito de Cristo seja oferecido e distribuído mediante a Palavra e o sacramento; que pela pregação o seu Espírito converta e preserve na fé; que os crentes sejam justificados, recebidos num relacionamento filial (Kindeschaft), e sejam santificados no amor, fortalecidos nas suas angústias, confortados na tribulação (Anfechtung); que a boa obra neles iniciada seja preservada até ao fim; e, finalmente, que os eleitos, chamados e justificados também obtenham a salvação eterna (DS XI:14-22; Livro de Concórdia, p.663). (p.134) Em outras palavras, o conteúdo da predestinação é todo o plano de Deus para a salvação. Por conseguinte, este artigo (Lehrstück), assim como qualquer outro artigo na teologia, está preocupado com a revelação. Nenhum leitor não-Reformado (nichtreformiert) necessita de prova que com esta interpretação da idéia da predestinação, a Fórmula de Concórdia encontra-se sobre bons fundamentos escriturísticos. Estritamente falando, então, ela não contém um simples elemento novo e acima de outros constituintes (Faktoren) do Evangelho. É antes um julgamento analítico que a partir da suma total desses constituintes coloca em proeminência aquilo que é comum a tudo: Deus deseja e faz acontecer toda a obra que é feita para salvar a humanidade. (p.134)
"Portanto, a eterna predestinação de Deus deve ser considerada em Cristo e de maneira alguma fora de Cristo, o Mediador" (Aeterna igitur Dei praedestinatio in Christo et nequaquam extra mediatorem Christum consideranda) (65), a sentença central de todo o artigo, é meramente outra forma de expressar isto. A idéia da predestinação expressa desta maneira é em si mesma um elemento do Evangelho. Conseqüentemente, ela de modo algum pode subtrair-se do caráter universal da promessa do Evangelho - o caráter que, segundo o Novo Testamento, está incontrovertidamente estabelecido. Pelo contrário, ela deve, inversamente, ser uma parte desse caráter (28). E está na natureza da própria fé que nós "não consideramos fraude" (vor kein Spiegelfechten halten) o chamado que se dirige a todos os homens (29). De fato, segundo a sentença do Evangelho, o decreto divino de salvação se aplica também às "pessoas individuais dos eleitos que deverão ser salvos por meio de Cristo" (23).(p.134) Até esse ponto, ela é ao mesmo tempo particular. No entanto, o indivíduo nunca pode se referir à designação de pessoas individuais eleitas para a salvação, para aplicá-lo a qualquer outro senão a si mesmo. Olhando para Cristo, ele pode estar confiante da sua eleição (43). Mas, visto que ele pode fazê-lo unicamente porque a promessa o afirma com seriedade para todos e portanto para ele também, a certeza da eleição particular não pode de modo algum excluir o caráter universal do conselho divino de salvação.(p.135)
Partindo do fato que a idéia da predestinação está ancorada no Evangelho, surgem duas conclusões posteriores. A certeza de ser eleito pode estar baseada em nada além da certeza da própria fé, notadamente, na Pessoa e na obra de Cristo. Realmente, os que estão atribulados com respeito à sua eleição (die ab ihrer Erwahlung Angefochtenen) devem ser encaminhados aos meios da graça, à Palavra e sacramento, onde lhes é oferecida a promessa do Evangelho (37ss), mas de maneira alguma "ao que encontram em si próprios", a saber, à sua "piedade e virtude", que o Espírito opera nos eleitos (73-75). Neste ponto, a posição divergente do Calvinismo com respeito à idéia da predestinação torna-se mais claramente visível a partir de um pondo de vista prático. Se a pergunta sobre a eleição desvia a visão de alguém, por um momento apenas, de Cristo para os "frutos da fé", então ele voltou quase precisamente à doutrina da certeza que Lutero atacou e que resultou no seu livro.90 É verdade que a Fórmula de Concórdia, em conformidade com a orientação Bíblica, admoesta os crentes "a estarem seguros", pela prática de todas as virtudes, "que eles foram chamados e eleitos, a fim de quanto mais acharem o poder e a força do Espírito neles mesmos, tanto menos podem ter dúvida disso" (73). Porém, o contexto ensina que de maneira alguma é o propósito dessas palavras designar a qualidade moral ou realizações próprias como motivo para a certeza da eleição. (p.135) Não. Um pouco antes disso, a pessoa em dúvida é, sem ambigüidade, encaminhada à Palavra de Cristo (70). Em acréscimo, é afirmado: Segundo a este Seu ensino, eles deveriam desistir dos seus pecados, arrepender-se, crer a Sua promessa, e depender totalmente Dele; e visto sermos incapazes de fazê-lo por nós mesmos, por nossa própria força, o Espírito Santo deseja operá-lo, a saber, a penitência e a fé em nós mediante a Palavra e os sacramentos." (71). A sentença anteriormente mencionada com respeito à certeza da eleição está mais diretamente ligada a isto. É um assunto do tornar certo da eleição num sentido objetivo, isto é, a realização no tempo do eterno conselho de Deus. De modo nenhum esse conselho considera apenas o alvo final do homem, "a vida eterna" (vita aeterna); ele considera a relação filial (Kindschaft) dos crentes - a relação que inclui os efeitos definidos para a sua concreta humanidade. Esses efeitos, assim como todos os efeitos do Espírito, ocorrem apenas mediante "Palavra e Sacramento" - assim que a idéia do tornar certo objetivamente da eleição não pode ser interpretada sinergisticamente. Quando, então, os eleitos "encontram o poder e a força do Espírito neles", isto pode contribuir para a superação da dúvida unicamente quando a atenção é realmente direcionada ao poder do Espírito que é operante na Palavra. Isto se confirma amplamente quando mais adiante é afirmado: "E quando afinal eles talvez cheguem a tão profunda angústia (Anfechtung) que pensem não sentirem qualquer poder do Espírito in habitante de Deus... então, a despeito disso, deveriam dizer ainda com Davi, apesar do que encontram em si mesmos:...'Não obstante, ouviste minhas vozes súplices.'"(74). (p.136)
Pela maneira de apresentação da idéia da predestinação, feita pelo Evangelho, segue-se que os rejeitados são endurecidos com a sua própria culpa. Se a fé realmente está certa que o decreto de salvação de Deus se aplica ao "mundo", isto é, ao mundo no sentido do Novo Testamento, portanto à substância do pecado e o estado de estar perdido - sem essa certeza a fé poderia ser muito bem extinta - a resistência do homem não pode ao mesmo tempo ter Deus como seu instigador. "Pois isto seria atribuir falsamente vontades contraditórias a Deus" (Hoc enim esset Deo contradictorias voluntates affingere) (35). Pelo contrário, assim como o mal do "diabo e a vontade má, perversa da humanidade" é "o princípio e causa do mal" (7), assim o desprezo da Palavra [do chamado] não é "a causa da eleição divina - nem o pré-conhecimento ou predestinação de Deus (vel praescientia vel praedestinatio Dei) - mas a vontade perversa do homem" (41)
(NT.: Não faz sentido esta citação da FC. Na tradução feita para o português, por Arnaldo Schüller, 1a ed., 1980, reza: "A causa de semelhante desprezo à palavra não é a presciência de Deus, mas a vontade perversa do homem, que repele ou perverte o meio e instrumento do Espírito Santo que Deus lhe oferece mediante o chamado e resiste ao Espírito Santo..." p.668:41. A Triglotta, de F.Bente, tem: "Te cause for this contempt for the Word is not God's foreknowledge [or predestination], but the perverse will of man..." p.1077:41)
Realmente, há uma impenitência que volta a um decreto divino. Contudo, ela ocorre no caso daqueles "que são chamados por meio da Palavra quando a rejeitam e persistentemente resistem ao Espírito Santo, que deseja ser forte e operante neles mediante a Palavra" (40).(p.136) Ao distinguir entre "presciência" (praescientia) e "predestinação" (praedestinatio) a Fórmula de Concórdia tentava atingir a objeção que o poder incondicional de Deus sobre o destino é questionado ao vincular a maldição à resistência autônoma da parte do homem. "Predestinação" (praedestinatio), de fato, se estende unicamente aos filhos de Deus (5); mas a "presciência" (praescientia) se estende a todas as criaturas como tais (4). Não se pode negar que abas são asserções necessárias da fé evangélica. A acusação constantemente repetida que a confissão é apenas uma saída para um dilema é inválida tão logo se concede a premissa da confissão que segundo o Novo Testamento a predestinação significa o decreto de Deus da salvação.(p.137)
Existe uma outra questão. Quando se vincula a salvação dos crentes unicamente à vontade de Deus, será que não segue logicamente que no caso dos que estão perdidos essa vontade foi simplesmente perdida e que, em última análise, a sua rejeição igualmente se vincula à causação divina? Então se, a despeito disso, a rejeição está baseada no pecado, deve-se ir ao fim desse passo e concluir posteriormente que Deus também é o originador do pecado. Pois se o pecado estava baseado na inter relação humana de causa e efeito (die menschliche Kausalität), o decreto divino da rejeição ainda não seria absoluto; ele seria condicional, visto que seria dependente de uma decisão humana. Contudo, nem mesmo Calvino e Beza pretendiam fazer Deus o originador do pecado. Portanto, neste ponto, que é muito importante para eles, o seu sistema - alegadamente tão estritamente lógico - não é nem um pedaço mais lógico do que o da Fórmula de Concórdia. (p.137)
No entanto, a Fórmula de Concórdia, de modo algum alega ser racionalmente consistente; ela alega apenas que preserva o que a fé sabe ser certo. A respeito de Deus, essa fé sabe que Ele deseja ter misericórdia de todos - mas com respeito a si mesma, ela deve tomar uma decisão quando ouve o chamado "Reconcilia-vos com Deus" (27). Por conseguinte, a única coisa que ela pode fazer é assumir a única responsabilidade pela possibilidade de rejeitar aquele chamado - a possibilidade implícita no conceito "decisão". Como fé atual, ela está constantemente ocupada com o Deus revelado em Cristo - o Deus que não é simplesmente a "causa" (causa) mas a "causa da salvação" (causa salutis). Por esta razão, a decisão concernente à doutrina da predestinação conforme apresentada na Fórmula de Concórdia nada tem a ver afinal com a questão se a Fórmula de Concórdia está correta quando distingue entre "previsão" (praevisio)e "predestinação" (praedetinatio) ou quando ela declara que unicamente o homem é culpado pela sua rejeição. Não, essas são conclusões auto evidentes que a fé deve extrair dos dois fatos que (1) a salvação vem a ela, não como uma compulsão natural, mas como uma oferta e (2) que o chamado de Cristo é expresso de maneira tal que ninguém que o ouve pode duvidar que se aplica a ele também (p.137)
Até mesmo Brenz não poderia dizer nada diferente sobre a Palavra de revelação ouvida pelos que aguardam fora da "chancelaria" (Kanzleistube). Contudo, a Fórmula de Concórdia também estava em concordância com Melanchthon nisto que ela considera a certeza da predestinação como certeza da eleição. Lutero, também, esteve ao seu lado. Em seu escrito contra Erasmo, ele dissera sobre o "Deus proclamado" (Deus praedicatus): "Ele espera que todos os homens sejam salvos, visto que Ele vem a todos com a Palavra da salvação; e a falta está na vontade, que não Lhe concede admissão" (Vult omnes homines salvos fieri, dum verbo salutis ad omnes venit, vitiumque est voluntatis, quae non admittit eum) (WA 18,686,6). (p.138)
De fato, a Fórmula de Concórdia também está ciente de um conselho secreto de Deus (9,70). Ela sabe que mesmo do mistério revelado em Cristo, Deus "reteve e cancelou muita coisa e reservou-o para a sua sabedoria e conhecimento" (52). Ela alerta contra o meditar nisto, pois tal meditação causa ou "segurança e impenitência ou desânimo e desespero" (10). Não deveríamos "explorar o abismo da presciência oculta de Deus" (33). A confissão designa o conteúdo dessa presciência quando coloca "que Deus anteviu quem e como muitos seriam salvos e quem e como muitos seriam condenados, ou que Ele somente manteve tal revisão (eine solche Musterung gehalten): este deverá ser salvo, aquele condenado; este permanecerá firme, aquele outro não" (9; cf.54). Ademais, Ele apenas "fixou a cada um o tempo e a hora quando será chamado e quando será convertido" (56) - o que lembra a sentença da Confissão de Augsburgo que o Espírito Santo opera a fé "quando e onde lhe apraz" (Art.5). (p.138) E somente Deus sabe por que Ele envia (freigeben) a Sua Palavra para um lugar e algumas pessoas, porém não a outros, para endurecimento e para um chamado de volta (57s.) Finalmente, o perigo do meditar nisto é delineável à visão causal unilateral do que ocorre no mundo: "Aquilo que Deus antevê deve acontecer", "Não posso nem impedir nem mudar o que Deus antevê" (10) - isto é idêntico ao alerta de Melanchthon contra a anagch (compulsão) dos Estóicos. Contudo, este meditar é também falho porque procede da noção que a "eterna salvação de Deus ou vida eterna...nada contém adicional ou que nada mais a ele pertence, ou que se deve considerar nada mais do que anteviu quem e como muitos seriam salvos, etc." - enunciado citado acima a partir da secção 9 e seguintes. (p.138)
Aqui a deturpação da idéia do "Deus oculto" (Deus absconditus), que observamos em Brenz, avançou ainda mais. Qualquer parte do seu segredo que Deus não revelou, mas reservou formalmente para Seu próprio conhecimento, pode, enquanto é tratado o seu conteúdo, não apenas não contradizer a Sua vontade revelada da salvação, mas, em princípio, não pode desviar-se do que foi revelado quando isto é aplicado à pessoa individual. Da sentença citada por último (9) pode-se observar que, para a Fórmula de Concórdia, o questionamento direcionado à vontade oculta aparece mesmo como uma simplificação inadmissível do pensamento da predestinação. A idéia de uma "revisão" (Musterung) simples de gerações futuras - "este será salvo, aquele será condenado" - parece ser um furto da riqueza dos pensamentos divinos que planejaram e realizaram a salvação do mundo. Se num primeiro lance isso remonta a uma olhada passageira aos horrores sentidos por Lutero no pensamento do "Deus oculto" (Deus absconditus), ainda se terá o mesmo direito de dizer que precisamente desta maneira a exigência de Lutero que a teologia deveria ligar-se somente ao "Deus proclamado" (Deus praedicatus) foi seriamente considerada. De fato, a mudança importante no uso disto, que aqui o conceito de predestinação, para Lutero, diretamente conectado com o "Deus oculto" (Deus absconditus), é usada como uma expressão definitiva da obra de salvação revelada de Deus. Mas mesmo aqui a Fórmula de Concórdia adotou um pensamento de Lutero que encontrou na idéia da predestinação um fortalecimento da certeza da fé - mas poderia encontrá-la somente quando, como aqui, a predestinação é aplicada à salvação. (p.139) Por outro lado, quando em Lutero essa idéia também pertenceu à fé enquanto a fé é fé somente quando supera o que é aparente, realmente, não foi o pensamento da predestinação como tal que deve ser superado, mas a conexão necessária em que - conforme Lutero o expressava - entrou com a aparente injustiça demoníaca de Deus contra o que se deve crer. Para Lutero, no entanto, essa conexão era meramente uma aplicação especial do pensamento da ira de Deus. E já foi demonstrado como a Fórmula de Concórdia está em concordância não apenas com o que Lutero ensina sobre essa ira, mas também com o que ele ensina sobre a reconciliação com Deus. (p.139)
Se desta maneira a Fórmula de Concórdia tentou apresentar a doutrina da predestinação mais completamente em harmonia com a doutrina da reconciliação e redenção por meio de Cristo do que foi o caso no escrito de Lutero contra Erasmo, ainda assim isto foi feito com base no princípio proclamado por Lutero no próprio escrito: "Pois nós, também, nada ensinamos senão a Jesus Cristo crucificado" (Nam et nos nihil nisi Jhesum Christum crucifixum docemus) (WA 18,638,24).91 (p.139) A sentença da confissão que a "predestinação de modo algum deve ser considerada sem Cristo" (praedestinatio nequaquam extra Christum consideranda) é uma acurada aplicação disto. Se alguma outra confissão se jacta de ter feito a sua doutrina da predestinação resultar total e unicamente "para a glória de Deus", o Luteranismo pode exigir que em suas confissões tudo é dito para a glória de Cristo.92 E o Luteranismo pode olhar confiante para a frente para a investigação se desta maneira ele aumentou ou diminuiu a glória de Deus. Mais tarde será destacado com respeito a Deus que a Fórmula de Concórdia ainda não pronunciou a última palavra concernente à questão toda. (p.140)
12. A FÉ E A PSIQUÊ
A doutrina Luterana da justificação distingue uma dupla subjetividade do homem. Isto não pressupõe algum poder de discernimento crítico baseado em conhecimento especial. Ela está conectada com o fato elementar que o próprio homem torna-se o objeto de reflexão. Se em suas reflexões ele pensa numa conclusão na direção do que ele é e na direção do que ele poderia ou deveria ser, ele se encontra diante daquele labirinto do destino e culpa que foi desenvolvido como a "experiência primeva" (Urerlebnis). Se finalmente se toma como o objeto de reflexão as próprias leis do pensamento que são aplicadas aqui - para Lutero isto é "razão" (ratio) no sentido formal - o Eu pensante se enruga a um ponto matemático sem conteúdo e sem extensão. No entanto, o conteúdo da minha consciência não se desvaneceu, e todos os fatos e possibilidades a ela pertencentes "me" caracterizam. Eles são minha possessão. Eu mesmo sou tudo isso. Eu imagino; Eu conheço, e tenho a vontade; Eu sinto, e tenho o desejo. Logo, há uma dupla subjetividade: o Eu transcendental como um "ponto matemático" (punctum mathematicum) e o Eu psíquico que está saturado com conteúdo. (p.140)
Mais adiante chegamos à diferença fundamental entre Lutero e o misticismo. Enquanto o misticismo germânico, em seu tecnicamente imaculado transporte da redução do pensar ao Eu transcendental - ou, como o próprio misticismo germânico o expressa, a nada - vê o nascimento de Deus no homem, para Lutero é uma questão de um ato judicial no sentido estrito. Aquela separação entre eu e eu é transmitida como "auto-acusação" (accusatio sui). Eu mesmo sou o objeto da minha reflexão, porque eu sou compelido a olhar para os aspectos concretos (das Konkretum) da minha vida ou, o que implica a mesma coisa, da minha consciência, com os olhos de Deus.(p.140) De fato, esses aspectos concretos, também, então se enrugam a um ponto matemático; agora isso não ocorre porque devam ser esquecidos ou obliterados, mas porque o juízo de Deus, os pensamentos dos quais procede o Eu transcendental, está noutra dimensão, visto que toma toda a vida "a partir de fora" como uma unidade. Vista de dentro, a vida conserva seu conteúdo total como uma multidão de coisas separadas - perante Deus ela é tomada como um todo e condenada como uma unidade. (p.141)
Ademais, essa distinção de uma dupla subjetividade é o pressuposto formal da doutrina da justificação. O sujeito da fé que recebe a "justiça de Deus" (justitia Dei) é o Eu transcendental. Ele é todo fechado, meramente um "ponto matemático" (punctum mathematicum). A justiça a ele adjudicada é "alheia" (aliena) no sentido estrito. Aqui, em princípio, o assunto poderia terminar e, enquanto é tratada a justiça "que vale perante Deus" (die vor Gott gilt), deve terminar. Contudo, assim como a diferenciação entre Eu e Eu na forma do ato judicial não pode ou não deveria obliterar o estado psíquico, assim a mera especificação da fé como um ponto (Punktualität) não pode abandonar a relação do Eu transcendental com o Eu psíquico. Realmente, nenhuma mudança pode ocorrer quando o segundo é julgado por meio do primeiro. (p.141) O julgamento sempre será uma "acusação" (accusatio). Mas isto não significa que os aspectos concretos (das Konkretum) da nossa vida não sofram nenhuma mudança atual em conteúdo por causa da fé. O oposto é que ocorre. O Eu transcendental é, de fato, meramente uma abstração. Embora essa abstração seja necessária, ela é possível e significativa unicamente enquanto existem aspectos concretos (Konkretum) preenchidos com vida psíquica. Sim, a abstração está sempre meramente no processo de acontecer, meramente um ato, nunca algo realmente ocorrido - senão teria se tornado em si mesma um fato psíquico. Por conseguinte, é sempre no processo de ser relacionado aos aspectos concretos (Konkretum) da vida. Então, portanto, a constante virada do Eu transcendental da acusação para a fé deve tornar-se operante ou, pelo menos, perceptível também nessa relação. Para expressa-lo de outra maneira: o que ocorre ou ocorreu ao Eu transcendental, não pode deixar de afetar a suma total do conteúdo da consciência.(p.141)
Por meio de uma série de conceitos Bíblicos que eles agrupam sob o título "A Aplicativa Graça do Espírito Santo" (Gratia Spiritus Sancti Applicatrix), dogmáticos posteriores tentaram ilustrar a mudança que ocorre com respeito a todas as partes constituintes do homem.93(p.141) Com a sua "ordem da salvação" (ordo salutis) eles buscavam - de acordo com o precedente colocado por Lutero na explanação do Terceiro Artigo do Credo Apostólico - uma resposta à pergunta se também pode haver um contato do Espírito de Deus com a consciência concreta do homem, isto é, com a consciência do homem quando entendida com referência ao seu conteúdo empírico, não transcendentalmente. E dessa maneira, eles dispunham de uma tarefa colocada pela teologia toda de Lutero e pela teologia toda das confissões. (p.142) Esta teologia concentrou-se corretamente na doutrina da justificação - com o resultado que Hafenreffer, o primeiro a enumerar os vários atos paralelos lado a lado, já pôde decidir que se a doutrina da justificação fosse entendida, tudo o mais era "muito fácil de atingir" (sehr leicht einzusehen) e pôde, portanto, como em seu próprio caso, simplesmente ser passado por cima.94 É verdade que desde o princípio, Lutero e Melanchthon - e as confissões em âmbito não inferior - discutiram o problema profundamente de um ângulo específico, quando inquiriram sobre a relação entre fé e obras. Pois fazendo assim, eles não apenas excluíram as obras enquanto é tratada a validade diante de Deus, mas ao mesmo tempo exigiram-nas como resultado necessário da fé e dessa forma mantiveram, outrossim, que a fé, quando entendida transcendentalmente, afeta diretamente o que é empiricamente concreto no homem (das empirische Konkretum des Menschen).(p.142) Aqui, portanto, a pergunta básica tem sido como a experiência da justificação pode se tornar em atividade moral em conexão com a qual, como é auto-evidente, os acentos - decididamente passivos em parte - da ética de Lutero também são taxados como atividade moral num sentido mais amplo. No entanto, por essa razão, foi também necessário determinar se o novo Eu da fé não representaria ele próprio igualmente uma mudança no estado psíquico de coisas em geral.(p.142)
De fato, o "chamado" (vocatio) e a "iluminação" (illuminatio), os primeiros dois atos que os dogmáticos posteriores colocaram no primeiro lugar, de maneira nenhuma foram além do que aconteceu antes, visto que aqui se pode desconsiderar o "chamado direto" (vocatio immediata), que eles acharam no caso dos apóstolos e dos profetas.(p142) A possibilidade de uma "iluminação direta" (illuminatio immediata) é contestada contra os entusiastas. O chamado nunca ocorre, senão pela Palavra, isto é, mediante a Lei, para convencer-nos do pecado e da ira de Deus e, mediante o Evangelho para nos assegurar da graça de Deus em Cristo. As "mudanças de disposições operadas pelo chamado" (affectiones vocationes), segundo as quais o chamado é "sério" (seria), "eficaz" (efficax), "resistível" (resistibilis), e "universal" (universalis), são tiradas da doutrina da predestinação conforme apresentada na Fórmula de Concórdia, e unicamente com vistas ao desenvolvimento futuro do Calvinismo é que são intensificadas. Por outro lado, o problema anteriormente mencionado é sentido diretamente em conexão com os seguintes conceitos de "conversão" (conversio) e "regeneração" (regeneratio), que, de fato, são incluídos nesta doutrina por Calov como "conceitos relacionados (cognatae) ao chamado" (vocatio) (Syst. X,1-159). (p.143)
Pode-se entender a tentativa de Philipp Nicolai de subordinar todo o processo da salvação ao conceito da regeneração.95 Nenhum conceito rival exclui qualquer interpretação pelagiana tão claramente como o faz este - se ele for tomado seriamente. Ele expressa a atitude passiva do homem de uma maneira não ambígua. Em acréscimo, portanto, ele tem uma vantagem nisto que liga a "nova vida" inseparavelmente ao vir à fé. Realmente, isto não evita que o pietismo utilize o mesmo conceito como um pseudônimo para o seu"empenho pela santificação" (Heiligungsstreben) ativista. Os dogmáticos, por outro lado, seguem a interpretação mais estrita estabelecida pela Fórmula de Concórdia - a interpretação segundo a qual a palavra "pretende unicamente o perdão dos pecados e que somos adotados como filhos de Deus" (heisset allein Vergebung der Sunden und dass wir zu Kindern Gottes angenommen werden) (DS III:19). Em apoio a isto, ela aponta para a linguagem usada na Apologia. Aqui, então, a ênfase está na conexão óbvia entre o novo nascimento e a relação filial (Kindschaft) dos que crêem. Então, tudo isto é meramente uma maneira gráfica de parafrasear o processo da justificação.96 (p.143)
Contudo, mesmo em se permitindo que o conceito tenha seu pleno efeito gráfico, ainda assim um elemento que ainda não foi expresso no conceito previamente apresentado, da justificação, não pode ser separado daquele, notadamente o fato que mediante a fé aquele que crê se torna uma pessoa diferente - da pessoa que era antes.(p.143) De fato, a Fórmula de Concórdia o admite somente quando a expressão é usada num sentido amplo, a saber, como sinônimo de "santificação e renovação", segundo o qual ela então diz que eles "seguem a justiça da fé" (DS III:21). No entanto, é precisamente neste ponto que a Fórmula de Concórdia insiste na diferenciação estrita, a fim de evitar a noção "que após a regeneração nenhuma injustiça se liga por algum tempo ao justificado e regenerado no seu ser e vida" (dass den Gerechtfertigten und Wiedergeborenen keine Ungerechtigkeit nach der Wiedergeburt im Wesen und Leben mehr sollte anhangen) (22) E ela deve fazer isto para guardar-se de colocar em perigo a verdade que a justificação de um pecador é um todo, ou algo que é completado na fé, que a santificação, por outro lado, é apenas "empreitada" (Stückwerk) "até ao túmulo" (bis in die Gruben). Lutero usou o conceito da "santificação" (sanctificatio) como sinônimo de "justificação".97 Realmente, ele olhava para o dom da santidade como um todo. No entanto, declarar que a fé não leva a nenhuma mudança na constituição psíquica do homem nunca lhe ocorreu, nem mesmo à Fórmula de Concórdia, nem mesmo a Flácio. A ética toda de Lutero está baseada na noção que o homem tem de ser bom a fim de praticar boas obras. Não importando que entendimento mais preciso possa haver disso, está claro que desta maneira a asserção foi feita que a fé coloca toda a humanidade numa nova situação.(p.144)
Portanto, não é um afastamento da opinião de Lutero quando os dogmáticos mantém que a regeneração no sentido restrito também leva a uma mudança atual no estado psíquico de coisas. Assim Baier ensinou que na regeneração Deus "presenteia [o homem] com força espiritual na parte do intelecto e da vontade para crer em Cristo e iniciar uma vida que é espiritual no mesmo grau, ou opera essa [força] no próprio [homem]" (ex parte intellectus et voluntatis viribus spiritualibus ad credendum im Christum vitamque adeo spiritualem inchoandam donat aut eas in ipso producit) (Comp., p.678). Aqui a única coisa que causa espécie é o fato que Baier deixa a mudança psíquica surgir para o propósito da fé. O contexto, porém, mostra que para ele o assunto que interessa é o fato que isto é meramente uma delimitação abstrata, muito embora pareça ser uma delimitação num ponto do tempo.(p.144) É igualmente irrelevante que Baier, de acordo com a psicologia toda dos dogmáticos, separa o intelecto e a vontade um do outro, e como ele o faz. Ademais, a realidade de uma mudança psíquica é expressa quando a "regeneração" (regeneratio) é designada como "sucessiva" (successiva) (Konig, p.191) ou como "gradual e crescente" (gradualis et crescens) (Quenstedt, III, 483). Portanto, "da parte de Deus ela é perfeita, mas é imperfeita da parte dos seres humanos que a recebem" (ex parte Dei perfecta, ex parte vero hominum recipientium imperfecta). (p.145)
Como deve ser entendida a mudança factual do homem, tornar-se-á mais claro em conexão com a discussão da conversão, especialmente desde que os dogmáticos freqüentemente tomam esse assunto quando lidam com o conceito de regeneração. A única diferença que König é capaz de estabelecer é decididamente externa. Ele coloca que se pode falar em regeneração no caso de crianças e adultos, de conversão somente no caso de adultos, e que a regeneração ocorre mediante a Palavra e o sacramento, a conversão, no entanto, somente pela Palavra (189). Hollaz, por outro lado, pretende limitar a conversão no sentido estrito ao "surgimento da contrição" (excitatio contritionis), a regeneração ao "conceder da fé" (donatio fidei) (III,375ss.). Muito embora ele mesmo seja incapaz de desenvolver estritamente essa distinção, ainda assim a sua definição de conversão nos faz chegar a um conceito associado com o próprio princípio da Reforma, a saber, o da penitência. (p.145)
A atividade pública de Lutero iniciou com um chamado ao arrependimento. Com esse chamado ele se adiantou à conclusão de um longo desenvolvimento da igreja medieval, cuja zelo e profundeza interior em parte alguma é sentida tão claramente como em seus pregadores do arrependimento, mas também na pedagogia do seu sistema oficial de penitência. Aqui a doutrina do arrependimento de Lutero é uma terminação ou uma culminação, porque é impossível ir além da sua "auto acusação" (accusatio sui), que é realmente aplicada a todas as partes constituintes do Eu, e face à ira de Deus, é experimentada em conexão com esta "auto acusação" (accusatio sui), não deixa nenhum espaço para qualquer coisa além da desiludida "contrição" (contritio). Ao mesmo tempo, porém, ele tira desse abismo imenso da desesperança ao considerar que o alvo do Evangelho é precisamente a vitória sobre o "desespero" (desperatio). E somente o Evangelho pode fazê-lo. Não importa quanto zelo ele teve durante toda a sua vida para com essa sentença contida em sua instrução aos visitadores que "sem o arrependimento não existe perdão de pecados" (WA 26,202,9), ele já sabia por experiência: "Arrepender-se sem um desejo por e um amor à justiça, meramente por medo do tormento, conforme eles ensinavam, isto é tornar-se secretamente hostil a Deus, blasfemar, engrandecer o pecado; e nada mais é do que um arrependimento de Judas." (p.145) Ele pode, não apenas "arrepender-se com desejo e amor" que "tem seguro conforto para si e a promessa de graça, não extraída dos seus próprios pensamentos (pois isso não é nem permanente nem válido) mas oferecido e presenteado mediante a verdadeira Palavra de Deus" (WA 30 II, 507,1ss.).98A rejeição brusca por Lutero do "falso arrependimento dos papistas", conforme ele o chama nos Artigos de Esmalcalde, está baseada nisso. O verdadeiro arrependimento não é ativo. Ele não é uma obra do homem que opera o perdão dos pecados. Não, ele é "passivo, o sofrimento e a sensação de morte" (Artigos de Esmalcalde, III, art.III:2). Mas onde ele não é nada mais do que isto, ali está "o âmbito e o poder e força do pecado no coração em que eu sou aterrorizado, e o pecado quer devorar-me" (WA 34 I, 324,15). Mas isto é definidamente inimizade contra Deus (325,15), porque a fé está ausente. "Em cada momento de tribulação e terror aquela pequena porção da misericórdia divina deve ser posta nos corações, a fim de que o coração contrito seja soerguido por essa misericórdia" (Oportet in omni tribulatione et terrore infixam animis esse parvam illam scintillam misericordiae, qua erigatur animus contritus) (WA 44,469,19). Realmente, o "clamor por misericórdia" (Anrufen der Barmherzigkeit) (I.40) ou fé (WA 40 I, 232,1ss.) deve ser parte do arrependimento salvífico. Portanto, Lutero expressa a sua doutrina do arrependimento conclusivamente quando diz que ele consiste "tanto no reconhecimento sério do pecado como no apego à promessa" (et seria agnitione peccati et apprehensione promissionis) (WA 44,175,4ss.). As confissões, bem como os dogmáticos posteriores defendem o mesmo conceito de arrependimento.99 (p.146)
Segundo a isto, poderia parecer que a doutrina do arrependimento seria meramente uma forma pleonástica de se expressar a doutrina da justificação. E é certo que o primeiro é operativo no último como um fator determinante. No entanto, quando os dogmáticos, partindo do sinônimo dos conceitos Bíblicos epistrofh e metanoia, equiparam o arrependimento com a conversão, eles vêem nisto ao mesmo tempo uma nova modificação do conceito de regeneração no sentido previamente estabelecido. Contudo, vêem-no a partir de um novo ângulo. O homem é colocado num novo plano.(p.146) Ao mesmo tempo, porém, isto agora coloca o novo homem numa relação definida com o velho homem. Conforme diz Lutero, a "contrição" (contritio), que pertence ao arrependimento, consiste em "auto-acusação" (accusatio sui), em "desespero de si mesmo" (desperatione sui) WA 40 I, 232,3). Contudo, isto inclui, necessariamente, que tu "agora te tornaste hostil ao pecado" – auto evidentemente porque isto ocorre somente quando se olha para Cristo, "por amor e não por medo do castigo" (WA 2, 141,9; Enders 4,225,69ss.). "[A Escritura] chama o arrependimento realmente de uma mudança e reforma da vida toda, quando o homem chega à conclusão que ele é um pecador e sente que a sua vida não é correta, que ele deve então desistir dela e tornar-se um novo ser com toda a sua vida, em palavra e ações e também do coração" (WA 12,514,18). Essa sentença sobre o arrependimento corresponde exatamente ao novo elemento que os dogmáticos adicionam à doutrina da justificação quando eles estabelecem o que eles ensinam sobre a conversão. E isso não é contestado quando Lutero, em seu escrito contra Erasmo, pretende ver o conceito "converter" (convertere) usado em seu sentido evangélico - não como "uma palavra de alguém que exige e ordena, que requer, não uma tentativa, mas uma mudança da própria vida toda" (vox exactoris et imperantis, quae non conatum, sed totius vitae requirit mutationem), mas como "ma palavra de consolo e promessa divina, pela qual nada é exigido de nós, mas nos é oferecida a graça" (vox consolationis et promissionis divinae, qua nihil a nobis exigitur, sed nobis offertur gratia) (WA 18,682,10ss.). Pois neste escrito, também, ele exigia "desespero de si mesmo" (desesperatio sui) mais duramente e o designou como um pré requisito para o recebimento do perdão. E inversamente, no sermão citado acima, é dito: " 'O arrependimento em Seu nome' ocorre conforme segue: àqueles que crêem em Cristo ele dá alívio por meio daquela mesma fé, não por um momento ou uma hora, mas para toda a vida" (WA 12,514,30). Aqui, igualmente, "ser convertido" (converti) resulta numa mudança da incredulidade para a fé, mas na fé também como "uma mudança e reforma da vida toda". (p.147)
Contudo, ainda que paremos para o presente diante do fato que o crente é "hostil ao pecado", torna-se evidente que o nascimento transcendental da fé afeta a psique do homem. Pois após a fé ter sido criada, é impossível para o que foi convertido por Deus para Deus, sancionar em si mesmo o que ele odeia como pecado em sua vida passada. Como crente, ele é, realmente, também um penitente por toda a sua vida. À luz do veredicto de Deus ele não considerará bom nada que ele próprio é ou faz. Perante os olhos de Deus, portanto, ele sempre sujeitará todo o seu ser ao julgamento da "contrição" (contritio). Contudo, isto não exclui sua própria adesão na luta contra o pecado; isto a inclui. (p.147) Assim a fé - nada mais precisa ser dito no presente - torna-se um fermento ativo no homem do pecado. Se todo pecado tem seu fundamento na incredulidade e esta é a sua real essência, então a fé deve ter a coragem de atacar seu real inimigo, a menos que deseje capitular. Ao mostrar essa coragem, o crente começa a luta por sua psique, e ao lutar é seu alvo chegar novamente como uma unidade a partir do fracionamento do seu Eu.(p.148)
Em si, por conseguinte, era compreensível que os dogmáticos da escola de Melanchthon associavam a "nova obediência" com a penitência como um terceiro fator em acréscimo à "contrição" e a "fé" (fides). Realmente, o próprio Melanchthon declarou na Apologia que era possível acrescentar "frutos dignos" (dignos fructus) a estes (V.28). Era muito mais prazeroso dizer isto quando, assim como Nicolau Selnecker o fez, se fazia do conceito de penitência ou conversão um conceito coletivo para toda a virada da ruína para a salvação.100 De fato, isso era perigoso enquanto os Melanchthonianos foram os únicos que colocaram forte ênfase na atividade livre da vontade na "nova obediência" (nova oboedientia) da pessoa justificada, e a direta proximidade da "obediência" (oboedientia) com a justificação sob o manto da penitência poderia muito facilmente infectar a segunda com o elemento ativista da primeira. No caso de Selnecker, o perigo se faz sentir na sua descrição da nova obediência como "a fé que retém e uma boa consciência" (retinere fidem et bonam conscientiam). Assim, aqui a paz de consciência que, segundo a doutrina não infectada da justificação, pertence somente à fé, é atribuída à nova obediência! E é ainda mais perigoso quando Simão Paulo afirma não hesitar para designar o "perdão de pecados" (remissio peccatorum) como o propósito da "penitencia" (poenitentia), à qual ele inclusive acrescenta a "nova obediência" (nova oboedientia) como um terceiro elemento.101 Isto somente se poderia afirmar se, assim como o fizeram os dogmáticos do século seguinte, se limitasse a penitência mais estritamente à "contrição" (contritio) e à "fé" (fides). Contudo, a própria doutrina da conversão de Melanchthon estava, de fato, ainda mais profundamente embaraçada no sinergismo quando ele a ligou a três razões: "E quando principiamos com a Palavra, aqui três causas do ato bom se unem - a Palavra de Deus, o Espírito Santo e a vontade do homem, que consente e não resiste à Palavra de Deus".(p.148) (Cumque ordimur a verbo, hic concurrund tres causae bonae actionis, verbum Deis, Spiritus sanctus et humana voluntas assentiens nec repugnans verbo Dei) (CR 21, 658; 23,15). A Fórmula de Concórdia lida profundamente com essa notória heterodoxia (DS II,90). É devido à Fórmula de Concórdia que os dogmáticos posteriores realmente limitam o conceito de conversão ainda ao arrependimento e à fé e então, em princípio, afinal, estavam fortalecidos contra o sinergismo. (p.149)
Portanto, se na conversão se pode e deve observar o efeito retroativo da fé nas partes constituintes da psique - visto que os elementos interiores do arrependimento e da fé começam a lutar contra o pecado - é oportuno submeter um outro conceito compreensível, como o fazem os dogmáticos posteriores, tudo o que olha como uma modificação ativa. Para isto, eles usam as expressões "renovação" (renovatio) e Santificação" (sanctificatio), que geralmente são consideradas sinônimos - se, juntamente com Scherzer, o conceito de "santificação" (sanctificatio) não é inteiramente evitado. Scherzer reconhece somente "justificação" (justificatio) e "renovação" (renovatio), e ao enfatizar estritamente a posição posterior da segunda, ele mui facilmente escapa dos perigos do sinergismo (Syst. 1698, 454ss.). Theófilo Grossgebauer inclui ambos sob o conceito de renascimento102 Quenstedt distingue renascimento, justificação e renovação de tal maneira que o primeiro tem o "produzir a fé" (productio fidei) como seu objeto; a segunda, a "justiça imputável" (justitia imputabilis); a terceira, a "justiça inerente" (justitia inherens); ou, com referência às "causas eficientes" (causae efficientes), de tal maneira que somente o renascimento e a justificação são atos de Deus, enquanto na renovação o renascido coopera com Deus, "não", é verdade, "por meio da sua própria força, mas por meio da força dada por Deus" (non per proprias sed divinitus concessas vires) (Theol.III,632). (p.149)
Aqui podem ser vistos tanto a preocupação real como o perigo desse artigo. Aqui Quenstedt e Hollaz se atreveram a usar a expressão "unir" (concurrerte), a despeito do ensaio posterior sinergista, porque embora saibam que em sua definição puramente forense da justificação são intocáveis, eles ainda, por outro lado, esperam expressar algures a atividade da pessoa que foi justificada. E deve-se admitir que aqui essa atividade está mais firmemente ancorada do que, digamos, na doutrina das boas obras de Melanchthon. Contudo, a exposição de Quenstedt parece se tornar ainda mais perigosa quando ele designa o produto resultante da cooperação de Deus e do justificado como "justiça" (justitia), notadamente, como "justiça inerente" (justitia inherens), ou quando Hollaz usa a expressão "santidade inerente" (sanctitas inherens) nesta conexão (II,506). (p.149) Disto se poderia concluir que entre Deus e o homem existe uma dupla justiça - uma, a justiça que é concedida ao homem; outra, a justiça em que o próprio homem toma parte, com a qual ele mesmo atua. Nenhuma referência ao fato que a força empregada pelo homem nessa conexão é "força dada por Deus" (vires a Deo concessae) poderia evitar a fatal recordação da doutrina medieval da "graça cooperante" (gratia cooperans). Por essa razão outros, como König evitaram totalmente essas expressões.(p.150)
Não obstante, as confissões estão em concordância quando elas ensinaram que boas obras resultantes da fé agradam a Deus e são aceitas por ele como boas obras, a despeito da sua imperfeição.103 Lutero ensinou o mesmo (WA 2,46,29). Sim, a Apologia colocou que: "As boas obras nos santos... são evidências da justiça" (Bona opera in sanctis...sunt justitiae) (III,131), ou que a Escritura deseja que "a justiça do coração seja circundada de frutos" (complecti justitiam cordis cum fructibus) (244). Em conseqüência, foi da maior importância não perder a conexão entre a fé e a atividade predicada da pessoa que foi renovada. Quando essa conexão era preservada, então, mediante a fé, a "contrição" (contritio) também sobrepujava acima de todas as "boas obras" e todas as outras mudanças a serem incluídas na renovação - portanto a consciência de que a justiça que vale perante Deus permanece uma "justiça alheia" (aliena justitia) a despeito de toda a "santidade inerente que apenas começou" (sanctitas inhaerens inchoata). E deve-se admitir que mesmo Quenstedt e Hollaz não perderam essa consciência. Ela não foi perdida até o surgimento da doutrina da santificação conforme apresentada pelo pietismo. (p.150)
Além disso, há ainda uma outra conexão entre a fé e o estado concreto do "homem renascido" (homo renatus). É verdade que ele é e permanece sendo um pecador; mas por essa mesma razão, o crente não deve aplicar o "por mim" (pro me), sem o qual não existe fé alguma, somente ao seu passado. Ele deve aplicá-lo igualmente ao seu "agora" e ao seu "aqui", e que no sentido mais concreto: Deus em Cristo "por mim" (pro me), isto é, pelo homem empírico total. Dessa forma, portanto, é atingida a restauração da singularidade no sujeito. Pelo menos, existe um começo. A "justiça de Deus" (justitia Dei) é recebida pelo Eu transcendental - porém é válida para o Eu empírico. (p.150) E se, para Lutero, essa "justiça" (justitia) implica "liberdade cristã" no sentido original, a saber, "que não precisamos de nenhuma obra para obtermos a piedade e a salvação" (WA 7,25,1ss), então essa liberdade é o oposto de uma liberdade idealista.104 No idealismo, é a ação original do inteligível, isto é, o Eu transcendental; em Lutero é a concepção do Eu empírico - ouvida pelo Eu transcendental da fé como uma libertação mas entendida como liberdade do homem na sua realidade empírica. Pois a fé é um receber puramente passivo; mas para o homem empírico ela é uma concepção - certeza, como cada ato de imaginação, algo que começa para alguém mas ao mesmo tempo uma "vivificação" (vivificatio) no sentido mais concreto. De fato, soa bastante tolo quando os dogmáticos posteriores distribuem o fruto da "renovação" (renovatio) entre os elementos individuais da consciência, incluindo até mesmo o corpo humano (König, p.216). No entanto, mesmo que se resista à tentação de segui-los nisto e, talvez assim como em Lutero, de compilar as provas que foram acumuladas, ainda assim em nenhum caso pode-se ignorar o fato que o mesmo Lutero, que enfatizava o "meramente passivo" (mere passive) da fé e da justificação como nenhuma outra pessoa o fez, ao mesmo tempo atribuiu à fé a suprema validade, que não pode mais ser interpretada como sendo qualquer coisa senão empírica. "Onde a fé é do tipo certo, ali a ação também segue; e quanto maior a fé, maiores as ações. Fé do tipo certo é realmente algo poderoso, grandioso e ativo. Para ela, nada é impossível; ela não descansa nem faz feriado" (er rugett und freurett auch nit). (WA 10 I,1,p.269,19). O fato que a fé, enquanto oposta à incredulidade (que faz de Deus um diabo) (Wa 37,564,15;20), tem um Deus misericordioso e, em vista disso, revela seu maior poder não pertence aqui diretamente, é verdade; mas assim como o medo de Deus é inseparável da descrença, assim a "alegre disposição" (affectus hilaris) (WA 2,587, 28), de que Lutero falou em sua exposição do Magníficat (7,544ss.) em variações inexauríveis e da maneira mais inspiradora, é inseparável da fé. "Esta mesma fé é viva e ativa; ela penetra e muda o homem todo" (553,33). E tão logo o crente se tornou certo da misericórdia de Deus - o Deus que realmente é também Senhor de todas as coisas - ele vê e experimenta o mundo diferentemente da maneira que o duvidoso o vê e experimenta. Aquele que está certo do perdão dos pecados é capaz de contender com todas as tribulações. "E deixe cada um ser um falcão que possa voar nas alturas em tais tribulações" (WA 31 I,95,3). "Isto, então, é uma fé, isto é, um coração, que olha para Deus esperando ajuda, graça e conforto em toda angústia" (WA 37,562,35). (p.151) De obras divididas em muitos fragmentos, Deus leva o crente à "unidade de coração" (unitas cordis) (WA 14,614,25).105 (p.152)
Portanto, Lutero estava sendo sério quando, em seu tratado contra Látomo, defendeu a seguinte sentença: "[O Evangelho] cura o estado corrupto da natureza por meio da justiça" ([Evangelium] per justitiam sanat corruptionem naturae) (WA 8,106,1). Pela fé, o homem empírico se torna uma outra pessoa. De uma pessoa em fragmentos, ele se torna uma pessoa total; de pessoa angustiada, uma pessoa alegre; de pessoa escrava, a pessoa livre e "senhor de todas as coisas". Não é necessário mostrar de novo que isto tudo não pode obscurecer a clareza da doutrina da justificação. Nem se necessita demonstrar que os dogmáticos falaram no sentido de Lutero quando repetiam enfática e insistentemente que a "renovação" (renovatio) é e permanece sendo "imperfeita" (imperfecta) "até o último dia". Poderia apenas ser questionável se, além de tudo, o conceito de fé é usado num sentido diferente, isto é,. se, no fim, a fé não se desenvolve de um ato do Eu transcendental como um ato psicológico. Porém, o que primeiro levou a essa questão, deve ser buscado na forte ênfase colocada sobre a "confiança" (fiducia) - a ênfase que, desde a época do Conselho de Ansbach, distingue o que todas as confissões ensinam sobre a fé. Da parte do homem, que foi julgado pela "contrição" (contritio) - e, visto que ele foi julgado com finalidade segundo o seu estado psíquico, é um "nada" aos olhos de Deus, que vê justiça nele - a "confiança" (Vertrauen) da fé está circunscrita à promessa. Por outro lado, a mesma confiança é precisamente a "disposição alegre" (affectus hilaris) que é um elemento essencial da renovação e portanto o início da transformação do homem empírico. Mesmo aqui, é evidente que a fé não pode existir sem essa transformação, todavia deve ser avaliada no ato de justificação sem qualquer consideração desta. Flácio e Nik Gallus deram expressão a esses dois aspectos da fé no seu polêmico tratado contra Georg Major, de tal maneira que em conexão com a justificação, eles a avaliaram como puramente um dom de Deus mas, após a justificação, seja considerada uma atividade do homem.106(p.152) Assim, mesmo o mestre da "doutrina tronco-e-pedra" (trunca et lapis-Lehre) não pôde fugir da conclusão de Lutero que a fé que recebe - e vale perante Deus como aquela que recebe - é ao mesmo tempo uma "coisa suprema, ativa, movimentada" (mächtig, tätig, geschaftig Ding). E que se considerará verdade a distinção feita por ambos os participantes nesta controvérsia se "após a justificação" (post justificationem) não é tomada no sentido de uma delimitação de tempo. Estritamente falando, a fé, que recebe a "justiça de Deus" (justitia Dei), é fora de espaço e tempo - "num ponto matemático" (in puncto mathematico), conforme diz Lutero. E inversamente, a "renovação" (renovatio), assim como a "conversão" (conversio), não é "súbita" (subita); mas ambas correm "sucessivamente" (successive). "Pois", diz Chemnitz, "é impossível demonstrar num ponto matemático onde a vontade que foi libertada começa a ser ativa" (Neque enim in punto mathematico ostendi potest, ubi voluntas liberata agere incipiat) (Loci I,214b). (p.153)
Já foi destacado que os dogmáticos tinham em mente o catecismo menor de Lutero, quando resumiram os atos individuais sob título "A Graça Apropriante do Espírito Santo" (Gratia Spiritus Sancti Applicatrix). Contudo, na sua apresentação, eles evitaram descrever o "Espírito Santo" (Spìritus sanctus) nos detalhes do desenvolvimento deles. Isto foi totalmente acertado. O Espírito de Deus, que, segundo eles, como Lutero, sabem, opera somente na Palavra e nos sacramentos, sempre está face a face com o homem, mesmo com o "renascido" (homo renatus), como o outro. Ele é o fator determinante da sua doutrina da salvação que em nenhuma circunstância pode ser transferida para o domínio da psicologia. Sobre Ele, portanto, pode-se falar somente na forma de dogma. Além disso, as falhas da sua doutrina da "ordem da salvação" (ordo salutis) são tão notórias que não é necessário gastar qualquer tempo agora para sublinhá-las. No final, todos chegam ao mesmo resultado: que pela sucessão de uma multiplicidade de atos idênticos em parte um com o outro, o claro estado de coisas ou a unidade interna da doutrina Luterana da salvação é complicado ou obscurecido. No entanto, que o esforço desses dogmáticos para encontrar o caminho para os fatos concretos pertinentes à psique não foi em vão, será visto na sua ética e no que eles ensinam sobre a filosofia de vida (Weltanschauungslehre). Foi destacado aqui, o que levou a esse ensino. (p.153)
13. Mystica Unio 107
1. Os dogmáticos do século dezessete dividiram o "caminho da salvação"(Heilsweg) num grande número de atos ou elementos. Porém, no final, isto não significa que eles consideraram necessário fazer justiça a todas as riquezas de pensamentos contidos no Novo Testamento. Muito embora estivessem talvez apreensivamente preocupados em não destruir a idéia fundamental da doutrina da justificação, e muito embora, na realidade, essa idéia lhes serviu como salvaguarda para guardá-los de se lançarem em abismos ameaçadores, contudo, no Novo Testamento também encontraram linhas de pensamento que num primeiro lance poderiam ser conciliados com essa idéia fundamental unicamente pelo uso de força pura. Estes são, acima de tudo, as palavras de Cristo registradas por João. Nelas, Cristo fala sobre um relacionamento pessoal com seus discípulos que, aparentemente, saltam por cima do caminho Paulino da reconciliação e justificação.(p.154) Aqui Melanchthon chamou em seu auxílio os conceitos do Evangelho e da fé que adquirira de Paulo. Ele procedeu assim com admirável perícia. Cristo deseja estar em nós, isto é - assim ele anota com referência a Jo 15.4 - as suas palavras devem permanecer em nós. Isto se conclui do verso sete. E disto também segue o que significa permanecer em Cristo, que "nada mais significa do que crer em sua palavra" (CR 14,1186). Ou, mais adiante: aqueles que verdadeiramente permanecem Nele são os que guardam o evangelho em fé verdadeira - eles são governados pelo Espírito Santo (15,327). E quando Cristo coloca que os discípulos estão unidos uns com os outros porque Ele está neles e o Pai está Nele (Jo 17.22s.), é Seu desejo "que primeiro eles concordem conosco (com Cristo e o Pai), que eles sejam iluminados por Nossa luz e verdade... Ele deseja que as mentes de todos sejam guiadas junto com Deus, pelo Evangelho" (p.154)
(ut primum consentiant nobiscum, sint illustrati nostra luce et veritate...vult copulatas esse omnium mentes cum Deo per Evangelium) (15,387; cf.14,1207). Quando se diz que Cristo está nos que crêem, isto significa que eles possuem fé Nele (14,1209).108 (p.154) Embora estas sentenças sejam corretas e importantes em si mesmas, ainda assim, revelam que Melanchthon não estava ciente do problema que - precisamente do ponto de partida da doutrina da justificação - aqui dificilmente é possível ignorar. (p.155)
Contudo, também aqui o problema deve ser encontrado na relação da fé com a psique. A fé, enquanto fé em Cristo, perde seu alicerce de imediato se não deixar que Cristo permaneça Alguém totalmente diferente e a Sua justiça permaneça sendo "alheia" (aliena), se ela não recebe mais a palavra de perdão conforme pronunciada por Aquele outro. No entanto, as sentenças de João - "Eu neles", "A habitação de Deus neles", "permanecer neles" - parecem dizer exatamente o oposto. Pode isto significar algo diferente do que o fato que entre Cristo e os que são dele ocorre uma união de natureza tal que Cristo não é mais o Outro, mas pertence a eles, não é mais o conteúdo da fé, mas um conteúdo psíquico? Aqui, realmente, se apresenta um recurso exegético. Cristo não está falando sobre a sua relação com os indivíduos. Ele está falando sobre a sua relação com a totalidade dos seus discípulos. Ele está neles, isto é, entre eles, em seu meio - mediante a sua palavra, pela pregação do Evangelho, conforme Melanchthon eficazmente o destaca. No sermão de Pentecostes apresentado quando a Reforma foi introduzida em Leipzig (1539), Lutero, também, referiu à igreja as palavras "faremos nele morada" (Jo 14.23) (WA 47,772ss.). E, de acordo com o precedente por ele colocado, os dogmáticos do século dezessete também aplicam essas palavras e similares à doutrina evangélica da igreja. (p.155)
Quando, porém, ao mesmo tempo, os dogmáticos do século dezessete sustentaram a sua doutrina da "união mística" (unio mystica) com estas palavras, eles o fizeram porque neste assunto, como em outros, procuraram colocar em concordância Paulo e João. Somente eles tinham recurso para outra esfera de idéias que aquela usada por Melanchthon. Eles acharam que quando em Ef 1.22,ss e 5.23 Paulo descreve Cristo como o Cabeça e a igreja como o seu corpo, ele nada mais tem em mente senão o que Cristo pretende quando em Jo 15.1ss., usa a ilustração da vinha e dos ramos. Ademais, da aplicação que Paulo faz em 1Co 6.15ss, da descrição do corpo e dos membros, eles concluíram que o "grande mistério" (mysterium magnum) de que fala Ef 5.32 igualmente confirma a relação de Cristo com os crentes individuais. Eles confirmaram isto com Gl 2.20, uma passagem que, separada de Gl 2.19, onde Paulo diz a respeito de si mesmo de uma forma bem pessoal que Cristo vive nele.(p.155) Nem consideram eles necessário restringir isto à unidade com Cristo, porque em João também é colocado que o Pai está nos crentes (1423), e Paulo está falando sobre o tornar-se "um espírito com Ele" (1Co 6.17). Eles acrescentaram 2Pe 1.4, onde é dito que os crentes deviam tornar-se "partícipes da natureza divina" (qeos fusews koinwnoi). E visto que em 1Co 6.19 o corpo é designado como "um templo do Espírito Santo", eles pensavam não terem nenhum direito de excluir a natureza humana de Cristo. Nessa conexão, chamaram atenção para a "glorificação" (doxasein) de que Cristo fala em Jo 17. Finalmente, quando se acrescenta que eles distinguiam a união com Deus aqui mencionada da união geral que eles encontraram expressa em 1Co 15.28, tem-se reunidos todos os elementos essenciais da sua doutrina da "união mística" (unio mystica).109 (p.156)
Se ali realmente houve importantes fundamentos Bíblicos para isto, eles devem ter se tornado evidentes no século dezessete também. É verdade que mesmo nas homilias que ele baseava no Evangelho segundo são João, Brenz, semelhante a Melanchthon, demonstra ser um guardião da doutrina da justificação - mesmo onde, e precisamente onde, a habitação de Deus ou de Cristo nos crentes é mencionada.110 "Permanecer em Cristo é permanecer na Palavra de Cristo" (Manere in Christo est manere in verbo Christi) (764). E, inversamente: Cristo permanece em nós se a sua Palavra permanece em nós. Se nós permanecermos na fé em Cristo, somos seus amigos (773). Cristo e o Pai querem fazer sua morada em nós. "Mas nós os recebemos com hospitalidade mediante o amor ou mediante a fé em Cristo" (Accipimus autem eos hospitio per dilectionem seu fidem in Christum) (742). Obviamente Brenz, assim como os dogmáticos posteriores, chama atenção aqui ao paralelo Paulino (1Co 619). (p.156) Mesmo em conexão com Jo 6.56, onde Cristo liga a sua permanência nos discípulos ao comer a sua carne, ele explica enfaticamente que aqui somente a fé é mencionada - essa é a exegese mantida muito tempo antes em oposição aos Suíços (377,381). Ele ainda não pode encerrar com esses enunciados. Esta sentença que Cristo e os crentes permanecem um no outro - "isto é, somos tornados uma só carne e sangue. E aquele que come a Minha carne, igualmente adquire a mesma natureza que a minha carne e sangue possuem." (hoc est, una efficimur caro, unus sanguis. Et quam habent naturam mea caro et meus sanguis, eandem etiam consequitur is, qui me vescitur.) (378). (p.156) E uma "porção" (communio) ou "participação" (communitas) atual ocorre entre Cristo e os que são seus (776). Com os que crêem nele, Cristo tem tudo em comum (774). (p.157) Na verdade, ele não reparte com eles o que ele sabia ou era capaz de fazer em virtude da sua conexão essencial com o Pai; ele reparte com eles somente o que pertence à perfeita salvação dos homens. E não se pode incluir nisto as artes de astronomia, geometria e profecia (775). Ainda aqui, também, Brenz, exatamente assim como os dogmáticos seguintes, adota de 2Pe 1.4 a idéia que os crentes se tornam "partícipes da natureza divina" (869). Em verdade, ele inclui a igreja. Os discípulos devem ser um, assim como Cristo e o Pai são Um. Se isso é verdadeiro a respeito Deles que Eles possuem "uma essência e divindade" (unam essentiam et divinitatem), assim a Sua comunhão com a igreja permanece unicamente "enquanto a igreja é capaz de contê-Los" (pro modo capacitatis ecclesiae). O que o Filho possui desde a eternidade, a igreja adquire somente adotando-o (o que é do Filho). Contudo, todos os crentes que, em razão da sua fé em Cristo, permanecem verdadeiros membros da igreja igualmente permanecem indissoluvelmente unidos com a Trindade (naquele lugar próprio). Portanto, é possível chegar à conclusão final: "que tantos quantos crêem em Cristo recebem a majestade divina e se tornam filhos de Deus, isto é, eles mesmos deuses" (ut quotquot in Christum credunt, recipiant divinam majestatem ac fiant Dei, hoc est, dii ipsi) (379). Nem mesmo os dogmáticos posteriores foram além do que Brenz firmou aqui concernente à aquisição da majestade divina pelos crentes. Porém, antes de perseguir suas idéias futuramente, é necessário procurar paralelos (p.157)
Está claro que essas idéias tinham de se tornar importantes na batalha concernente à presença real de Cristo. Aqui elas foram ainda intensificadas, enquanto a presença real segundo ambas as naturezas foi o assunto em questão. Assim, Stephan Gerlach, de Tübingen, citou 2Co 13.3,ss., Gl 2.20 e Ef 3.17 em acréscimo às passagens de João e, assim como os dogmáticos posteriores, combinou a descrição da vinha com a descrição de Paulo da Cabeça e os membros.111 Disto ele concluiu que o Cristo todo está presente, não apenas na sua igreja, mas também "habitando em cada crente, não cortado ao meio mas em sua inteireza e imutável, os vivifica por meio da natureza assumida, santifica, consola e salva" (singulis fidelibus non dimidiatus sed totus et integer habitans eos per naturam assumptam vivificet, sanctificet, consoletur, salvet (383). (p.157) A habitação, diz ele, ocorre não apenas - como o teriam os Jesuítas e Calvinistas - "mediante o Espírito, a fé e o amor...mas também por meio de uma união real que acontece após a maneira do assentar à direita de Deus, que está presente em todo lugar e - conforme diz Cirilo - é uma partilha natural do corpo e do sangue na sagrada comunhão" (per spiritum, fidem et charitatem ... verum etiam coniunctione reali, quae fit per modum sessionis ad dextram Dei ubique praesentem et participationem naturalem - ut Cyrillus loquitur - corporis et sanguinis in sacra coena) (389). A relação para com a Ceia do Senhor será discutida mais tarde. Contudo, quando Gerlach fala de uma "união real" (coniunctio realis), ele pretende, segundo o contexto inteiro, exatamente o que os dogmáticos posteriores pretendem quando falam de uma "união na substância" (unio substantialis) - sempre que essa expressão for usada. (p.158)
Em conexão com a doutrina da Ceia do Senhor, essas idéias e similares, foram todas inevitáveis. Até mesmo um homem como Nikolaus Selnecker, que, em outros assuntos, está tão distante de Brenz como ninguém mais pode estar e fala sobre Jo 15 quase com as próprias palavras de Melanchthon, declara que na Ceia do Senhor, Cristo "habita em nós, não apenas enquanto isto é entendido através do amor, mas também por uma participação natural, corpórea, pelo repartir da sua carne, e realmente nos torna seu corpo e nos faz tornar-nos uma massa consigo mesmo, não apenas mediante a fé, mas na realidade, nos alimenta com o seu próprio corpo e nos une e liga a si próprio" (non habitudine solum, quae per caritatem intelligitur, sed etiam participatione naturali, corporaliter, communicatione carnis in nobis habitare et reipsa nos corpus suum efficere et in unam secum massam reducere, non fide solum sed revera, proprio corpore nos alere et sibi conjungere atque conglutinare).112 Nesta distinção entre duas espécies de união com Cristo, uma das quais ocorre "mediante a fé" (fide) mas a outra "em realidade" (revera), estão contidas todas as incertezas com respeito à doutrina da "união mística" (unio mystica) bem como a razão final para a crítica a que esta doutrina tem sido sujeita desde os dias de Ritschl. E isto no caso de um homem da escola de Melanchthon! O fato que a Ceia do Senhor é apresentada aqui, não pode obscurecer o que Selnecker, também, mantém: que há uma união com Cristo que vai além do relacionamento de fé que é pretendido na doutrina da justificação. Ele prova, antes, que o cristão luterano daquela época foi muito tempo familiar às idéias da posterior doutrina da "união mística" (unio mystica) - a doutrina desenvolvida sobre a base de seus conceitos da Ceia do Senhor. (p.158)
Como é evidente, Martin Chemnitz não ignora a doutrina Neo testamentáia da habitação de Cristo nos crentes como prova da presença de Cristo na igreja. Seu interesse nesse assunto é o maior possível visto que ele não consegue confiar no conceito de Brenz quanto à onipresença de Cristo - um conceito que ele rejeita. Ele parte da sentença Paulina que Cristo habita em nossos corações mediante a fé (Ef 3.17), e ataca aqueles que concluem a partir disso que "a pessoa de Cristo habita em nossos corações, não com a sua essência enquanto esta consiste de duas naturezas e permanece neles, mas que ele habita em nós pela fé, como se nesta passagem a fé fosse uma fantasia ou imaginação a respeito de Cristo, que não está realmente presente conosco mas é descrito pela imaginação como que habitando em nós" (Personam Christi inhabitare in cordibus nostris non essentia sua, sicut duabus naturis constat et in illis subssitit, sed fide inhabitare in nobis, quasi vero fides hoc loco sit phantasia seu imaginatio de Christo, qui revera nobis non adsit, sed per imaginationem fingatur in nobis inhabitare).113 Pelo contrário, diz ele, a fé é aqui mencionada apenas como um meio, uma ferramenta, um instrumento, com o qual recebemos e retemos Cristo. Em acréscimo, todavia, ela é mencionada para expressar que Cristo não habita em nossos corações de forma terrena, sob condições terrenas, fisicamente, visivelmente, espacialmente, mas de uma maneira celestial, divina, incompreensível (506). Aqui e um pouco adiante (508) é antecipada aproximadamente a terminologia inteira aplicada à "união mística" (unio mystica) pelos dogmáticos posteriores. Na sua rejeição da interpretação de Ef 3.17 anteriormente mencionada, Chemnitz claramente expressa sua própria idéia que Cristo habita nos crentes "com a sua essência" (essentia sua). Ainda que nesta conexão não houvesse nenhuma ocasião para se entrar no assunto mais a fundo, mesmo assim essa idéia é sublinhada quando Chemnitz acrescenta que Paulo ensina não apenas a participação dos crentes no Espírito (2Co 13.13) mas também a sua participação no corpo e sangue (1Co 10.16). Todo este capítulo do livro de Chemnitz pretende provar a presença real de Cristo também segundo a sua natureza humana. (p.159) A respeito da promessa de Cristo que ele deseja estar unido com os seus membros no grau mais elevado (membris suis conjunctissimum esse) diz ele, portanto, que isto se aplica "àquela natureza pela qual ele é nosso parente e irmão consubstancial conosco" (ea natura, qua nobis consubstantialis cognatus et frater noster est) (507). E isto, Chemnitz vai indo, de modo algum está limitado à Ceia do Senhor - conforme foi previamente apresentado.(p.159) Contudo, a respeito da habitação do Espírito Santo, ele cita a exposição de Lutero do Sl 51.12, segundo a qual, o Espírito habita nos crentes "não apenas mediante os dons mas também segundo a sua substância" (non tantum per dona sed et quoad substantiam).114 (p.160)
O ponto final nesta comparação é o fato que a Fórmula de Concórdia fala sobre a habitação interna do Pai, do Filho e do Espírito Santo nos crentes e destaca que essa in-habitação não é a nossa justiça que vale perante Deus, mas que ela resulta dessa justiça.115 Realmente, há prova que mesmo na era da Fórmula de Concórdia, a teologia Luterana ensina a in-habitação da Trindade e de Cristo nos crentes. Isso é descrito como uma "união real" (conjunctio realis) (Gerlach). Isto significa que os crentes receberam a majestade divina (Brenz), mas também que há uma união em essência (eine essentielle Einung) com a natureza humana de Cristo e uma união em substancia (eine substantielle Einung) com o Espírito Santo (Chemnitz). É especialmente distinguida do ato da fé (Selnecker, Fórmula de Concórdia) (p.160)
Contudo, pode-se encontrar a doutrina da "união mística" (unio mystica) apresentada com insuperável ênfase e plenitude nos escritos de Philipp Nicolai, e não num primeiro momento no seu livro sobre a onipresença de Cristo (1602); ela deve ser encontrada por volta de 1598, no seu seguidamente reimpresso "Freudenspiegel des ewiges Lebens".116 (p.160) Na superfície, é verdade, a descrição da vida eterna que Nicolai fornece em seu livro tem um caráter escatológico. No entanto, a partir do uso dos enunciados do Novo Testamento que são constantemente citados em apoio à in-habitação e devem caracterizar a publicidade cristã mesmo durante o presente aeon, pode ser observado que para Nicolai o limite entre a vida eterna e a vida na terra não é cronológico em sua natureza. Além disso, no escrito "Sobre a Vida Eterna" (Vom ewigen Leben) ele apresenta "que durante esse tempo nós crentes cristãos vivemos simultaneamente 'fora e dentro' (ab extra et ab intra), isto é, externamente no mundo e internamente no Espírito Santo", e que eu, "segundo a minha vida espiritual e minha vida interior, celestial, estou no céu e na cidade de Deus acima juntamente com todos os cidadãos dos céus" (T. Schr. Ib,216s.). Realmente há justificativa para se incluir as observações de Nicolai sobre "a vida celestial, eterna" no contexto de nosso tratado da "união mística" (unio mystica). (p.161)
Na primeira grande parte o Freudenspiegel enumera seis "características" (Eigenschaften) da vida eterna: amor e amor recíproco entre Deus e os eleitos, equidade dos eleitos com Deus, a habitação de Deus neles, "Deus em todos", amor perfeito ao próximo e "perfeita união ou harmonia (Einegkeit) entre Deus e os seu filhos". Após a descrição da vantagem quádrupla deste conhecimento , a segunda grande parte destaca as seis bênçãos com que Deus prepara para a vida eterna. Da habitação de Deus nos eleitos é colocado que os meios empregados são o amor e o amor recíproco ou perfeito conhecimento mútuo. Esse conhecimento deve ser tomado no sentido Bíblico - "conhecer com sentimento" (nosse cum affectu), na linguagem dos dogmáticos. "Que isto seja para mim agora uma alegria celestial e um conhecimento deleitável ou um firme, penetrante amor na vida eterna, uma vez que Deus conhece aqueles que o amam de tal maneira que ele reside e habita neles com a sua essência" (Das lasse mir nun eine Himmlische Wollust und eine leibliche Erkandtnuss oder starcke, durchtringende Leibe sein im ewigen Leben, da Gott seine Leibhaber so erkennet, dass er in ihnen wesentlich residiert und wonet) (I,24). Este amor mútuo, ardente é como o amor de noiva e noivo, que não descansa até que cheguem a uma perfeita "união" no casamento (26). Em inesgotáveis formas de expressão essa descrição é também variada com respeito ao relacionamento com Cristo. Em acréscimo às referências Bíblicas e citações da literatura medieval, Lutero, igualmente, é regularmente citado (I, 89ss., 136, 150ss., 255ss., II,231ss,etc). (p.161) Como Pai, Filho e Espírito Santo, o próprio Deus não é "três deuses, mas um só Deus e um Ser em três Pessoas. E esse um ou essa unicidade essencial (Eines) é Nele mesmo pura glória, puro júbilo, pura vida, e puro prazer, porque é puro amor e uma fonte de amor" (I,41). Nessa unicidade essencial, toda Divindade, entra na "união perfeita" com os homens e os anjos (40) De acordo com 1Co 6; Ef 4; 1Co 12 e Jo 17, eles se tornam uma "unidade perfeita" "mediante uma combinação celestial" (41). Caso se acrescente a isso que tudo o que "repousa" "descansa" (Ausruehen) em Deus, está presente na mente como o alvo final, que os cristão são admoestados a concentrarem seus pensamentos constantemente na vida eterna, e que disto também são tiradas conclusões ascéticas (I,62ss), nenhuma prova posterior é necessária de que a doutrina da "união mística" (unio mystica) é apresentada completamente no livro de Nicolai. (p.162)
Em seu livro da onipresença de Cristo, que surgiu quatro anos mais tarde, Nicolai repetiu essas idéias de uma maneira que é estritamente sistematizada. Aqui a ocasião foi a mesma que foi no caso de Chemnitz e dos Württembergianos: prova de que a natureza humana é capaz de conter a essência infinita de Deus dentro do âmbito da doutrina das duas naturezas. Deus é essencialmente amor, explica ele. O lugar da sua habitação nos crentes é a imagem divina, que foi perdida por causa da queda mas foi restaurada por meio de Cristo (pp.56s.). Cristo conquistou de volta para o homem a habilidade de conter a essência de Deus. Aqui Nicolai emprega o dístico que se tornou um "termo técnico" (terminus technicus) para os dogmáticos seguintes. O quarto capítulo é intitulado "Sobre os três mistérios resultantes da união mística de Deus e dos homens santos" (De tribus mysteriis ex unione mystica Dei et sanctorum moinum resultantibus). Aqui o sentido muito disputado da palavra mysticus se torna claro. Não é nada mais do que o adjetivo para o substantivo mysterium.117 A "união mística" (unio mystica) ocorre numa diferenciação tríplice (Staffelung). Por meio de idiopoeia (pp.81ss.) Deus - por meio do "vínculo" (copula) do Espírito - transfere todos os sofrimentos dos cristãos, suas palavras piedosas e sentimentos, para Si próprio, como se fossem dele.(p.162) Aqui se é lembrado da transferência da justiça de Cristo ao pecador - obviamente no sentido de "imputação comutativa" (imputatio commutativa) (Selnecker, Ex.Ord.III,301). Por meio de metapoeia (pp.91ss.), o crente participa da obra e poderes do soberano Deus e Cristo. Por meio de koenopoeia Deus e o homem se unem de tal maneira numa comunidade de ação espiritual (pneumatisch), que um sempre pensa e atua em comum com o outro. Isto é o que significa quando é colocado na Escritura que todos os crentes em Cristo são sacerdotes, juízes e lutadores (na batalha contra Satanás). Aqui lhes é atribuída habilidade e ação que eles não podem obter como meros seres humanos mas somente em virtude da sua cooperação com Deus. (p.163)
O desenvolvimento posterior da doutrina da "união mística" (unio mystica) não trouxe nenhum tipo de progresso futuro. A questão se a união deve ser tomada como operativa, substancial ou se ambas pertencem às incertezas da exposição que confronta os dogmáticos desde Johann Gerhard como escolasticismo genuíno em todos os pontos essenciais da doutrina evangélica. Mesmo Nicolai ensina uma união essencial. Aqui esse conceito se torna mais palatável ao leitor moderno unicamente porque Nicolai descreve a essência divina que está unida com o crente como "amor essencial" (essentialis amor, diletio, charitas) (Omnipr., p.89). Mas o próprio fato que ele pode fazê-lo sem (conforme ele o vê) fazer rombos no conceito da "essência" (essentia) seria um alerta a não se reinterpretar o mesmo conceito, quando ele ocorre nos dogmáticos posteriores, e o conceito análogo da substância, que, conforme dito antes, deve ser encontrado numa obra de Lutero impressa em 1538,118como algo eqüidistante ou totalmente materialista. Inversamente, os dogmáticos posteriores, que enfatizam a "aproximação" (appropinquatio) ou a "união das substancias" (conjunctio substantiarum), enfatizam que a habitação de Deus é "não ociosa" (non otiosa), e, onde eles não fazem disso uma sentença expressa, pode-se concluir de suas definições finais (Finalbestimmungen). Quando Nicolai fala de uma "união espiritual" (unio pneumatica) ou de uma "participação espiritual" (spiritualis communicatio) (T. Schr II,88; 134), os dogmáticos posteriores colocam peso na conclusão que "isto é denominado de união espiritual segundo a sua causa real, natureza e maneira porque é realizada mediante o Espírito Santo, que misericordiosamente habita em nós também de uma forma sobrenatural e espiritual, não de forma carnal, por contato, imersão e colocação de um ser no outro".119(p.163) Em todo caso, todas as objeções apresentadas por Albrecht Ritschl do ponto de partida de seu próprio conceito de Deus bem como da ética para a doutrina da "união mística" (unio mystica) aplica-se igualmente a Philipp Nicolai.120 Essas críticas - que, no caso dos oponentes no século dezessete, equivalem a acusações de Osiandrismo e Weigelianismo, no caso de Ritschl a incompatibilidade com a doutrina da justificação, a panteísmo e ética ascético-quietista - são tão pesadas e, em acréscimo, tão óbvias que agora é necessário investigar se e como essa doutrina pode ser conciliada com as idéias fundamentais da teologia Luterana que foram longamente desenvolvidas. (p.164)
2. Nicolai baseia a possibilidade da in-habitação de Deus no homem sobre a restauração da imagem divina por meio de Cristo. Brenz vai além dessa idéia ao ponto que ele deixa o crente receber "a majestade divina", que foi designada ao homem no seu estado primevo (Urstand), foi então perdida, mas reconquistada por Cristo para a humanidade (op.cit., p.379). Se não fossem adicionadas aqui citações da Escritura, ter-se-ia estabelecido uma abolição quase blasfema da distância que há entre Deus e o homem - a distância que deve ser preservada mesmo no relacionamento da fé. Segundo Brenz, no entanto, é precisamente a fé que não seria apenas o pré-requisito mas o meio pelo qual Cristo habita no crente e pelo qual o crente participa da natureza da Cristo. (p.164) Essa "união" (communio, p.738) com Cristo é, conforme as palavras de João o esclarecem, uma "participação" (Gemeinschaft) de vida. "Eu vivo, e vós vivereis" (Ego vivo et vos vivetis), diz Cristo; "isto é, a minha vida é vossa vida" (hoc est, mea vita est vestra vita) (737). Contudo, esta vida nada mais é do que "justiça" (justitia). Pois o justificado perante Deus mediante a fé, tem vida diante de Deus, isto é, vida eterna. "Preservação na morte" (conservatio in morte) está por necessidade ligada à declaração de Deus da absolvição (reputamur, 737) - portanto, também "ressurreição, vida eterna, felicidade" (ressurectio, aeterna vita, foelicitas) (738).121 Agora, de modo algum é um assunto unicamente do julgamento pronunciado por Deus, que nos dá justiça e então um título para a vida eterna. (p.164) Pelo contrário, aqui há para nós um incentivo para receber com real hospitalidade o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que habita em nós, e não tirá-los fora , antes mantê-los em nós. "Mas nós os recebemos com hospitalidade mediante o amor ou mediante a fé em Cristo... nós os mantemos mediante a obediência da fé e de uma vida honrosa" (Accipimus autem eos hospittio per dilectionem seu fidem in Christum .. retinemus eos oboedianteia fidei et honestae vitae) (742). Referindo-se a Paulo (1Co 6) é então estabelecido que o homem, como templo de Deus deve evitar todas as coisas impuras. Ele deveria dedicar-se completamente à piedade, a fim de que Deus possa permanecer seu hóspede.122 Realmente, está claro que quando Brenz fala da habitação interna de Deus, ele está pensando numa mudança real no conjunto psíquico-empírico do crente. Nada "mágico" pode ser encontrado nele. Agora, isto não é nenhum incentivo apenas moral. Pelo contrário, aqui uma nova vida é gerada - uma vida que toma posse da psique do homem de tal maneira que mantém seu fundamento mesmo contra a investida da morte. (p.165)
No entanto, até que ponto essa união com a natureza de Cristo é um recebimento da majestade divina? Aqui a noção de que ocorre a habitação interna mediante a fé e na fé estabelece o teste. A união o faz "para que sejamos tornados partícipes na natureza divina" (ut efficeremur consortes divinae naturae) (869). Se participamos da natureza divina, igualmente participamos do destino que a natureza divina possui em Cristo. Somente então, somos realmente "partícipes" (consortes) com Cristo. A majestade de Deus firmou o teste na sua humilhação. Se desejamos estar onde Cristo está no futuro eterno, devemos igualmente ser como ele foi e onde ele esteve na vida presente. Nós possuímos a majestade divina de Cristo unicamente pela fé como a sua e pelo suportar o mesmo sofrimento (p.873; cf.373) (p.165)
A acusação freqüentemente feita que a idéia da "imitação de Cristo" (imitatio Christi) colhe na doutrina da "união mística" (unio mystica) assim como o faz no misticismo da idade média, certamente é verdadeira. E mesmo em Philippi Nicolai pode-se observar que isto leva ao perigo do quietismo, que não está em harmonia com a Reforma. Ainda apenas o perigo. Pois o que Brenz apresenta mostra duas coisas com muita clareza. Primeiro, que aqui a esfera da fé de maneira alguma é necessariamente abandonada. Somente se pode crer na habitação interna de Cristo, porque o estado empírico de coisas - a palavra a nosso respeito e em nós, o sofrimento, a necessidade de morrer - fala contra ela.(p.165) Segundo, no entanto, Brenz declara que a imitação de Cristo de maneira nenhuma pode ser uma imitação externa, mas que surge da necessidade imanente da própria fé. Pois, conforme já foi apresentado, o sujeito como psique não pode não ser afetado pela função exercida pela fé do sujeito transcendental. Para a fé, Cristo sempre permanece sendo O Outro, cuja justiça nos é imputada. Ao mesmo tempo ele também se torna um conteúdo psíquico. Realmente, ele "habita" em nós como "majestade concedida de Deus" e assim cria em nós uma vida tão obediente no fazer e no sofrer, portanto, ativista e também quietista, como a sua. Aqui Brenz preserva os limites impostos pela doutrina da justificação. Nicolai, igualmente, os observa, embora no Freudenspiegel isto pareça estar obscurecido porque ele começa com uma descrição detalhada da "vida eterna" e não desenvolve a doutrina da justificação até chegar à sua discussão das bênçãos com que Deus prepara para a vida eterna.123 (p.166)
3. Se a partir deste ponto alguém se volta para Lutero, o reformador emerge nesta conexão também como o fundador do Luteranismo. Realmente, ele passou pelo misticismo germânico, e idéias hospedadas por Gerson e, acima de tudo, por Bernardo acompanharam-no durante a sua vida. 124 Realmente, a entrada do "misticismo medieval no Luteranismo" não começa nem com a adoção do assunto medieval e jesuíta por meio da literatura de oração Luterana125, nem particularmente com Johann Arndt; ela começa com Lutero. Contudo, Lutero tinha fundamentos Bíblicos para repetir sempre de novo as descrições da relação nupcial de Cristo com o cristão e do "templo" de Deus nos santos; o que é dito sobre a união, a associação, e a comunhão de Cristo com os crentes; e sobre "fazer nossa morada". Ademais, tudo - pelo menos em nossa conexão - depende de como ele dispunha essas idéias após a sua doutrina da justificação ter sido completamente desenvolvida.(p.166)
É auto-evidente que em Lutero também se encontram todas aquelas salvaguardas com que Melanchthon procura trazer a idéia da "habitação interna de Deus" em harmonia com a justificação. Deus vem a nós no Espírito Santo, isto é, na sua Palavra. Ele habita em nós "mediante a fé" na sua Palavra. A união com Cristo consiste nisto, que recebemos a sua justiça e que ele toma o nosso pecado sobre si - no sentido da posterior doutrina da "imputação comutativa" (imputatio commutativa). Essas são idéias fundamentais contidas no primeiro comentário sobre Gálatas.126 E onde um sermão apresentado em 1528 e então impresso emprega a expressão que o próprio Lutero usara alhures - que os cristãos e Cristo se tornam "um só bolo" (ein kuchen) - o transcrito se limita à sentença que a fé é a "braçadeira" (Klammer) pela qual os corações são mantidos juntos e unidos em Cristo (WA 28,188,9 e 28). Contudo Lutero seria um intérprete pobre do evangelho segundo são João, se deixasse a coisa chegar a isto. (p.167)
Se é uma exigência essencial do misticismo - por último, do misticismo alemão - que o homem, por meio de uma técnica especial de pensamento, reduz a sua consciência a "nada" a fim de então encontrar Deus no mais profundo do seu eu interior, Lutero, após haver chegado à clareza com respeito à justiça pela fé, verdadeiramente foi e se manteve um oponente do misticismo. Ele se volta contra o misticismo tão cedo como o surgimento do seu tratado sobre a liberdade. E ao expor Gl 2.20 no seu amplo comentário aos Gálatas - a passagem que até mesmo Gottschick chama de "base (sedes) real para a conexão entre a habitação interior de Cristo e a justificação" - ele continua exigindo nos termos mais fortes que a fé em nenhum caso olha para dentro de si mesma, mas unicamente para Cristo.127 Sem essa exigência básica toda doutrina da habitação interna, não importando como ela pode olhar de outro modo necessariamente não apenas colocaria em perigo, mas realmente destruiria a justificação. A necessidade de "auto-acusação" (accusatio sui), sem a qual não há justificação, mantém toda a "interioridade" natural e moral, incluindo o que os místicos chamam de "profundo da psique" (Seelegrund). (p.167) Isso Lutero elaborou claramente em 1520, nos seus escritos polêmicos contra os fanáticos. (p.168)
Contudo, se o conceito da habitação interna deve ter algum sentido especial ao todo, é auto-evidente que se deve ter em mente uma "interioridade" do homem. Em nenhumas circunstâncias, no entanto, essa consideração de uma "interioridade" pode contar para o conhecimento de Deus e a união com Deus. Por conseguinte, ela não pode contar sequer para a justificação. O "homem interior", que sozinho entra em questionamento, não existe até que haja fé; ele é o homem da fé. "Onde não existe fé, ali não há homem interior" (Ubi fides non est, ibi non internus homo) (WA 28,180,2). A fé, portanto, constantemente se liga somente à outra Pessoa - a Pessoa que eu não sou - a Cristo. Se é correto falarmos em possuir Cristo, isso sempre tem o sentido primevo (Ursinn) que nos tornamos portadores da sua justiça - pela fé (189,18ss.). (p.168) O "olhar para Cristo" (Anschauen Christi) que Lutero - assim como Bernardo - seguidamente exige, significa "que sejas transferido para fora de ti mesmo para Cristo e sejas transplantado de uma oliveira brava, para falar com Paulo, e do mundo para Cristo" (ut transferaris extra te in Christum et transplanteris ex oleastro, ut cum Paulo loquar, et ex mundo in Christum) (WA 25,331,5). Disto se segue que o "homem interior" per se não pode nem contar para conhecimento de Deus e a união com Deus, nem sequer levar Cristo em si mesmo de maneira tal que a fé o direcione a um "Cristo em nós".128 (p.168)
Lutero também não ultrapassa essas linhas quando fala numa união do crente com Cristo - uma união que consiste na fé e ocorre mediante a fé. Pois sem o fato que aqui existe quase sempre um "por assim dizer" (quasi) - nos tornamos "um corpo, por assim dizer, no Espírito" (quasi unum corpus in spiritu) (WA 40 I,284,7), a fé faz de ti e de Cristo "uma pessoa, por assim dizer" (quasi unam personam) (285,5) - é antes e acima de tudo a justiça que une o crente com Cristo. Portanto, é a justiça da fé da "imputação comutativa" (imputatio commutativa) (Lectures on Hebrews, 195,8ss.). Isto Lutero enfatiza mesmo quando ele descreve a partilha de todas as coisas boas por Cristo e do cristão em acordo com a descrição da relação nupcial (WA 41,554,5; 1ss.; WA 42, 174,6ss.). Todavia, ele não para nisto. É verdade que os conceitos que ele seguidamente coordena com a justiça - "vida" (vita), "salvação" (salus), "glória" (gloria), etc. - ainda devem ser entendidos num sentido imputativo (WA 28,188,4;WA40 I,284,6).(p.168) Porém isto já não é mais verdade quando ele diz com altivez que o coração é consolado quando Cristo entra nele (WA 11,112,20), que o Espírito Santo inscreve chamas de fogo no coração (WA 12,570,12), que Cristo é uma alegria e prazer para o coração apavorado e aturdido (WA 40 I,299,5), sim, que o homem que pudesse ver como Cristo se tornou sua carne e sangue certamente não seria capaz de suportar a glória e a alegria (WA 41,554,2ss.; WA 20,229,11). Esses evidentes efeitos emocionais demonstram que Lutero não acreditava que o "homem interior" (internus homo), que, como tal, sempre permanece sendo o homem da fé, não é afetado em sua psique pela união com Cristo. (p.169)
Outra coisa precisa ser considerada. Mais tarde em sua vida, Lutero lutou vigorosamente contra a idéia da "imitação de Cristo" (imitatio Christi) no sentido do misticismo medieval - a idéia que ele recomenda quando é um monge (WA 1,175,20; WA 2,138,19) e então igualmente louva a "vida passiva" (vita passiva) como perfeita chegada ao estado de ser um cristão (WA 5,166,11ss.). O "revestir-se de Cristo", diz ele com referência a Gl 3.27, não significa, como Jerônimo espera que seja entendido, fazer e sofrer as mesmas coisas que Cristo fez e sofreu. Não, significa ser revestido com a sua justiça, com salvação, força e vida. Contudo, desta mesma maneira o novo homem é gerado. E isso inclui "que novas emoções surgem, uma nova vontade, que surge uma nova luz, uma nova chama no coração" (novos fieri affectus, voluntatem, novam exsurgere lucem, flammam in cordenovam) (WA 40 I, 539,10ss. 540,6). (p.169) Portanto, o revestir-se de Cristo, que aqui é descrito como correspondendo a uma "união e adesão da fé" (conglutinatio et inhaesio fidei) em Gl 2.20 (284,6), opera uma renovação de todo o conjunto psíquico do crente. Caso se é levado aqui ao conceito da regeneração, que já fora mencionado, mesmo assim Lutero nos toma além disso ao tornar Cristo, ou Deus ou o Espírito Santo o sujeito das "novas emoções, a nova vontade, o surgimento da luz" em nós. Cristo governa, diz ele, com referência a Gl 2.20, com o seu Espírito Santo, que agora vê, ouve, fala, sofre e faz tudo em mim (WA 40 I, 290,10).129 Aqui, portanto, Lutero preservou a idéia que enfatizou tão vigorosamente desde o começo e a qual aderiu em comum com os místicos: que Deus, que habita nos homens, "faz todas as coisas junto comigo" (WA 10 III, 150,14ss.; cf. WA 1,215,28f.;363,31). Quando o crente ama a Deus e faz o que Deus quer, isto "nada mais é do que o próprio Espírito Santo ou antes a obra que ele mesmo opera no coração" (WA 12,570,10ss.).(p.169) A habitação interna do Espírito "nada mais é do que o homem sendo a casa de Deus com o seu corpo e sua alma". Todos os seus membros são de Deus Pai. Sua voz é de Deus; sua mão é a mão de Deus, que nada mais faz senão o bem a qualquer um; seus olhos podem ver somente "pura cortesia, amizade, amor" (Eytel zucht, freundlichkeit, lieb); seus ouvidos não podem mais suportar coisas obscenas mas conseguem ouvir somente a Palavra de Deus. Realmente, esse lugar de habitação de Deus em nós ainda não está concluído; mas ele é edificado "para que esteja pronto no último dia" (das sie sol gerust sein in extremo die) (WA 28,191,20). (p.170)
Aqui se poderia considerar a onipotência de Deus - a idéia que Lutero enfatizou no seu tratado contra Erasmo. Em mais do que um aspecto, porém, algo fundamentalmente diferente está em questão aqui. Primeiro, esse conhecimento da habitação interna e da atuação de Deus realmente pressupõe a superação do "sentimento de dependência absoluta". Para Lutero, isso logicamente leva à conclusão que a predestinação é absoluta, mesmo para o mal - uma conclusão que destoa da fé na revelação divina de Cristo. Ela se fundamenta numa concepção da relação do homem com Deus que corresponde exatamente à opinião esposada pelos místicos alemães. De um ponto de vista moral, portanto, ela pode terminar apenas na "imperturbabilidade" (Gelassenheit). Mas no sentido de Lutero, a habitação interna de Deus significa a mais vigorosa indução à atividade moral. Ademais, e finalmente, a habitação interna de maneira nenhuma descarta a relação eu-tu. E isso é o decisivo. (p.170)
Esse aspecto da habitação interna é apresentado numa primeira instancia quando Lutero a ilustra com a relação de noivo e noiva ou marido e mulher. Muito embora no começo Agostinho e Bernardo possam tê-lo levado a isso (WA 3,142,28;218,35; WA 31 II, 628,26,etc.), já logo no seu tratado sobre a liberdade ele aplicara a ilustração à "imputação comutativa" (imputatio commutativa) (WA 7,25,38;26,4). Num sermão apresentado em 1522, ele a usa para esclarecer que entre Cristo e os cristãos existe precisamente tanta necessidade de um mediador como entre marido e mulher (WA 10 III,357,28ss.). Ele a aplicou mais extensivamente mais tarde no sermão de casamento que pregou para Caspar Cruciger (1536). É o texto de Ef 5 que o induziu - assim como induziu os dogmáticos posteriores quando eles lidaram com a doutrina da "união mística" (unio mystica) a ilustrar o "grande mistério" (magnum mysterium) da união entre Cristo e os crentes com a relação no casamento (WA 41,547-562).130 (p.170) Aqui ele chama a igreja de noiva de Cristo (somente em WA 42,174,6ss.). No entanto, aqui a relação da igreja com Cristo é também automaticamente individualizada: "Aquele que crê e é batizado se torna uma noiva" (Qui crediderit et baptisatus, is fit sponsa) (WA 41,552,10; WA 45,176,19). Aqui, igualmente, se repete a idéia da "imputação comutativa" (imputatio commutativa) (WA 41,556,3). Contudo, a justificação aparece aqui unicamente como um elemento primário da união. Os apóstolos, que pregam à noiva sobre a purificação e santificação que Cristo operou por meio do seu sofrimento e ressurreição (551,1), são os padrinhos de casamento que nos conduzem a Ele mediante a Palavra e o Batismo (550,551,10). Onde Lutero,então fala do próprio "grande mistério (mysterium magnum) Paulino, do "tornar-se uma só carne", do "casamento oculto" (553,6;9;554,2;558,3; WA 45,178,10), ali lhe faltam palavras: "Sou incapaz de encontrar palavras" (Ego non possum eloqui) (WA 41,553,7). É verdade que ele sempre fala em primeiro lugar da justiça como a "glória oculta" da noiva (occulta gloria). E Cristo, como minha carne e sangue, "se achega" de mim como meu Noivo mediante a Palavra e o sacramento (554,4). Os bens que compartilho com Ele (554,5) são vida eterna, verdade, força, graça pura, "e incompreensível eternidade" (et eternum incomprehensibile) (553,3;WA 45,178,8). Todavia, aqui ele precisa ver outro elemento ainda não contido de qualquer maneira no conceito da justificação. É o elemento do amor. Cristo quer ser chamado de Noivo porque ele vem, não como senhor e juiz, nem como pai ou mãe, mas com o maior amor (553,1; WA 45,178,35). Tudo o que ele dá à noiva, provém do seu amor (556,8). Inversamente, assim como no casamento a mulher não pode ser obediente e respeitosa se não existe amor, assim também a igreja não pode ser obediente e respeitosa se não há amor (559,5). (p.171)
Lutero não pode usar nenhuma maneira mais íntima de expressar o relacionamento entre Cristo e o crente do que a símile do relacionamento nupcial. Está claro que, como ele o entende, essa relação ocorre unicamente pela fé e a justiça imputada - essa é a diferença essencial e permanente entre o que ele ensina e o misticismo de Bernardo. 131 Mas não está menos claro que na doutrina da satisfação e imputação per se ele abandonaria o elemento que é essencial nessa conexão.(p.171). Da parte de Cristo essa relação significa um sacrifício não somente pela humanidade em geral, mas também por mim pessoalmente. A fé que, de fato, sempre significa a aplicação "por mim" (pro me), sabe disso. Mas a participação na justiça, que poderia ser mal entendida como uma participação meramente na coisas boas, não se torna uma participação atual pessoal até o crente saber que Cristo também o pretende pessoalmente, o conhece pessoalmente, e o ama pessoalmente. Lutero - particularmente como um expositor do Evangelho segundo S.João - não poderia facilmente ignorar o tema do amor na natureza de Deus. Se tu olhares para Deus, diz ele, "há chamas puras e fogo de amor em Deus" (sind eytel flammen und feur charitatis in deo) (WA 36,426,5). "Nas profundezas da sua natureza divina, nada existe senão um fogo e um queimar, que é chamado de amor pelos homens" (In abgrund seiner Gottlichen natur nihil aliud est quam ein feur und brunst, quae dicitur leib zun leuten) (424,3). Deu é "em si mesmo puro amor" (an yhm selber mera charitas) (428,3). E da mesma maneira Cristo faz a sua obra "pelo maior amor" (summa charitate) (WA 40 I, 296,11), "por puro amor" (mera charitate) (297,8). Contudo, quando Cristo usa a símile do matrimônio, ele pretende dar "um exemplo de verdadeira união e amor" (exemplum verae unionis et dilectionis), porque nesse matrimônio "noivo e noiva são unidos da forma mais íntima" (conjunctissime et sponsus et sponsa conjunguntur). Da parte do noivo isso significa: "Ele deseja ela mesma, ela mesma" (ipsam, ipsam vult), a saber, a noiva de uma maneira totalmente pessoal (WA 10 III,415,8ss.). Assim a consideração do amor divino necessariamente inclui a referência "por mim" (pro me). Portanto, é idêntico à fé. "Realmente, a fé evidencia que Cristo é nosso, e o seu amor evidencia que somos dele. Ele ama; nós cremos. O resultado é uma massa só." (Also macht der glaub, das Christus unser ist unnd seyne liebe macht, das wir seyn sind. Er liebt, sso glewben wyr, da wirt eyn kuch auss.) (WA 10 I,p.74,16). (p.172)
Contudo, o efeito do amor de Deus não é exaurido na fé, que o recebe e aplica a si mesma. Nem é exaurido no fato que o amor de Deus causa o nosso amor por ele (WA 10 III,157,9ss.); que o nosso amor a Deus se expressa no nosso guardar a sua palavra, seus mandamentos (158,24), e se comprova pelo amor ao próximo (157,19) que não existe verdadeira obediência a Deus sem amor (WA 41,559,5), igualmente que não se honra a Cristo sem amor (20, 398s.). Todas essas sentenças poderiam deixar a impressão que o amor de Deus e o nosso amor têm uma relação de causa e efeito. Na verdade, Lutero coloca enfaticamente nessa conexão que eles possuem uma relação de causa e efeito. Mas ele coloca mui claramente que aqui se trata de um assunto de um relacionamento atual de amor em que o elemento da reciprocidade está contido.(p.172) "Assim o Senhor me ama; eu, em contrapartida, o amarei também" (Sic me diligit dominus, ego vicissim eum diligam) (WA 45,178,36). "Portanto eu estou perto e com Cristo, de modo que eu não posso duvidar que o seu coração é meu. Por outro lado, ele não pode duvidar que o meu coração é seu coração" (Sic ego gegen et cum Christo, ut non dubitem, quod suum cor est meum, econtra non dubitat, quod cor meum cor suum) (177,24). Dificilmente se encontraria forma mais vigorosa para expressar o fato que, segundo Lutero, também, a fé possui uma "relação privada com Cristo" (Privatverheltnis zu Christo) - uma relação ridicularizada por Ritschl como especificamente pietista - a saber, a relação de amor recíproco entre o "eu" e o "tu" no sentido mais pessoal de todos. E Lutero dissera isso num sermão que apresentara no ano de 1537!132 (p.173)
Contudo se um relacionamento recíproco de amor é realmente o ponto em questão aqui, entende-se tanto a importância como as limitações das sentenças em que Lutero fala na habitação interna de Deus ou de Cristo em palavras que relembram o misticismo antigo e ainda possuem um significado diferente quando ele as usa. Isto já está claro num sermão de 1520, onde ele afirma que Deus permanece nos que o amam - "aqueles que sem nenhuma dúvida nunca estão incertos da presença de Deus" (nimirum nunquam non sentientens dei praesentiam) (WA 9,464,10s.).133 Pois segundo o contexto, todo esse sentimento da presença pode referir-se somente à habitação interna de Deus no homem. "Pois a vós que Me amais, o Pai não somente terá consideração desde o céu a fim de que vivais; Ele habitará no interior de vossos corações e nunca estará ausente de vós" (Non solum pater e celo deorsum ad vos respiciet, qui me amatis, viveretis, in intimis cordibus vestris habitabit et nunquam non presens erit vobis) (WA 9,466,6).(p.174) Para nós, Deus não é apenas o objeto de lembrança amorosa, mas uma parte para o contraste do amor recíproco que nos liga a Ele numa união inseparável e portanto está tanto Nele como em nós. Para nós, ele sempre permanece sendo o Tu. A linha de pensamento é similar quando Lutero baseia a sentença que "Deus trabalha comigo e continua a olhar por mim" num conhecimento seguro do amor do Pai a nós concedido por meio de Cristo. Ele diz: "Assim o meu coração se torna um quieto, humilde lugar de habitação de Deus" (WA 10 III,158s.; 1522). Ele também diz: "Somos uma pequena faísca da chama da luz divina; Ele é o fogo do qual os céus e a terra estão cheios" (221,12). De qualquer modo, portanto, somos uma pequena fagulha do fogo divino! Ou: "Portanto Deus nada mais pode ser senão amor e chama. Por conseguinte, olha para ele para que ames. Então Deus estará em ti" (WA 36,429,4;1532). (p.175)
Alguns podem pensar, de início, que isso é um escorregão da caneta de Rörer. Mas esse não é o caso; pois o seguinte enunciado o precede: "O amor é uma tal coisa que não é humana, angélica, mas divina, sim, Deus mesmo. Portanto olha para ele a fim de que ames." (Lieb est talis res, ut non humana, angelica, sed Gottlich, ja Gott selber. Ideo agite ut diligatis.) (424,4) E quando é colocado no mesmo lugar que Deus "nas profundezas da sua natureza divina nada mais é do que um fogo e chama, que se chama amor", está-se diretamente presente diante da "união mística" (unio mystica) de Fhilipp Nicolai!134 Nenhum editor teria tido a audácia de acrescentar por sua própria responsabilidade as sentenças que se encontram num sermão apresentado em 1526 e colocado à disposição somente em versão impressa: que "Deus faz fluir o seu próprio Filho sobre nós, que Ele flua em nós, e nos atraia para si, a fim de que Ele se torne totalmente humano e nós totalmente divinos...é tudo uma só coisa, Deus, Cristo, e vós" (Christum seynen lieben son ausschuttet uber uns und sich ynn uns geust und uns ynn sich zeucht, das er gantz und gar vermenschet wird und wyr gantz und gar vergottet werden...und alles mit eyander eyn ding ist, Gott, Christus und du) (WA 20,229,30ss.; 230,10) - se o próprio Lutero não o tivesse afirmado. (p.175) Talvez se é lembrado das demarcações posteriores entre a "união das essências" (unio substantiarum) e a "união essencial" (unio substantialis) quando Lutero afirma da relação entre Deus, Cristo e a cristandade: "As naturezas são diversas, e mesmo assim ambas são uma essência completa; embora a natureza da Deidade seja diferente daquela da cristandade, todavia, assim como o Pai e o Filho são uma única essência divina, assim Cristo é uma única essência cristã com a sua cristandade" (Varie sunt naturae et tamen quaeque sind totum wesen, quamquam natura alia deitatis quam Christianitatis, tamen sicut pater et filius unum divinum weswn sind, sic Christus cum sua christianitate ist ein Christlich wesen) (WA 28,187,18ss).(p.176)
Realmente, a doutrina posterior da "união mística" (unio mystica) tem sido descrita a partir de Lutero com boa razão. Caso se deseje citar os sermões impressos de Lutero, não há nenhum elemento da doutrina seguinte que não pudesse ser encontrado neles. De qualquer forma, eles provam que os próprios ouvintes de Lutero encontraram essas idéias nos seus escritos e que essas idéias já eram operantes no Luteranismo do tempo de Lutero. Nem houve ali qualquer interrupção. Pois, conforme foi apresentado, na era da Fórmula de Concórdia, as mesmas idéias são encontradas tanto entre os Württembergianos como nos da Baixa Saxônia. A concentração do que Lutero pensava sobre a "união mística" (unio mystica), sobre a relação da união de amor, fornece a chave para a solução do problema que, de início, deixa alguém inseguro. O amor de Deus é recebido pela fé, assim como tudo o que vem de Deus é recebido. Até agora não há nenhuma ultrapassagem dos limites da doutrina da justificação. (p.176) Contudo, o amor de Deus, como tal, é percebido não apenas como uma sentença feita por Deus. Ele chama o coração do crente para a união consigo mesmo. Ele chama a psique. E a psique responde. Deus permanece sendo o Alguém Outro. Ele não é o profundo da alma, como ensinam os místicos. Ele sempre permanece sendo o Tu – de outro modo não poderia haver qualquer relacionamento de amor. Mas o Tu de Deus e o Eu da psique são conectados pelo amor, que faz do homem e de Deus "uma só coisa". (p.176)
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